Opinião

Subtração internacional de crianças e aspectos inovadores da Resolução n° 449

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2 de junho de 2022, 6h07

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou, no final de março, Resolução CNJ n° 449/2022, que dispõe sobre a tramitação das ações judiciais fundadas na Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças (1980). Esta convenção é aplicável a qualquer criança que tenha residência habitual em um país signatário da norma, até que atinja a idade de 16 anos; sendo, da Justiça Federal, a competência para julgar a matéria relacionada à restituição internacional e visitação transnacional de criança nessa situação de subtração parental, nos termos do artigo 109, I e III, da Constituição.

A Resolução CNJ n° 449/2022 foi uma iniciativa da Corregedoria Nacional de Justiça, que iniciou e desenvolveu estudos voltados à edição de novo ato normativo e, nesse percurso, realizou várias consultas a órgãos e instituições envolvidas no tema da subtração internacional de crianças, inclusive à rede brasileira de juízes de enlace.

Aliás, a norma do CNJ inova ao trazer a previsão de regra sobre a atuação dos juízes de enlace para a Convenção de 1980 (artigo 26), com suas indicações feitas pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal brasileiro entre os desembargadores dos Tribunais Regionais Federais, havendo um juiz coordenador.

É importante destacar que os magistrados designados para a tarefa pelo ministro do STF passaram a integrar a Rede Internacional de Juízes da Haia, que busca facilitar a tramitação, entre países signatários, dos atos judiciais relativos aos tratados. Esta rede dá vida à Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, uma organização intergovernamental, integrada por 88 países com diferentes tradições jurídicas (são 88 países e os que integram a União Europeia), que tem por missão harmonizar as regras jurídicas entre eles, por meio da edição de instrumentos legais supranacionais. Uma área de relevante atuação da Conferência da Haia, é a proteção de crianças em situação de risco que envolva mais de um Estado nacional.

A Resolução CNJ n° 449/2022 indica um rol das atribuições dos juízes de enlace quanto às providências de: a) compartilhamento de informações gerais sobre a Convenção e da Rede Internacional de Juízes de Enlace; b) estímulo aos juízes na participação em seminários e eventos sobre os temas da convenção; c) estabelecimento de comunicações diretas com juízes brasileiros sobre casos específicos para colaborar na solução do impasse; d) manutenção de relações com as autoridades centrais brasileiras e todos que tenham envolvimento com o tema da proteção internacional de crianças sequestradas; e) atuação como intermediários entre magistrados competentes para as causas e as corregedorias para solução de problemas operacionais que dificultam o cumprimento das diretrizes; f) facilitação quanto à prática de atos processuais que envolvam a jurisdição do Estado de residência habitual da criança; g) identificação de dificuldades e obstáculos no curso dos processos e que se relacionem a pedido dirigido por autoridade central estrangeira; h) participação de reuniões da Corregedoria Nacional de Justiça em temas afetos à Convenção de 1980.

Quanto ao coordenador da Rede Brasileira dos Juízes de Enlace, a Resolução n° 449/2022 ainda prevê as seguintes atribuições: a) estabelecimento de contato com congêneres, autoridades centrais e outras autoridades no exterior, no interesse da Convenção de 1980 e com a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado; b) realização de comunicações diretas com juízes estrangeiros quanto a casos específicos para solucionar impasses detectados; c) coordenação da atuação dos juízes de enlace.

Além da estruturação da Rede Brasileira de Juízes de Enlace, pela resolução e também em decorrência de décadas de trabalho de membros do Poder Judiciário envolvidos no tema, há outras várias conquistas nessa matéria, que somente foram possíveis em razão da efetiva atuação dos órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Advocacia da União, da advocacia privada, bem como das autoridades e agentes de outros Poderes da República, destacando-se aqui a Autoridade Central brasileira (atualmente inserida na estrutura do Ministério da Justiça e da Segurança Pública), o Ministério das Relações Exteriores, o Departamento da Polícia Federal, entre outros.

