Opinião

Changri-lá e o novo caso de imunidade perante à Corte Internacional de Justiça

Autores

  • Sarah Tonani Pereira Cançado Ribeiro

    é mestranda em Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG.

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

3 de junho de 2022, 19h19

No último dia 25 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou parcialmente procedentes os embargos de declaração interpostos pelo Ministério Público Federal (MPF) no caso Changri-lá, controvérsia envolvendo a imunidade de jurisdição do Estado alemão perante o judiciário brasileiro relativo ao afundamento do barco pesqueiro em 1943 na costa de Cabo Frio (previamente comentado aqui na ConJur). Com isso, adotou-se a tese, em repercussão geral, de que "atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos, dentro do território nacional, não gozam de imunidade de jurisdição" (ênfase adicionada representa a alteração da tese pelo STF).

Mesmo com essa modificação, a tese continua, como observado em sede doutrinal "ainda mais ampla do que as exceções já reconhecidas em outros tribunais nacionais" [1] e pelo direito internacional. Ademais, o posicionamento do STF parece estar em contraste com a norma de direito internacional costumeiro identificada pela Corte Internacional de Justiça (CIJ, "Corte" ou "Corte da Haia") no caso Imunidades Jurisdicionais do Estado (Alemanha v. Itália), de 2012. Houve resistência à decisão da CIJ pelas cortes italianas e, em desenvolvimento recentíssimo, em 29 de abril de 2022, a Alemanha instituiu uma nova ação na CIJ, alegando a continuidade da violação de sua imunidade de jurisdição e execução pela Itália.

Os dois casos se conectam na medida em que ambos tocam no escopo e conteúdo do costume internacional relativo à imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro. Este artigo tem o objetivo de especular sobre o significado da recente prática brasileira  sutilmente modificada em sede de embargos declaratórios — à luz do recente caso trazido perante a Corte Internacional de Justiça. Para tanto, o artigo é dividido em quatro partes. A primeira seção contextualiza o caso Changri-lá na saga sobre imunidade estatal entre Alemanha e Itália. A segunda seção esclarece as mudanças trazidas pelo julgamento dos embargos de declaração no caso Changri-lá à prática brasileira. A terceira parte especula sobre como essa prática poderia ser levada em consideração pela CIJ em um novo julgamento sobre imunidades. Por fim, explora-se conclusivamente o potencial impacto de uma decisão da CIJ em relação ao direito brasileiro e sua recepção pelo Supremo Tribunal Federal.

Contínua saga das imunidades no Direito Internacional
O direito garantindo a imunidade de jurisdição de um Estado é uma antiga e bem sedimentada regra costumeira do ordenamento jurídico internacional reconhecida em tratados e em tribunais nacionais. A sua contestação pela Itália teve início em 2004, com a decisão da Corte Constitucional Italiana no caso Ferrini.

Na ocasião, confirmou-se a jurisdição das cortes italianas para julgar ações de reparação contra a Alemanha por graves violações a regras internacionais ocorridas durante a 2ª Guerra Mundial, sob o fundamento de que a imunidade estatal não se aplica para atos considerados crimes no direito internacional. Em seguida, inúmeras ações de reparação semelhantes foram julgadas procedentes pelas cortes italianas, algumas inclusive chegando à fase de execução. Isso levou a Alemanha a instituir uma causa na Corte Internacional de Justiça em 2008, alegando a violação de sua imunidade de jurisdição e execução pela Itália.

No julgamento do caso em 2012, a Corte concluiu não haver, no direito internacional costumeiro, exceção à imunidade estatal por graves violações de direitos humanos e direito humanitário. O comportamento da Itália excepcionando a regra estava, portanto, em contradição com a regra geral. A Itália foi condenada a cessar os efeitos das decisões judiciais em violação à imunidade alemã.

Em 2014, adveio a Sentença nº 238 da Corte Constitucional Italiana que declarou a inconstitucionalidade das normas nacionais que obrigam o Estado a conformar com o julgamento da CIJ no caso Imunidades Jurisdicionais do Estado. Em síntese, o principal argumento utilizado foi de que a garantia constitucional de acesso à justiça deve prevalecer sobre a obrigação internacional de respeitar o julgamento da Corte Internacional de Justiça nesse caso.

Em setembro de 2021, o Brasil ofereceu sua contribuição ao debate sobre a saga das imunidades quando o STF decidiu o caso Changri-lá. Na ocasião, o entendimento prevalente, articulado no voto do ministro relator Edson Fachin, foi de que a imunidade de jurisdição estatal cessa diante de atos ilícitos relacionados a violações de direitos humanos. Na origem, trata-se de uma ação de indenização contra a Alemanha instituída pelos familiares das vítimas do afundamento do barco pesqueiro Changri-lá.

