Opinião

Advocacia 5.0: o trabalho jurídico humanizado

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2 de junho de 2022, 18h02

Em maio de 2020 escrevemos um artigo abordando as lições que o estado de calamidade provocado pela pandemia ensinava aos escritórios de advocacia, o que viabilizou a Advocacia 5.0, graças à introdução de tecnologias inovadoras na rotina jurídica, impostas pela Covid-19.

Estávamos no segundo mês da pandemia e não imaginávamos quando teria fim. Até 2019, quando essa ameaça era uma narrativa de filmes de ficção científica, o termo "Advocacia 4.0" era muito difundido no meio jurídico, tanto nos escritórios de advocacia quanto nos departamentos jurídicos de grandes empresas.

Essa inovação permite o exercício da profissão com foco no ser humano e suas necessidades, criando condições para o surgimento de novas formas de trabalho, de gerenciamento e entrega de valor ao cliente.

Já se passaram dois anos. Enfrentamos uma crise global sem precedentes, a maior da nossa geração. Muitas decisões foram tomadas por empresas e governos com velocidade nunca vista. No começo de 2020 mudanças eram implementadas nos sistemas de saúde, na economia, na política e na cultura em questão de dias. E hoje podemos dizer que só sobreviveu quem agiu de forma rápida, inovadora e decisiva.

Artistas ficaram impedidos de realizar shows e optaram pelas lives. Hoje já podemos frequentar shows ao vivo novamente. Escritórios de advocacia, que antes da pandemia contavam com poucos colaboradores em trabalho remoto, durante a pandemia operavam 100% em home office. Atualmente o regime híbrido tem sido cada vez mais adotado por muitas das grandes bancas. Contudo, poucos voltaram 100% para o presencial, mesmo após a flexibilização das medidas de isolamento social. E por quê?

Antes de responder, vale destacar outras medidas adotadas para driblar a pandemia. O Poder Judiciário seguiu a tendência para não suspender a prestação jurisdicional. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, adotou o Regime Diferenciado de Atendimento de Urgência (RDAU), que não reduziu a produtividade dos magistrados, muito pelo contrário: com o uso de ferramentas de teletrabalho, videoconferência e escalas de plantão, os magistrados e servidores superaram todos os índices de produtividade pré-pandemia. Vale mencionar que em 2022 a advocacia no Rio de Janeiro enfrenta o ápice de outro obstáculo que é a inoperância quase que diária do sistema informatizado do TJ-RJ. Um exemplo assustador: em abril deste ano o sistema só funcionou perfeitamente em seis dias úteis! Bom, esse é outro assunto que infelizmente ainda não teve uma efetiva solução.

Voltando aos escritórios de advocacia, muitos completaram o primeiro mês da pandemia já operando 100% em home office, com resultados que, em muitos casos, revelaram aumento de produtividade de suas equipes. Através da utilização de várias ferramentas tecnológicas apropriadas foi possível avaliar a movimentação dos tribunais através do acompanhamento de atos processuais e, então, combinar esses dados com a demanda da equipe jurídica para gerar indicadores relevantes para a gestão de suas carteiras. Softwares como Google Meet, Teams e VPN passaram a ser utilizados com mais intensidade no dia a dia. E continuam sendo utilizados em 2022. As reuniões com clientes, que, não raro, implicavam deslocamentos aéreos, agora são realizadas pontualmente, sem custos e sem todo o transtorno que uma viagem aérea exige.

A verdade é que algumas bancas de advocacia já estavam preparadas para essa virada porque possuíam o famoso plano B, com sistemas web (na nuvem), ferramentas de videoconferência, jurimetria e links backups de internet. Faltava apenas o malsinado empurrão de uma pandemia para conseguir estender em poucos dias o home office para centenas ou mesmo milhares de colaboradores distribuídos pelo país inteiro. E todos imaginavam que duraria semanas, mas já se passaram mais de dois anos! Termos técnicos, antes dominados apenas pelo pessoal de TI, agora são discutidos em reuniões em que só participam advogados. É um diferencial contratar um data center com backbone (1) próprio em fibra óptica, conectado com os cabos submarinos em São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza, onde os servidores funcionam com backup em hot standby (2). No caso do escritório onde sou o sócio responsável pela área de Tecnologia e Inovação, desde março do ano passado investimos em mais servidores em "data center" e em "cloud".