Embora a resolução em comento não altere qualquer regra de direito material e de direito processual constante da legislação brasileira, porque ser ato normativo infralegal, sua publicação foi festejada por trazer determinações e orientações "complementares" à legislação em vigor no Brasil. Deste modo, destaca aspectos fundamentais para efeito de aplicação das normas da convenção, evidenciando a importância de tais aspectos sob o prisma do direito material convencional.

Além disso, consolida a orientação de que a União (através da sua Advocacia Geral) sempre atuará nos processos judiciais que envolvam os casos de pedidos de retorno da criança (artigo 6°) e os casos de regulamentação da visita no âmbito internacional (artigo 24), mesmo que não figure como autora da ação judicial. É certo que a República brasileira, ao aderir a Convenção de 1980, assumiu o compromisso internacional de cumprir as normas constantes da convenção, sendo que no plano interno do ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu-se que a União poderá ajuizar ação sob esse fundamento, e não como substituta processual da pessoa física que, em tese, teria sido abandonada no Estado da residência habitual da criança antes da transferência ou retenção ilícitas. Logo, o ato normativo do CNJ apenas deixa claro que a União poderá assumir qualquer um dos polos da demanda judicial, mesmo não sendo a autora, ou ainda atuar como amicus curiae (parte final do artigo 6°).

Há diversos aspectos inovadores na resolução, mas aqui destacaremos dois: o incentivo à mediação; e a necessidade de observância do tempo razoável do processo.

Valorizando o movimento de busca de solução mais adequada aos litígios em geral (Resolução n° 225/2010, do CNJ), a Resolução n° 449/2022 (artigo 13, caput) previu expressamente que a sessão (sessões) de mediação será (serão) realizada (s) na forma da lei processual civil (Código de Processo Civil e Lei n° 13.140/2015).

Houve previsão a respeito da possibilidade de a mediação ser realizada também por meios eletrônicos de comunicação a distância (artigo 13, § 1°), o que se revela muito importante nestes casos de aplicação da Convenção de 1980, reduzindo significativamente os custos e os prazos para tentar a solução consensual do litígio para o retorno mais rápido da criança, ou de sua permanência no território brasileiro. Basta assinalar que a sessão feita em meio eletrônico não exigirá o deslocamento físico da pessoa que se encontra em outro país para o território brasileiro, o que já representa avanço em matéria de agilidade, menor custo e maior efetividade na busca da solução amigável do conflito.

Também, em matéria de mediação, foi expressamente inserida a necessidade de se incentivar os pais da criança quanto aos direitos e deveres inerentes ao poder familiar (artigo 13, § 2°), o que revela a preocupação de que a criança não deixe de continuar convivendo com qualquer um dos pais; ao contrário: haja solução amigável que permita o exercício conjunto do poder familiar, o que não se confunde com a noção de guarda compartilhada (ou conjunta).

A busca da celeridade processual tem peculiaridades no tema, a começar com a prova documental e a tradução dos documentos em língua estrangeira. Nesse aspecto, a Resolução n° 449/2022 consolida a orientação quanto à possibilidade de utilização de recursos mais ágeis e menos custosos para a referida tradução (artigo 17). Assim, o recurso aos tradutores automáticos, sem necessidade de a tradução ser juramentada, pode ser utilizado em duas hipóteses expressamente previstas no ato normativo: 1) em caso de prova documental apresentada por pessoa que seja beneficiária de gratuidade de justiça; 2) na hipótese em que a versão juramentada da tradução do documento estrangeiro puder acarretar atraso desarrazoado no andamento do processo [1].

