Fazer as pazes com a natureza: conciliação e o Dia Mundial do Meio Ambiente
4 de junho de 2022, 8h03
O ano de 1972 foi marcado pela realização da Primeira Conferência das Nações Unidas que teve como tema o meio ambiente. A conferência, realizada em Estocolmo, instituiu, no dia 5 de junho, o Dia Mundial do Meio Ambiente, com o objetivo central de que as nações, governos e sociedade civil tivessem a oportunidade de refletir sobre os problemas que envolvem as relações do homem com a natureza e a necessidade de preservação dos recursos naturais, fonte única da vida no planeta Terra.

A Conferência de Estocolmo marca, no tempo histórico contemporâneo, o início da mudança de paradigma que caminha de uma visão de mundo extrativista, em que os recursos naturais eram tratados como inesgotáveis, para uma visão integral e sistêmica, em que os elementos da natureza devem estar na centralidade das estratégias de desenvolvimento social e econômico, como forma de se viabilizar um mundo inclusivo, justo, com pleno respeito aos direitos humanos, em que a dignidade dos seres vivos, em seu conjunto, represente a única expressão possível para um planeta saudável.
Há 50 anos, uma das declarações emanadas da Conferência de Estocolmo, em comum acordo entre as nações, foi a de que "A proteção e o melhoramento do meio ambiente humano é uma questão fundamental que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento econômico do mundo inteiro, um desejo urgente dos povos de todo o mundo e um dever de todos os governos".
De lá para cá houve um salto significativo, entre as nações, na formulação de políticas públicas e ações estatais e privadas visando orientar, direcionar e coibir as práticas potencial ou efetivamente degradadoras. Notadamente, normas de ordenamento do uso de recursos naturais, também o licenciamento ambiental de atividades potencialmente poluidoras e a fiscalização de ações em desconformidade com a lei tiveram, no Brasil, um amplo desenvolvimento.
Houve um enfoque direcionado e acentuado nas medidas de comando e controle, ou seja, elaboração de normas seguidas de instrumentos de controle e punição, seja criminal ou administrativa, além da reparação de danos, pela via civil.
É um fato que a quase ausência de fomento governamental visando o estabelecimento de incentivos à proteção do meio ambiente, como também, a ausência de incentivos direcionados a mudanças nos padrões e tecnologias envolvendo o uso de recursos naturais, como a falta de planejamento territorial, a partir da matriz ecológica, a falta de uma visão de desenvolvimento nacional, tendo como elemento central o equilíbrio e a sustentabilidade, orientando para fontes energéticas limpas, incremento no saneamento básico, dentre tantas outras estratégias que pudessem direcionar o desenvolvimento econômico para a sustentabilidade, acabou por instalar, em território nacional, uma zona de conflitos.
Isso porque, se de um lado não há um direcionamento claro e consistente para um desenvolvimento nacional, baseado nos princípios da sustentabilidade, e de outro lado fortalece-se o estabelecimento de leis — e o Brasil foi profícuo na produção de normas prevendo condutas e punições na área ambiental — bem como fortalecem-se os instrumentos de controle no cumprimento de leis, de forma generalizada, estabelece-se um modelo de Estado punitivo que minimiza o seu papel na condução dos destinos sociais e econômicos e amplifica o seu papel autocrático no uso da força e do poder de polícia como única ação válida e necessária.
Esse modelo está refletido e validado na sociedade brasileira e reforçado, em todas as mídias nacionais que questionam, na atual política ambiental, o desincentivo as ações de fiscalização sobre o desmatamento na Amazônia, por exemplo, sem questionar a omissão dos governos no estabelecimento das estratégias de fomento e direcionamento planejado ao desenvolvimento sustentável no âmbito da mega floresta.
Isso estabeleceu uma equação social complexa, pois se de um lado não são ofertadas alternativas e incentivados novos modelos de desenvolvimento e, de outro lado, o modelo vigente — uso irrestrito de recursos naturais para a produção — é passível de punição, estabelece-se um ambiente de contradição, num ciclo fechado, para o qual não há saída viável. O conflito emerge, os danos ambientais aprofundam-se, tal qual o distanciamento da sociedade da realidade subjacente.
Esse é o pano de fundo para o atual debate nacional, ideológico, sobre os temas do meio ambiente. De um lado os ambientalistas e de outro os desenvolvimentistas. Uma polarização que acirra opiniões, coloca as partes em profundo conflito, divide a sociedade e estabelece um ambiente de intolerância. A depender do grupo que esteja no poder, a pauta de meio ambiente será conduzida mais para um lado ou mais o outro, amplificando os problemas no tempo e no espaço.
Estamos falando do Brasil, mas essa é uma realidade que transcende as fronteiras nacionais. Tanto que, em 2021, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) lançou o relatório "Fazer as Pazes com a Natureza", estabelecendo uma síntese sobre como as mudanças do clima, a perda de biodiversidade e a poluição podem ser enfrentadas para que seja estabelecida uma mudança global, visando fechar lacunas entre o modelo atual de desenvolvimento e aquele necessário para alcançar o desenvolvimento sustentável.
