Opinião

Lei Maria da Penha não é um privilégio

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7 de junho de 2022, 21h34

No último dia 3, foi publicado na ConJur um artigo intitulado "O que o êxito de Depp ensina aos homens", no qual a autora Fernanda Tripode afirma que tal caso demonstra a realidade de homens que enfrentam acusações falsas de suas atuais ou ex-companheiras, fundamentadas tão somente na palavra da mulher, o que feriria a presunção de inocência e provocaria uma marginalização do homem.

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Os atores Johnny Depp e Amber Heard
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É verdade que a pluralidade de opiniões é uma das grandes conquistas da democracia por concretizar o direito fundamental da liberdade de expressão e comunicação sobre os mais diversos assuntos, assim como é verdade que o tópico abordado no artigo é de extrema relevância. Merece reflexões acerca de diversos aspectos de relevo penal e processual penal, tais como valoração probatória e presunção de inocência.

No entanto, adaptar à realidade brasileira o julgamento ocorrido nos Estados Unidos, sem uma devida ponderação do nosso contexto social, seria um desserviço à Lei Maria da Penha, ao Poder Judiciário e órgãos de persecução penal e, sobretudo, às mulheres.

Historicamente, o patriarcado utiliza estereótipos para institucionalizar relações assimétricas de poder entre homens e mulheres. Isto quer dizer que as suas diferenças biológicas desde sempre condicionaram, na esfera social, a atribuição do papel de protagonismo ao masculino e o de subjugação ao feminino.

No Brasil, os primeiros passos em direção à transgressão da dinâmica do sistema patriarcal vieram com a ratificação de diversos tratados internacionais e, posteriormente, foram consolidados com a Constituição Federal de 1988. E embora o texto constitucional tenha sido revolucionário ao reconhecer a necessidade da materialização da igualdade por meio de uma atuação positiva do Estado, a introdução de um sistema especial de proteção à mulher só se concretizou com a Lei Maria da Penha, em 2006.

A inovação legislativa confirmou a luta pela afirmação dos direitos das mulheres e buscou romper com a cultura de tolerância às violências praticadas dentro do contexto doméstico. É dizer que retirou do silêncio e da invisibilidade a dura realidade vivida por muitas mulheres brasileiras.

Há quem diga que a Lei Maria da Penha é sexista e que viola o princípio da isonomia. Quer queira, quer não, alegações desse tipo já foram ampla e exaustivamente rechaçadas pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19. Por unanimidade, a Corte firmou entendimento no sentido de que é necessária sim uma discriminação positiva para combater a natureza específica e complexa da violência doméstica contra a mulher.

Isso porque a escassa proteção histórica dos seus direitos exige, necessariamente, a implementação de um sistema especial e diferenciado de tratamento. O caráter essencialmente compensatório da Lei é destinado a abrandar o desfavorecimento histórico da mulher na dinâmica das relações de poder.

A Lei Maria da Penha não é um privilégio, tampouco foi instituída pelo fato de a vítima ser a mulher. A lei existe porque a violência sofrida é decorrente do único fato de ser mulher. Foram impostas condições sociais e perpetradas estruturas de poder historicamente que nos impediram de ter acesso a uma igualdade de fato e na prática. É essa mesma condição de vulnerabilidade que explica por que nós mulheres sofremos violências que os homens não sofrem — e não sofrerão.

O que não se pode confundir é a introdução de um sistema especial de proteção às mulheres, por intermédio de um Estado mais diligente, com um mero punitivismo. A lei não trouxe só previsões sobre registros de ocorrências, investigação e aplicação de sanções penais, mas também implementou uma série de políticas públicas voltadas à prevenção da violência doméstica com programas socioeducativos, auxílio psicossocial e reinserção do agressor à sociedade. Uma vez mais, verifica-se seu caráter compensatório consistente na ampliação de mecanismos jurídicos de proteção e de conscientização das mulheres sobre seus direitos fundamentais.

Outra questão tratada no artigo é o valor da palavra da mulher. Não é certo que tudo o que a mulher fala que se torna verdadeiro. Seu depoimento, de fato, possui maior relevo na apuração de crimes inseridos no contexto de violência doméstica, os quais, em regra, são cometidos no âmbito privado, sem a presença de testemunhas.

Contudo, a carga probatória do seu relato destaca-se quando amparado por outros elementos, como a prova testemunhal e o exame de corpo de delito. Portanto, não há qualquer violação à presunção de inocência do acusado homem. Como ocorre em qualquer rito do processo penal, as provas são produzidas sob o crivo do contraditório e são analisadas, de forma imparcial, pelo juiz ao final da instrução.

As afirmações do artigo de que as mulheres são movidas por mágoas, rancores, frustrações deslegitimam por completo os motivos reais daquelas que buscam solucionar sua realidade de violência. Enfraquecem a causa do enfrentamento da problemática, esvaziam o propósito da Lei Maria da Penha, e pior, desencorajam as vítimas ainda invisíveis.

Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)[1], publicado em março desse ano, em 2021, em média, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas, e uma menina ou mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos. Somente no Estado de São Paulo, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública[2], em média, por hora, 5 mulheres são vítimas de lesão corporal dolosa.

Diante dos alarmantes dados oficiais, não parece ser o ponto de partida mais adequado utilizar o caso de Johnny Depp e Amber Heard para se debater o tema da violência contra a mulher no Brasil. Diversos dados trazidos no artigo em questão foram objeto de esclarecimento pelas próprias fontes citadas. Para uma discussão produtiva sobre assunto tão sério, o ponto de partida deve ser uma base de dados fidedigna, sob pena de se propagar a desinformação.

A Lei Maria da Penha é o resultado concreto da luta de décadas das mulheres pelo seu justo reconhecimento na sociedade, de modo a romper com a estrutura assimétrica de poder entre homens e mulheres. A resiliência das mulheres que nos antecederam foi essencial para que pudéssemos, hoje, debater abertamente este e outros temas de grande relevância. As tentativas de relativizar esses esforços, minando a legitimidade do combate incessante à violência contra a mulher, constituem um retrocesso que não encontra mais espaço na atualidade.

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