Opinião

O uso da Psicologia no Direito no caso Depp v. Heard

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6 de junho de 2022, 9h03

O caso mais comentado pela imprensa nos últimos tempos envolve Johnny Depp e Amber Heard. As estrelas de Hollywood pleiteiam mutuamente reparações civis em virtude de supostas difamações. O julgamento foi integralmente televisionado e muito se discutiu sobre o resultado do caso e suas consequências para mulheres vítimas de agressões. O processo ainda não transitou em julgado, tendo sido proferida apenas a decisão de primeiro grau. As partes informaram que têm interesse em recorrer da decisão e o prazo ainda não se encerrou. No entanto, o aspecto que iremos abordar neste artigo se circunscreve à intersecção entre Direito e Psicologia e à importância de as bancas de advocacia atuarem de forma multidisciplinar e com suporte em outras ciências, como ocorreu no caso em tela e como defendemos há anos.

Reprodução/Instagram
Reprodução/InstagramOs atores Johnny Depp e Amber Heard

Em Depp v. Heard, a equipe de Amber Heard apresentou como testemunha técnica a psicóloga Dawn M. Hughes, mestre e doutora pela Nova Southeastern University, no estado da Flórida. Sua avaliação sobre as condições de Heard teve como base quatro encontros pessoais, com duração total de 29 horas, e mais 2 encontros via Zoom. Foram aplicados 12 testes psicológicos, entrevistas semiestruturadas e diversos documentos foram analisados. O trabalho contou também com entrevistas a seus terapeutas particulares e a sua mãe. Os testes auxiliaram numa visão sobre os padrões de comportamento de Heard. Foi feita também uma avaliação sobre a violência do companheiro (intimate partner violence assessment).

Os resultados foram consistentes em indicar que Amber Heard era vítima de violência física, de agressões psicológicas, de violência sexual, de controle coercitivo (que é o isolamento da vítima de sua rede de apoio familiar e de amigos) e de vigilância sobre o seu comportamento. Estabeleceu ainda o nexo causal entre os comportamentos de Depp e o estresse pós-traumático de Heard.

Spacca
O advogado Cristiano Zanin

Já a equipe de Johnny Depp trouxe como testemunha técnica a psicóloga Shannon Curry, mestre e doutora pela Pepperdine University, no estado da Califórnia. Ela entrevistou Heard duas vezes pessoalmente, aplicando os testes Minnesota Multiphasic Personality Inventory (2ª edição) e Clinician Administered PTSD (5ª edição). Curry também analisou documentação e concluiu que os resultados de sua avaliação sugeriam que Heard tinha transtorno da personalidade borderline e histriônica.

No transtorno da personalidade borderline, o humor e as reações afetivas podem ser descontrolados, muito instáveis, revelando a dimensão de impulsividade associada a esse transtorno da personalidade. Esses indivíduos apresentam graves problemas de identidade e sentimentos intensos de vazio. As alucinações no transtorno da personalidade borderline podem ser contínuas ou episódicas, assim como as ilusões mnêmicas em que há o acréscimo de elementos falsos a elementos da memória de fatos que realmente aconteceram. Por isso, a lembrança adquire caráter fictício[1].

Já no transtorno da personalidade histriônica, o indivíduo busca ser o centro das atenções, é dramático e muito teatral. Também é sugestionável e manipulador. Verifica-se, com alguma frequência, um humor infantilizado, superficial, com alta vulnerabilidade a estímulos emocionais do ambiente. No transtorno da personalidade histriônica, pode haver excesso de emotividade, com uma entonação exagerada e reforçadora. Indivíduos com transtornos da personalidade, de tipo borderline e histriônico, tendem a reagir a frustrações, às vezes mínimas, de forma explosiva e agressiva[2].

Curry ainda afirmou que, ao contrário do alegado por Hughes, Heard não sofria de estresse pós-traumático, pois essa condição se caracteriza por ser extremamente incapacitante. Alegou também que os testes psicológicos usados por Hughes não seriam adequados ao caso, pois os resultados poderiam facilmente não corresponder à realidade. Citou como exemplos Beck’s depression inventory, Beck’s anxiety inventory e Post traumatic stress disorder checklist, mencionando que os resultados dessas avaliações poderiam ser facilmente manipuláveis. Afinal, ao realizar o exame, qualquer um conseguiria perceber facilmente que se tratava de lista de sintomas. O primeiro de depressão, o segundo de ansiedade e o terceiro de estresse pós-traumático. Aliás, essas listas seriam extremamente inadequadas para o ambiente judicial porque, na realidade, ensinariam a parte a identificar os sintomas de determinado transtorno e até mesmo a reproduzi-los em audiências. Mais cuidado ainda deveria ter sido tomado no caso concreto, pois envolvia uma atriz, pessoa que teria maior facilidade em simular sintomas de forma convincente.