E se a tecnologia viabilizou a continuidade do trabalho por conta da pandemia, mesmo em home office, com isolamento social, por que não manter esse regime, que implica economia com transporte, tempo, despesas com ocupação de imóveis etc.? A tecnologia aumentou a qualidade de vida dos colaboradores, que conseguem ficar mais tempo com seus filhos, evitam o desgaste do transporte público, conseguem praticar esportes etc. Manter o home office é uma prática de ESG (Environmental, Social and Governance — ou, em português, Ambiental, Social e Governança). Segundo o Pacto Global (3), o ESG nada mais é do que a própria sustentabilidade empresarial. Uma empresa que está em conformidade com práticas ESG entende quais são seus impactos negativos e positivos na sociedade e consegue agir sobre eles. Essas práticas indicam quanto um negócio busca formas de minimizar seus impactos no meio ambiente, construir um mundo mais justo e responsável para as pessoas em seu entorno e manter os melhores processos de administração.

Forçar um funcionário a se deslocar até o centro de uma grande cidade sem que isso implique aumento de produtividade? Manter um escritório com consumo de energia sem necessidade? Vale compartilhar um indicador interessante obtido a partir de pesquisa realizada em nosso escritório, denominada "Feedback de Home Office". A pesquisa foi realizada em cinco datas:

(1) em maio de 2020, bem no início da pandemia, 42,8% desejavam o modelo híbrido, enquanto que 32,3% desejavam continuar em home office e apenas 17,5% queriam voltar ao espaço físico;

(2) em dezembro de 2020, o percentual de colaboradores que desejava continuar em home office subiu para 66,5%, enquanto que 27,2% queriam modelo híbrido e apenas 4,2% sonhavam na volta ao espaço físico;

(3) em abril de 2021, 68,3% queriam continuar em home office, 26,6% queriam modelo híbrido e 3,4%, voltar ao espaço físico;

(4) em novembro de 2021, 74,8% queriam continuar em home office e 23,2% queriam modelo híbrido e apenas 2,0%, voltar ao espaço físico;

(5) e finalmente em fevereiro de 2022 ,81,2% queriam continuar em home office, 18,2% desejavam o híbrido e míseros 0,7%, voltar ao espaço físico.

A evolução desse indicador não deixa dúvida de que o colaborador de nosso escritório anseia continuar trabalhando em home office, pois já se adaptou ao uso da tecnologia adotada pelo escritório, com a nova rotina de trabalho em que já está imerso há mais de 2 anos e não consegue perceber vantagens no retorno ao trabalho presencial. Estamos falando de um grupo de mais de 400 pessoas.

O home office pode, sim, ser considerado uma boa prática de ESG, pois melhora a vida das pessoas, produz menos lixo, evita o uso de transporte público ou particular, estimula o consumo de produtos locais, reduz o uso de ar-condicionado.

Em 2015 António Guterres, secretário geral da ONU, disse que "a Agenda 2030 é a nossa Declaração Global de Interdependência". Com a tecnologia vivemos a era da globalização, que afeta as relações entre países, numa visão macro e gera impactos em toda a sociedade. A Agenda 2030 é um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade, que busca fortalecer a paz universal. O plano indica 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, e 169 metas, para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos. São objetivos e metas claras, para que todos os países os adotem de acordo com suas próprias prioridades e atuem no espírito de uma parceria global que orienta as escolhas necessárias para melhorar a vida das pessoas, agora e no futuro.

Na esfera do Poder Judiciário, como mediador em conjunto com os poderes Executivo e Legislativo, seria aplicável o ODS 16 "Paz, Justiça e Instituições Eficazes", que visa promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

O uso intensivo da tecnologia é um diferencial para boa parte dos escritórios de advocacia. A tomada de decisões passou a ser feita com base em dados nos últimos anos; é a cultura data-driven, com a tecnologia sendo a ferramenta mais relevante no impulsionamento de negócios. Ferramentas de tecnologia como robôs e APIs (Aplications Programming Interface), que permitem a integração entre sistemas, entre outras, já eram uma realidade na "advocacia 4.0".

