Opinião

Lei Henry Borel cria novos mecanismos de proteção contra violência doméstica

Autor

  • Francisco Sannini Neto

    é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pós-graduado com especialização em Direito Público professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo professor da pós-graduação em Segurança Pública do Curso Supremo professor do Damásio Educacional e do QConcursos e delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

3 de junho de 2022, 10h02

Foi publicada a Lei 14.344/22, batizada como "Lei Henry Borel", em homenagem ao menino vítima de homicídio praticado no âmbito doméstico e familiar [1]. O novo diploma normativo que, na verdade, reproduz boa parte do conteúdo da Lei Maria da Penha, figura como mais um exemplo do fenômeno conhecido como "especificação do sujeito de direito", cujo objetivo é dar, por meio de lei, tratamento especial para pessoas em condição de maior vulnerabilidade, promovendo, assim, o princípio constitucional da igualdade.

Conforme destaca o artigo primeiro da lei, seu objetivo é criar mecanismos de proteção e enfrentamento da violência doméstica e familiar, o que, vale dizer, vai ao encontro dos artigos 226, §8º e 227, §4º, da Constituição da República, bem como aos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil.

Entre os mecanismos de proteção, destacamos a possibilidade da decretação de medidas protetivas de urgência em benefício de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica ou familiar (ex: suspensão da posse de arma de fogo, afastamento do lar, proibição de qualquer tipo de contato com o menor etc). Registre-se que, diferentemente da Lei Maria da Penha, a Lei Henry Borel prevê, expressamente, que as medidas protetivas sejam provocadas pelo MP, pelo Delegado de Polícia, pelo Conselho Tutelar ou por qualquer pessoa que atue em favor da criança ou do adolescente [2].

É notável que a finalidade do legislador foi criar uma rede de proteção aos menores de idade, fazendo com que toda a sociedade colabore com a repressão desse tipo de violência doméstica ou familiar, o que é evidenciado pelo artigo 23, da Lei, que prevê ser dever de qualquer pessoa que tenha ciência de ação ou omissão que caracterize violência doméstica, comunicar o fato, imediatamente, às autoridades competentes.

Na mesma linha, o artigo 26 tipifica a conduta de deixar de comunicar à autoridade pública (delegado de polícia, MP, Conselho Tutelar etc.) a prática de violência doméstica e familiar contra criança ou adolescente. Trata-se, no caso, de crime comum e que pode ser praticado por qualquer pessoa, não sendo exigido um vínculo entre o autor e o menor. Não por acaso, se a omissão for praticada por ascendente, parente consanguíneo até terceiro grau, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima, a pena será aplicada em dobro.

Destaque-se, ainda, que nos moldes da Lei Maria da Penha, nas hipóteses de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da criança e do adolescente, a Lei Henry Borel autoriza que o delegado de polícia decrete o afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima, desde que a violência seja perpetrada em município que não seja sede de comarca. Se o delegado de polícia não estiver disponível no momento da denúncia, o afastamento pode ser ordenado pelo próprio policial, devendo, em todos os casos, ser comunicado o juízo competente no prazo de 24 horas. Interessante salientar que a lei também confere ao conselho tutelar a prerrogativa de representar às autoridades indicadas pelo afastamento do lar do agressor.

Aspecto polêmico da Lei 14.344/22, envolve a previsão do seu artigo 29, que acrescenta ao artigo 226, do ECA, o §1º, com o seguinte teor: "Aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995". Tendo em vista que o caput do artigo 226 se refere aos crimes previstos no ECA, questiona-se: esta regra se aplica aos crimes praticados no âmbito doméstico e familiar previstos no Código Penal?

Em resposta, vislumbramos duas correntes. Uma primeira corrente, se valendo de uma interpretação sistemática do artigo 226, do ECA, defenderá que a regra só se aplica aos crimes previstos neste Estatuto. Não é esse o nosso entendimento. Isto, pois, a própria Lei 14.344/22, declara a sua finalidade de prevenir e enfrentar a violência doméstica contra menores, cabendo ao operador do Direito interpretar suas normas da forma que melhor tutele os interesses jurídicos em jogo. Nesse sentido, aliás, dispõe o artigo 4º, da Lei Maria da Penha [3], com aplicação subsidiária expressamente indicada na Lei em estudo [4].

Ora, a Lei 9.099/95 é um diploma que apresenta diversos institutos despenalizadores e, consequentemente, favoráveis aos autores de crimes. Justamente por isso, a Lei Henry Borel, tal qual a Lei Maria da Penha, afasta a incidência da referida legislação nos crimes praticados em um contexto de vulnerabilidade doméstica e familiar, seja contra menores, seja contra as mulheres. Com efeito, pouco importa a lei em que esteja criminalizada a conduta, bastando que a infração envolva violência doméstica e familiar contra criança ou adolescente.

Em reforço, caso prevaleça a tese defendida pela primeira corrente aqui apresentada, os próprios crimes trazidos pela Lei em estudo permitiriam os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, o que não nos parece ter sido a vontade do legislador. Note-se que no crime de Descumprimento de Medida Protetiva de Urgência, previsto no artigo 25, da Lei, foi proibida a concessão de fiança ao infrator pelo Delegado de Polícia, o que escancara o rigor desejado pelo Poder Legislativo. Deveras, não teria sentido proibir a fiança para os autores do crime, mas permitir que a prisão em flagrante fosse substituída pela simples lavratura de um Termo Circunstanciado, sem a possibilidade de recolhimento ao cárcere do suspeito.

Desse modo, entendemos que o crime de Maus Tratos, assim como os crimes de Abandono de Incapaz ou Abandono Intelectual, praticados em um contexto de vulnerabilidade doméstica e familiar, não admitem os benefícios de Lei 9.099/95, sendo possível a prisão em flagrante de seus autores.

Por fim e sem ter a pretensão de exaurir os nossos comentários sobre o novo diploma normativo, vale destacar que no intuito de qualificar os rigores impostos aos autores de crimes, nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e adolescente, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou de outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

Em conclusão, tendo em vista as inovações promovidas pela Lei e que repercutem em diversas searas, foi fixado um período de vacatio legis de 45 dias da data de sua publicação.


[1] Mister consignar que os posicionamentos aqui expostos são fruto de debates promovidos com colegas delegados de polícia, notadamente os professores Eduardo Cabette, Joaquim Leitão e Bruno Gilaberte.

[2] Nos termos do artigo 16, §1º, da Lei, as medidas protetivas poderão ser concedidas de imediato pelo juiz, independentemente da oitiva das partes e da manifestação do MP.

[3] Artigo 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

[4] Artigo 33. Aos procedimentos regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente, no que couber, as disposições das Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e 13.431, de 4 de abril de 2017.

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    é mestre em Direitos Difusos e Coletivos, pós-graduado com especialização em Direito Público, professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo, professor da pós-graduação em Segurança Pública do Curso Supremo, do Damásio Educacional e do QConcursos, autor de livros jurídicos e delegado de polícia do estado de São Paulo.

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