Assim, resta claro que o trabalho de fôlego dessas psicólogas constituiu um capítulo à parte nesse julgamento e contribuiu diretamente para o resultado do julgamento.

O júri considerou como falsas e difamatórias as declarações de Heard referindo-se a si mesma como "representante do abuso doméstico", afirmando que testemunhou "como as instituições protegem homens acusados de abuso" e mencionando: "Falei contra a violência sexual e enfrentei a ira de nossa cultura". Assim, condenou a atriz a indenizar o ex-marido em US$ 15 milhões. O montante foi reduzido para US$ 10,35 milhões em virtude das regras que limitam as indenizações no estado da Virgínia.

Outrossim, o júri também considerou como falsas e difamatórias as declarações feitas pelo então advogado de Depp, Adam Waldman, sobre Heard e seus amigos, encenando uma cena de suposto abuso, e condenou o ator a indenizar a sua ex-mulher em US$ 2 milhões.

Registre-se que que em ambas as situações, os jurados tiveram de responder ao seguinte quesito: "o declarante agiu com intenção maliciosa?" Tal resposta, fundamental para a caracterização da difamação, somente pôde ser tomada com o auxílio do trabalho das psicólogas contratadas pelas partes.

Nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, existe uma cultura jurídica de as bancas de advogados trabalharem como o auxílio de profissionais da área da psicologia. Tais profissionais podem assessorar os advogados com orientações técnicas para nortear sua postura no tribunal, seus questionamentos e para analisar o perfil dos demais atores do processo – o que é ainda muito raro no Brasil[3], ao contrário dos Estados Unidos. Ou podem ser indicados nos autos para atuar como perito ou assistente técnico, situação mais próxima da experiência brasileira.

Mesmo na última hipótese é possível verificar uma grande diferença entre o sistema brasileiro e o norte-americano. Nos EUA, em regra, o assistente técnico atua como testemunha-perito[4] ou testemunha técnica. Em virtude dessa oralidade, algumas características tão caras aos advogados, também são esperadas da testemunha técnica. Desse modo, postura, contundência e clareza na apresentação dos fundamentos, lógica e concatenação dos argumentos, além, é claro, de uma boa oratória podem ser decisivas na formação do convencimento dos julgadores

 No Brasil, por sua vez, embora esteja previsto em lei o depoimento do perito e do assistente técnico (por exemplo: CPC, artigo 361, I; CPP, artigo 159, § 5º, I), em regra tais profissionais produzem apenas uma manifestação técnica escrita, situação que é objeto de controvérsia[5].

Apesar das diferenças nos sistemas judiciais dos EUA e do Brasil, o caso Depp v. Heard evidenciou que a equipe capitaneada pelo advogado na defesa de seu cliente precisa ser cada dia mais multidisciplinar. Para se compreender completa e para identificar claramente algumas situações dentro do direito, é preciso buscar auxílio em outras áreas, especialmente na psicologia que estuda o comportamento humano. Desvelar os aspectos emocionais do indivíduo permite aos advogados e aos julgadores tomarem decisões baseadas não apenas nas leis, mas fazê-las de forma mais abrangente, levando em consideração a personalidade, as percepções, as motivações internas (vingança, perseguição, humilhação pública, etc.) e o contexto vivencial dos indivíduos, possibilitando que o direito, aliado a outros saberes, esteja mais bem preparado para promover a Justiça.


[1] DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2019. p. 219, 266, 316, 512.

[2] Op. cit. p. 316, 460 e 687.

[3] FOLHA DE S. PAULO. Advogados de Lula consultaram psicóloga para acusar Moro de "sede de poder" na ONU. Acesso em 04/06/2022. Disponibilizado em 28/04/2022.

[4] CRUZ, Nuno Gundar. A figura da testemunha-perito no contexto das ações de responsabilidade civil médica: realidade ou ficção? Lex Medicinae, v. 9, n. 18, p. 183-196, 2012.

[5] CASCAES, Amanda Celli. A testemunha técnica (expert witness) e a controvérsia acerca de sua possível aceitação no direito processual civil brasileiro. Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 6, n. 4, p. 137-176, 2020.

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