Com alguma semelhança à Corte Constitucional Italiana na sentença 238, o STF esposou que a prevalência dos direitos humanos prevista na Constituição brasileira (artigo 4º, II) justifica a não aplicação da imunidade alemã no caso. Além disso, dispensou-se o entendimento da CIJ no caso Imunidades Jurisdicionais do Estado com base na norma de que os julgamentos da Corte são obrigatórios apenas para as partes da disputa (artigo 59 do Estatuto da CIJ). Ambos os argumentos e a tese fixada têm suas fragilidades, como apontado em artigo anterior. Com o julgamento dos embargos de declaração, fixou-se a tese de que estados estrangeiros não gozam de imunidade de jurisdição em relação a atos ilícitos que violam de direitos humanos praticados em território nacional.

O STF ofereceu uma solução certamente voltada ao aspecto doméstico da questão. Uma leitura possível é a de que o Tribunal não sentiu necessidade de identificar uma exceção à regra consuetudinária internacional (como identificada pela CIJ), vez que a Constituição brasileira resolvia o problema. No entanto, é difícil encontrar uma resposta convincente para o lado internacional da história: não há um envolvimento adequado com o direito internacional, tampouco uma apreciação de outro princípio importante que sustenta a regra da imunidade, também presente na Constituição: o da igualdade soberana dos Estados. Como se sabe, e ora se colhe da vicenda italiana, a resposta jurídica enraizada nos argumentos internos não está isenta de obstáculos internacionais.

Conforme mencionado, a Alemanha instituiu nova petição contra a Itália na Corte Internacional de Justiça, por não respeitar o julgamento anterior da Corte, receber novas ações de reparação contra a Alemanha e, em algumas dessas ações, ordenar medidas de execução contra propriedades alemãs situadas em território italiano. A Itália reagiu criando um fundo de reparação para as vítimas de violações perpetradas pela Reich alemão contra italianos ou em território italiano. Isso levou à retirada do pedido da Alemanha por medidas provisórias. O problema jurídico, contudo, subsiste. Ao que tudo indica, o caso deve continuar e pode-se esperar um novo pronunciamento da Corte Internacional de Justiça na saga de imunidades. Será o caso do STF utilizado pela Itália em suas argumentações, ou ali ter-se-á um vislumbre da posição do Estado alemão em relação ao caso brasileiro?

Julgamento dos embargos de declaração
Originalmente, a tese fixada pelo STF no caso Changri-lá foi de que "atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição". 

Contra esse julgamento, foram interpostos dois embargos de declaração. O recurso da União defendeu que a tese se aplicaria apenas a graves violações de direitos humanos no contexto de crimes de guerra, em sentido mais próximo ao entendimento italiano, enquanto o recurso do MPF, além disso, argumentou pela limitação territorial da tese fixada.

O STF rejeitou os embargos da União sob o fundamento de que a delimitação da questão constitucional "não se restringiu especificamente a atos cometidos durante período de guerra, mas sim a atos de império ofensivos ao direito internacional da pessoa humana", confirmando, portanto, a amplitude da tese fixada e, igualmente, sua singularidade no cenário internacional. Além disso, o relator ponderou que no julgamento de mérito foram destacados "diversos tratados internacionais que mitigaram a imunidade de jurisdição estatal, sem qualquer referência específica aos atos ilícitos cometidos em períodos de guerra".

Como mencionado, o recurso do Ministério Público Federal foi acolhido em relação à limitação territorial. Contudo, rejeitou-se a restrição da exceção à imunidade estatal a "crimes internacionais que impliquem grave violação aos Direitos Humanos e ao Direito Humanitário". Segundo o STF, essa formulação tornaria a futura aplicação da tese mais difícil, por não haver definição pacífica do que seriam crimes internacionais.

A tese fixada pelo STF no caso Changri-lá após o julgamento dos embargos de declaração, ainda que mais restrita, continua em contradição com o entendimento da Corte Internacional de Justiça no caso Imunidades Jurisdicionais do Estado. Nesse caso, a CIJ concluiu que o direito internacional costumeiro exige o reconhecimento da imunidade estatal por danos cometidos no território de outro Estado durante um conflito armado.

O STF parece assumir muito rapidamente que a exceção territorial se aplica em períodos de guerra, sem analisar a fundo a prática estatal existente ou outros elementos que consubstanciem a tese.

Por outro lado, não se utiliza a constituição para limitar a aplicação do direito internacional como fez o STF ao defender a exceção à imunidade estatal por violação de direitos humanos no julgamento de mérito do caso Changri-lá.

A tese da exceção territorial, ao mesmo tempo que limita a exceção por violação de normas de direitos humanos, acaba por inserir um fundamento independente para o não reconhecimento da imunidade de Estados estrangeiros.

