Opinião

"A estupidez é um inimigo mais perigoso do bem do que o mal"

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7 de junho de 2022, 10h01

Recebo diariamente mensagens sobre bizarrices da área do Direito. Tem de tudo. As bizarrices aumentam… e cansam. A (pen)última foi a de um professor de cursinho vendendo Manual Ilustrado de Direito Penal, com um cachorro de óculos escuros na capa da publicidade. Confesso, é engraçado. Ele anuncia que o livro é viciante como a Netflix (sic), usa a psicologia das cores (sic) e, atenção: diz que usa neurociência cognitiva aplicada aos concursos[1] (sic). Bingo!

Spacca
Pior que isso só gente do direito dançando TikTok. Nem vou mostrar aqui. Se mostrar, o mostrado — como foi o caso do professor do avatar — vem aqui dizer que eu não entendi a profundidade da proposta dele de jus-avatarismo. Pois é. Deve ser isso. Não entendi. O futuro do ensino é o cachorro de óculos, a neurociência cognitiva aplicada a concursos e o avatarismo. Com uma dose de TikTok, é claro. Eu é que não consigo perceber.  

Sigo. Platão foi o primeiro a se irritar com coisas simplificadas e com alienações. Voltaire também se irritava com linóstolos.

Olhando as redes sociais e tomando conhecimento das letras do sertanejo universitário — a maioria traz um incentivo a que o corno ou a corna se embriaguem (tem até uma música fazendo uma ode à Ambev)[2] — confesso que talvez os néscios tenham conseguido estabelecer um novo "paradigma". Só pode ser isso. E talvez por isso tenham vencido. Pela insistência e por serem maioria. Será que já fracassamos? A pergunta é retórica.

Muitos sertanejos fazem discurso ultraliberal. São empreendedores. Falam mal do Estado. Agora entendi. Odeiam o Estado…e amam os municípios…!! Mormente os pequenos e pobres. Empreendedorismo chupim. Gostei da coincidência da cidade em que haveria show e o STJ suspendeu: Teolândia. Terra de Deus. Município falido, sem saneamento, sem quase-tudo e gastaria R$ 2 milhões com Gusttavo Lima. STJ salva Teolândia.

Mientras, surge no horizonte uma nova espécie: o anarco-néscio. É um néscio sem qualquer critério. Há limites até para o ridículo, embora o ridículo não saiba disso. Meu conselho: leiam o belo livro de Mauro Mendes Dias, O Discurso da Estupidez, em que ele faz uma espécie de epistemologia disso tudo.

Se há trouxas no atacado, há espertalhões no varejo. Eis uma nova forma de empreendedorismo: o aproveitadorismo. Eis a fórmula: crie atalhos. Os sertanejos pegaram bem a coisa. Está nas próprias letras de suas músicas.

No direito e afins, a fórmula é: já que não consegue escrever nada profundo, invente. Faça vídeos. Se faça de inteligente. E não cite fontes. Faça cabotinagens. Copie dos outros. Faça colagem. E copie errado, porque nem sabe o que está cabotinando. Diga que você faz neurociência no direito. Ninguém vai saber mesmo o que é isso.

Grave vídeos ensinando errado. E vídeos em série. Receberá muitos laiques. E até monetização.

E diga que você defende a liberdade. Diga que negar o holocausto é liberdade de expressão. Ou diga que a liberdade vale mais do que a vida. Ou proponha o uso de prova ilícita de boa-fé e depois faça palestras sobre ética.

Ah, a força das palavras. Orwell, Orwell. Guerra é paz. Fome é fartura. Ódio é amor.

Quando comentar a morte de Genivaldo, faça cara de indignado e pergunte: e dos policiais mortos, você não vai falar? Pronto. Venceu. Conseguiu esconder até mesmo o caráter nazista da morte por asfixia sob os olhares de gozo dos policiais. Isso é uma variante do aproveitadorismo. É o aproveitadorismo argumentativo.

Como bem dizia Dietrich Bonhoeffer, teólogo, pastor e membro da resistência antinazista, "A estupidez é um inimigo mais perigoso do bem do que o mal." E segue: Diferente da estupidez, o mal tem as sementes da sua própria destruição.

O aproveitadorismo epistêmico é uma institucionalização do atalho. E se alimenta de vieses cognitivos.

O busílis é: como argumentar contra a estupidez, se a estupidez não aceita argumentos? Argumentar significa já entrar no jogo de linguagem do néscio. Ou do anarco-néscio. E já entrar derrotado. Jogo de soma zero.

É como jogar xadrez com pombo.

Post scriptum: Para quem está interessado em antídotos, ofereço — "A Conspiração dos néscios e as cinco leis da estupidez" e  "Como mostrar a um tolo a diferença entre o certo e o errado".


[1] Obs.: neurociência cognitiva? Qual seria a expertise do bacharel em direito-escritor do manual? O que seria "aplicada aos concursos"? Com certeza, há aí um paradoxo: tudo isso deve ser um neuromito, isto é, uma informação errada sobre a própria neurociência.

[2] Alô, Ambev?
Dobra a produção aí, que a gente bebe
Eu mandei saudade, ela mandou vida que segue
Então segue sua vidona
Eu sigo sofrendo e bebendo Brahma

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