O citado relatório inicia com a frase do Secretário Geral das Nações Unidas, Antonio Guterres: "A humanidade está travando uma guerra contra a natureza. Isso é sem sentido e suicida. As consequências de nossa imprudência já são aparentes no sofrimento humano, nas enormes perdas econômicas e na acelerada erosão da vida na Terra".
O documento indica que governos, empresas, sociedade civil, instituições educacionais, mídia e indivíduos devem considerar a natureza em suas políticas e decisões.
A estratégia indicada é a de incluir os custos ambientais nos preços, acabar com os subsídios aos combustíveis fósseis, investir em soluções e tecnologias inovadoras que reduzam o uso de recursos naturais ou não apresentem adicionalidades poluidoras e ainda sejam estabelecidas ações efetivas de restauração da natureza, enquanto se altera a cultura do desperdício, do consumo excessivo e da degradação.
Esse conjunto de medidas antevê um mundo mais saudável, com maior igualdade, num clima estável que evite as migrações em massa e a escassez que gera pobreza, sofrimento e vida hostil. A esse conjunto de ações a ONU denominou como iniciativas capazes de realizar as pazes da humanidade com a natureza.
É preciso que se faça uma reflexão importante: o caminho para as pazes com a natureza implica, antes de mais nada, no estabelecimento de instrumentos que ampliem o diálogo, a escuta ativa e estabeleçam meios adequados de solução de conflitos.
Os institutos jurídicos precisam dar resposta as necessidades, problemas e expectativas sociais básicas e, na pauta ambiental, aproximar visões diferentes sobre os mesmos recursos naturais e a forma de sua exploração, enquanto o Estado e a sociedade em geral realizam a tarefa que lhes incumbe de agentes promotores de novo modelo de desenvolvimento.
Quanto aos meios adequados de solução de conflitos, é importante que se registre que a legislação nacional já absorve, de modo amplo, essa ideia. O Novo Código de Processo Civil incentiva os métodos alternativos para a resolução das disputas. Nesse sentido, o parágrafo 3º do artigo 3º do CPC traz previsão expressa na utilização desses meios nos seguintes termos: "A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processos judicial". O parágrafo 2º. do mesmo artigo dispõe que "o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos".
Louváveis, portanto, as alterações ao Decreto 6.514, de 2008 que trata, no âmbito do poder executivo federal, das infrações ambientais e o procedimento de sua apuração.
Com recente alteração, promovida pelo Decreto 11.080, de 24 de maio de 2022, ficou então estabelecido, nos termos do Artigo 95-A: "A conciliação e a adesão a uma das soluções legais previstas na alínea 'b' do inciso II do § 1º do artigo 98-A serão estimuladas pela administração pública federal ambiental, de acordo com o disposto neste decreto, com vistas a encerrar os processos administrativos federais relativos à apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente".
Como ensina Vladimir Passos de Freitas: "A conciliação é uma das soluções legais possíveis para encerrar o processo, que eram previstas de modo exemplificativo no artigo 98-A, § 1º, II, 'b', passam a ser estimuladas pela administração pública. Na redação dada pelo novo decreto, este artigo é alterado, prevendo-se expressamente as soluções: desconto para pagamento da multa, parcelamento e conversão da multa em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente. Prevê-se um regulamento para disciplinar o procedimento para a adesão a uma dessas soluções legais (95-B) e que o pagamento da multa ambiental consolidada será interpretado como adesão à solução legal e implicará no encerramento do processo administrativo. No entanto, não está claro nos casos em que houver pagamento quanto ao encerramento depender da reparação do dano ambiental" [1].
O Decreto 6.514, editado em 2008, basicamente é adotado ou inspira todas as legislações estaduais e municipais brasileiras no trato jurídico das infrações ambientais. Sendo assim, nasce no arcabouço jurídico nacional uma semente que se abre na busca de formas mais diretas e céleres, não só pacificando as relações entre as ações de fiscalização e as atividades produzidas em contrariedade à legislação, mas também permitindo um caminho de reconstrução do ambiente, a partir da reparação imediata de danos ambientais e medidas efetivas direcionadas à harmonização entre atividades econômicas e a natureza.
O dispositivo, se bem aplicado em medidas conciliatórias efetivas, em que os argumentos das partes e a realidade social e econômica de infratores sejam considerados, em que a escuta ativa e neutra ideologicamente sejam a tônica, pode sim constituir-se num grande passo em direção a construção de paz com a natureza, propalada pela Organização das Nações Unidas.
Nesse ponto, há um alerta imprescindível aos operadores jurídicos, sobretudo a advogados: conciliação não é litígio. É preciso arrefecer-se ânimos, dogmas, o espírito combativo e a ideia central que subjaz nas demandas litigiosas de que o argumento e a tese são impérios indeléveis.
Conciliar envolve pacificar, harmonizar interesses, olhar o bem comum e maior que é o ambiente, a natureza, e ceder em posições intransigíveis. Na conciliação sobrepuja a máxima de que mais vale um bom acordo do que um ótimo litígio.
O caminho para a paz com a natureza requer pessoas de boa vontade e a compreensão ampla de que vivemos numa única Terra e que não há plano b ou rota de saída. A contribuição de todos nesse caminho é imprescindível e as instituições jurídicas têm muito por fazer nessa direção.
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