Com o recurso da tecnologia de informação, na atualidade, há vários aplicativos e plataformas que viabilizam a realização de tradução de textos em língua estrangeira e, devido à maior celeridade e efetividade das ações fundadas na Convenção de 1980, tal medida de flexibilização da exigência dos documentos estrangeiros — não apenas públicos, mas também particulares — poderem ser traduzidos sem necessidade da versão juramentada, sem dúvida, representa importante conquista para solução da demanda em tempo razoável.

Ainda sob a ótica de um processo célere, outro ponto sensível é a prova pericial. A resolução deixou claro que a perícia quanto à adaptação da criança não deve ser realizada quando houve prazo inferior a um ano entre a data da subtração ou retenção e o recebimento do pedido de cooperação internacional pela autoridade central brasileira ou o início do processo judicial instaurado por iniciativa da pessoa deixada no Estado da residência habitual (artigo 14, § 3°). Nos outros casos, nos quais for indispensável a realização de perícia, o juiz federal deverá nomear perito com estabelecimento de calendário para sua realização, não podendo o laudo ser apresentado em data posterior à da realização da audiência de instrução e julgamento (artigo 14, § 4°).

Outro ponto importante é a previsão de que o juiz federal poderá não apreciar a alegação de grave risco à criança quanto ao seu retorno à residência habitual, se a prova for de difícil ou demorada obtenção, e a questão puder ser tratada pelas autoridades do Estado de residência habitual da criança (artigo 14, § 5°).

É importante a observância do prazo para realização da audiência na perspectiva da busca de solução efetiva e em tempo razoável da demanda. Caso tenha sido arguida a exceção prevista no artigo 13, da Convenção, quanto à adaptação da criança no território brasileiro, o juiz federal deverá ouvir a criança, assegurando que sua manifestação não esteja sob influência da pessoa responsável pela subtração ou retenção ilícitas (artigo 16).

Outra inovação contida na resolução em comento, que certamente reduzirá o tempo de duração processual, foi a orientação de julgamento dos recursos nos Tribunais Regionais Federais — e até no Superior Tribunal de Justiça — em até duas sessões ordinárias dos órgãos julgadores, contadas da data da conclusão dos autos ao relator do recurso.

Tal medida é aplicável não apenas aos agravos de instrumentos (contra decisões interlocutórias, inclusive a que apreciou o requerimento de tutela de urgência), como também aos recursos de apelação, recurso adesivo, recurso especial, por exemplo.

Tal previsão se revela fundamental nos dias atuais, pois ainda que possa ter havido atraso no julgamento do caso pelo juiz federal em primeira instância (excedendo o prazo de seis semanas previsto na Convenção de 1980), o julgamento do recurso em segunda instância deve ser o mais rápido possível, daí a previsão das duas sessões ordinárias do órgão fracionário do tribunal. Remarque-se que na competência recursal não há necessidade, de regra, de produção de qualquer prova além das que já constam dos autos, o que demonstra a maior possibilidade de solução efetiva e célere do litígio.

A expectativa positiva em torno da Resolução CNJ n° 449/2022 está na sua possibilidade de consolidar orientações e práticas que vêm sendo empregadas na tutela e proteção da criança no âmbito internacional. Desse modo, consolida-se um sistema jurídico — transparente e protetivo às crianças que, no futuro, serão os adultos que precisarão confirmar todas as conquistas civilizatórias que atuaram em seu benefício —, possibilitando a construção da sociedade brasileira mais justa, livre e solidária (CF, artigo 3°, IV).


[1] "Exemplo dessas providências previstas no novel diploma normativo é a permissão do uso de tradutores automáticos. É que um dos grandes problemas enfrentados na lide jurisdicional sobre o tema é a necessária tradução de documentos estrangeiros e a escassez de recursos para pagamento de peritos juramentados (ou até mesmo a ausência destes), mormente quando se está diante de casos em que há assistência judiciária gratuita deferida" (MOURA, Maria Thereza de Assis et allii, https://www.conjur.com.br/2022-mar-28/opiniao-resolucao-sequestro-internacional-crianca#author).

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