Trata-se de exceção à imunidade para ações de indenização por danos ocasionados por Estado estrangeiro no território do Estado do foro. Já a exceção por violação de direitos humanos foca no conteúdo material das normas violadas para justificar o exercício de jurisdição inclusive em relação a atos iuri imperii de Estado estrangeiro.

Prática brasileira aos olhos da CIJ
No julgamento do caso Imunidades Jurisdicionais do Estado, a Corte Internacional de Justiça citou o caso Barreto v. República Federativa da Alemanha, decidido pela justiça federal do Rio de Janeiro em 2008, que manteve a imunidade da Alemanha pelo afundamento do barco pesqueiro Changri-lá (para. 74).

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal reformou esse entendimento jurisprudencial e decidiu pela não aplicação da imunidade alemã no caso. Pode-se questionar quais seriam os resultados caso a Corte da Haia seja levada a reexaminar a prática em relação à imunidade de Estados.

Como se viu, ao contrário da decisão de 2008 da Justiça Federal, o atual entendimento do STF no caso Changri-lá é irrecorrível e deve ser obrigatoriamente aplicado pelas instâncias inferiores. Ou seja, trata-se da posição "última" do judiciário brasileiro em relação à questão. Além disso, a decisão do STF no caso Changri-lá é uma peça-chave da prática estatal em apoio à 1) exceção territorial à imunidade estatal em tempos de guerra e à 2) exceção à imunidade em razão do conteúdo material da norma violada pelo Estado estrangeiro. Nas palavras do ministro relator Edson Fachin: "no caso, em relação ao local dos fatos, conforme consta no acórdão do Tribunal Marítimo, estes teriam ocorrido no mar territorial brasileiro (…) Assim, pela proposição [do artigo 12 do Draft Articles on Jurisdictional Immunities of States and Their Property de 1991] não haveria imunidade". Em um segundo momento, o relator cita o caso Ferrini e conclui que "ou não há ato de império", que seria descaracterizado diante da violação de normas jus cogens, "ou a imunidade dele decorrente deve ceder diante da preponderância dos direitos humanos, tal como visto, determina a Constituição brasileira".

Dois monólogos entre STF e CIJ?
A decisão do caso Changri-lá e a nova ação alemã na Corte Internacional de Justiça se entrecruzam nas fronteiras entre o direito internacional e o direito nacional. Sob uma lente de política externa jurídica, o posicionamento do Estado brasileiro em relação à regra da imunidade de jurisdição articulada no poder judiciário é uma peça importante de uma prática emergente que, intencionalmente ou não, pode combalir a regra internacional. Contudo, não só de posicionamentos do judiciário se forma a prática estatal [2]. Ainda assim, não será surpreendente se o time de defesa italiano buscar revisitar a regra costumeira identificada em 2012.

O grande problema nessa dupla novidade é o fato de que dois lados da narrativa não se encontram. A Corte da Haia mantém-se arvorada numa regra internacional que o Tribunal de Brasília evitou tocar em sua argumentação. A ausência de diálogo, representada pelos monólogos das duas Cortes, poderá significar alguma incerteza para o direito enquanto uma posição definitiva não for alcançada. Quanto à aplicação da exceção territorial durante conflitos armados, há maior possibilidade de diálogo entre as cortes, visto que a argumentação do STF se fundamentou na prática estatal e não no regime constitucional brasileiro. Embora não tenha sido aceita pela Corte Internacional de Justiça no caso de 2012, a tese da exceção territorial foi defendida pelo juiz Giorgio Gaja em sua opinião dissidente.

Após analisar detidamente a prática em relação à aplicação da exceção territorial em períodos de conflitos armados, Gaja concluiu que as condutas dos Estados são razoavelmente variadas. Para o juiz, trata-se de uma área em desenvolvimento no direito internacional, de modo que os Estados poderiam adotar condutas diferentes sem necessariamente violar normas jurídicas. Levando isso em consideração, uma revisão da prática estatal pela CIJ no novo caso poderá novamente adentrar nessa questão.

A nova causa na Corte da Haia é prova cabal de que o Estado alemão está fortemente disposto a defender a regra da imunidade jurisdicional tal como reconhecida pela Corte em 2012. Vez que o caso Changri-lá encontra-se em pleno contraste com esse posicionamento, é possível que uma reafirmação da regra identifique a prática brasileira, pela voz autoritativa do principal órgão judiciário da ONU, como uma violação do direito internacional.


[1] SALIBA, Aziz Tuffi; LIMA, Lucas Carlos. The Law of State Immunity before the Brazilian Supreme Court: what is at stake with the "Changri-la" case?. Revista de Direito Internacional, vol. 18, nº 1, 2021, pp. 53-59.

[2] GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Imunidade de Jurisdição dos Estados e Poder Executivo Brasileiro: Os Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty. Revista de Direito Internacional, v. 18, 2021, pp.163-193.

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