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Consultor Jurídico

Bárbara Kruse: Direito “Sobre-Humano”

3 de junho de 2022, 15h01

Por Bárbara Cristina Kruse

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Não há como negar a importância dos Direitos Humanos na seara normativa e social. Apesar de vivermos em tempos sombrios, no que tange a ciência e na garantia de direitos mínimos, a noção de direitos humanos inter-relaciona-se com a dignidade da pessoa humana. Não é preciso divagar muito no tempo histórico para se pensar no quanto o ser humano deixou a ética e a razoabilidade de lado, no intento de praticar atos inadmissíveis e depravados com seus pares. Os campos de concentração nazistas, os crimes de guerra cometidos e os armamentos nucleares utilizados, são figurinos pretéritos que não devem ser repetidos hodiernamente. Por isso, a importância de se estabelecer um mínimo de observância universal que promova o respeito de determinados direitos e liberdades. O espírito da fraternidade, como resultado, deve ser o âmago condutor de limites políticos e sociais, tal como prescrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotado e proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948.

Ocorre que, ao examinar linha a linha do respectivo documento, é notável a ausência da palavra "meio ambiente" ou qualquer outra noção ecológica na mesma Declaração. Deste modo, em 30 artigos escritos não há menção quanto a necessidade humana de um ambiente ecologicamente equilibrado, tampouco prospecção de uma sustentabilidade planetária. Por certo, na época da respectiva Declaração [1948] a questão ambiental não era uma preocupação vivenciada. No entanto, ainda assim pode-se dizer que há uma lacuna documental, pois desde o início do século 20 litiga-se no cenário internacional assuntos quanto ao ambiente e a qualidade de vida da população.

Oportuno mencionar a arbitragem que durou cerca de 15 anos (1926-1941), acerca da poluição atmosférica transfronteiriça entre Canadá e Estados Unidos. No caso em questão, foi analisado se a Fundição Trail de zinco e chumbo, localizada na cidade Trail, Colúmbia Britânica, na costa oeste do Canadá, poderia ser a responsável pela fumaça tóxica que afetava os moradores e os agricultores de Newport, do estado de Washington, no extremo da região noroeste dos Estados Unidos. Como desfecho, o Canadá foi declarado responsável pelos danos causados pela Fundição Trail e a fundição teve indenizar às pessoas afetadas por essa exposição tóxica. A respectiva arbitragem, é considerada a primeira manifestação do Direito Ambiental Internacional (MONIZ, 2012).

Nessa perspectiva, a abstenção da Declaração em qualquer menção que remeta a proteção, a preservação ou a conservação de ecossistemas, pode-se dizer que foi uma falha circundante do documento. Apesar de debates posteriores favorecerem a discussão ambiental, especialmente após 1972, não se pode deixar de mencionar a importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos para a humanidade.

A crise ambiental contemporânea, explorada nas ciências naturais e sociais, deita raízes no estilo de vida contemporâneo, com a cultura capitalista da obsolescência programada e com o frenesi produtivo. A argumentação escaldante quanto a pegada ecológica, o uso sustentável dos recursos naturais, as mudanças climáticas e os hábitos culturais, lançam provisões para uma atualização na respectiva Declaração. Até mesmo porquê, ainda que em uma visão hermenêutica extensiva, tal documento desconsidera a importância axiológica ambiental no tempo atualmente vivenciado.

É preciso, nesse cenário, uma nova Declaração Universal dos Direitos Humanos, na qual, inclusive, retraia a nomenclatura antropocêntrica quanto aos Direitos que se pretende albergar. Ora, é preciso desobstruir a relação do ser humano com a comunidade cósmica em um processo evolutivo e sistêmico com o universo e com todas as suas formas de vida (BOFF, 2004). Os Direitos não devem ser apenas humanos, mas sim "Sobre-Humanos", na medida que a natureza é essencial para a obtenção do ótimo ecológico terrestre.

Há de se considerar a Teoria de Gaia que aponta a Terra como um organismo vivo que possibilita as condições ideias para a existência da vida humana em uma relação de retroalimentação. Conjuntamente, observa-se na Declaração de Toulun, proclamada em 29 de março de 2019, na França, que defende a personalidade jurídica animal. Tal defesa, dá-se com a constatação científica de que os animais não humanos possuem sensibilidade e inteligência.

É preciso, portanto, um novo olhar jurídico em relação à natureza como um todo. O elo entrelaçado entre os seres vivos, à dinâmica terrestre e a utilização do espaço, deve ser apercebido humanamente enquanto é tempo. As preocupações quanto às mudanças climáticas e a gestão dos recursos naturais devem centralizar uma nova Declaração do século 21, eis que as projeções científicas apontam cenários nebulosos e possivelmente catastróficos. Enquanto é tempo, defende-se a difusão do pensamento ecológico, tendo como a ética ambiental o cerne das temáticas jurídicas. A ética ambiental, como consequência, volta-se para a articulação normativa das relações humanas com a natureza e com a cultura, preocupando-se com o comportamento humano na sociedade e no ambiente (SIQUEIRA, 2002).

Fontes
Assembleia Geral da ONU. (1948). "Declaração Universal dos Direitos Humanos" (217 [III] A).
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
Balmond, L. Regad, C., & Riot, C. (2022). Declaração de Toulon. Revista Brasileira De Direito Animal, 16(3). https://doi.org/10.9771/rbda.v16i3.48055
MONIZ, Maria da Graça de Almeida D’Eça do Canto. DIREITO INTERNACIONAL DO AMBIENTE: o caso da fundição de trail. Diversitates, [s. l], v. 4, n. 2, p. 1-33, jul. 2012.

SIQUEIRA, Josafá Carlos de. Ética e meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002.