Equilíbrio entre tecnologia e operadores do Direito
Com a pandemia, estávamos diante de uma quebra de paradigma, pois efetivamente tudo podia ser feito em qualquer lugar. A realidade hoje não é apenas da "advocacia 4.0", conceito ligado à Quarta Revolução Industrial. Na verdade, estamos diante da "advocacia 5.0", que ocorreu lá no início da pandemia, em que a tecnologia permitiu trabalhar de forma descentralizada, remota, com equilíbrio entre a tecnologia e os operadores do Direito. Neste contexto, inteligência artificial, big data e internet das coisas (IoT) são usadas para criar soluções com foco nas necessidades dos envolvidos independentemente da localização de cada um. O conceito "5.0" surgiu num projeto do governo japonês de "sociedade 5.0", que busca equilibrar o avanço econômico com a resolução de problemas sociais, proporcionando serviços necessários para o bem-estar a qualquer hora, em qualquer lugar e para qualquer pessoa. Um exemplo prático foi o impacto da Inteligência Artificial no Japão, um dos pilares da Sociedade 5.0, com boas práticas de desenvolvimento e de uso da informação em áreas como saúde, transporte e produtividade.

Praticamente vencemos a pandemia graças aos avanços da ciência, que abreviou anos para o desenvolvimento de vacinas eficazes contra o Covid-19. No transporte, surge o planejamento de cidades conectadas e inteligentes, possibilitando mais segurança pública, com menor custo de mobilidade.

Não seria exagero afirmar que a pandemia acabou. Hoje já podemos viajar, confraternizar num barzinho, ir ao cinema ou mesmo jantar fora. As crianças voltaram a frequentar a escola mesmo e sem protocolos de prevenção da Covid-19. E a produtividade não diminuiu, provavelmente porque a grande maioria está habituada ao trabalho longe de seus pares e gestores. Afinal, foram dois anos de prática intensiva!

Manter o home office ou trabalhar no regime híbrido traz benefícios para os colaboradores, para os escritórios de advocacia e também para os clientes. Boa parte das empresas ainda permite que seus funcionários trabalhem em home office, o que evita viagens cansativas para reuniões com duração de poucas horas.

Portanto, no início da pandemia era preciso levar em consideração todas as consequências a longo prazo dessa mudança de mindset. Entre as alternativas, além de vencer a ameaça imediata, buscávamos avaliar também como a sociedade funcionaria após a tempestade. Sim, a tempestade passou, a humanidade sobreviveu, pois a maioria de nós ainda está viva — mas habitamos um mundo diferente. Muitas pessoas e empresas não sobreviveram. E quem sobreviveu adotou novos hábitos, que já estão incorporados ao cotidiano. Não são raros os relatos de bancas de advocacia que estão produzindo mais do que antes do confinamento social, já que sem o deslocamento dos advogados até as sedes dos respectivos escritórios o tempo é melhor aproveitado.

A revista americana The New Yorker bem no início da pandemia relembrou um caso curioso: em 1846 ocorreu um surto de sarampo nas Ilhas Faroe, no Oceano Atlântico e 100% da população foi contaminada. Sessenta e cinco anos depois, houve outra epidemia de sarampo e todo mundo novamente foi contaminado, menos os que tinham mais de 65 anos: eles estavam imunizados desde o surto anterior.

Sobreviveram as empresas que se adaptaram mais rapidamente à nova realidade que a Covid-19 impôs a todos. Podem superar qualquer tipo de crise. Cresceram empresas de segmentos como e-commerce, produtos de higiene, telecomunicações e escritórios de advocacia adaptados à nova realidade. Após o fim do confinamento habitamos um mundo diferente, onde a competência ainda é um diferencial, pois não temos tantas chances para erros. Afinal, o mercado estará repleto de bons profissionais capacitados para assumir um posto de trabalho.

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(1) Backbone é uma infraestrutura responsável pelo transporte de dados, facilitando o controle de redes, conectando usuários sem fronteiras geográficas e centralizando a transferência de informações. Sua função é manter em pleno funcionamento todo um ecossistema de comunicação, que interliga pessoas e empresas em todo mundo via conexão com a internet.

(2) Esse conceito consiste na possibilidade de se ter dois servidores (principal e backup) atuando um como contingência do outro, ou seja, se o servidor principal falhar, um servidor de backup entra em ação imediatamente, sem perda da continuidade do processo. Diz-se do servidor em espera que está em modo hot standby.

(3) O Pacto Global é uma iniciativa proposta pela Organização das Nações Unidas para encorajar empresas a adotar políticas de responsabilidade social corporativa e sustentabilidade.

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