Interesse Público

Benefício especial: migrar ou ser migrado?

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

2 de junho de 2022, 9h19

No regime de previdência dos agentes públicos, a partir de EC 103/2019, é possível identificar dois tipos de benefício especial: (a) o benefício especial voluntário e (b) o benefício especial compulsório. Ambos traduzem formas de restituição de contribuições previdenciárias vertidas pelos agentes efetivos no correspondente regime próprio de previdência social (RPPS) em patamares excedentes e sem contrapartida posterior, efetiva ou potencial, no cálculo de benefícios previdenciários.

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Trata-se de mecanismo de indenização vinculado diretamente à carreira contributiva do servidor público, sem caráter remuneratório ou previdenciário, embora decorrente de transformações no regime contributivo do agente ou de sua relação previdenciária ao longo do tempo. 

Tratei do assunto no artigo Ingratidão Previdenciária e Benefício Especial, publicado aqui na ConJur e no livro Café com Prosa: crônicas de direito e reforma do Estado (Editora GZ, 2021), mas a edição da recente MP 1.119, publicada em 26/5/2022, renovou o interesse e a atualidade do tema.

Benefício Especial Voluntário
No benefício especial voluntário, ou comum, o servidor efetivo mantém o vínculo com o RPPS, a previdência específica dos agentes públicos estatutários, porém limita os seus benefícios futuros ao valor teto do RGPS (fixado atualmente R$ 7.087,22) por realizar migração para regime contributivo previdenciário restritivo, disciplinado e incentivado pelo Poder Público. 

Esse regime contributivo é geralmente denominado Regime de Previdência Complementar (RPC), pois nele a contribuição previdenciária do agente público não mais incide sobre a totalidade da remuneração ou do subsídio, o que acarreta impedimento à integralidade e à paridade ou simplesmente a valores de benefício superiores ao teto do regime geral perante o RPPS, e incentiva a adesão à previdência complementar.

Entretanto, a migração de regime contributivo por si não significa adesão imediata a entidades fechadas ou abertas de previdência complementar. Embora seja ato irretratável, a migração não se confunde com a adesão a qualquer plano específico de previdência complementar, o que será natural que venha a ocorrer para ampliação da cobertura previdenciária do servidor.

Com a migração voluntária, a aposentadoria do servidor efetivo é limitada no RPPS, porém adicionalmente o agente fará jus à diferença da média atualizada entre o valor de contribuições efetivamente vertidas e o teto contributivo do INSS (RGPS) ao longo do tempo, devolvida de modo diferido e paralelo ao pagamento de sua aposentadoria ou pensão e calculada segundo parâmetros estabelecidos em lei (benefício especial). Se o servidor houver aderido a plano de previdência complementar receberá também o valor resultante da capitalização de suas contribuições e, ainda, de aportes da entidade patrocinadora, caso tenha aderido a entidade fechada de previdência complementar (artigo 33 da EC 103/2019).

A indenização especial referida tem matriz na lei e na Constituição. A previdência própria mantida pelos agentes públicos efetivos, em regime de repartição simples, constitui o único direito fundamental funcional exigente de contribuição individual específica. Há nela evidente caráter patrimonial, sendo cabível invocar o instituto da proibição do enriquecimento sem causa e o direito à restituição de excesso contributivo quando houver descompasso entre as contribuições pagas e o princípio constitucional da equidade no financiamento do custeio (artigo 194, V, da CF) e da contrapartida (artigo 195, §5º, da CF).

Na União e em cada unidade federativa responsável por regimes de previdência complementar deve haver mecanismo legal de restituição de contribuições previdenciárias excedentes exigidas sobre remunerações, subsídios e valores sem "repercussão em benefícios", vertidas por agentes que optem pela alteração do regime previdenciário contributivo. Os entes federativos possuem discricionariedade para autorizar ou não a migração de antigos servidores ao novo regime contributivo previdenciário; porém, uma vez autorizada a migração ao novo regime, não podem recusar ou omitir a disciplina do ressarcimento correspondente sob pena incorrerem em enriquecimento sem causa e violação aos preceitos constitucionais referidos (artigo 194, V, e 195, §5º, da CF). O princípio contributivo, que rege a previdência própria, exige equidade na contribuição e repercussão da contribuição no cálculo do benefício futuro. A lacuna normativa nessa hipótese afronta direito fundamental e deve ser considerada inconstitucionalidade por omissão parcial, sem pronúncia de nulidade.

Idêntica orientação foi adotada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 70069544146, da Relatoria do Des. Nelson Antônio Monteiro Pacheco, julgada em 22/5/2020: 

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. OMISSÃO LEGISLATIVA. LC-RS Nº 14.750, DE 15OUT15. REGIME DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR PARA OS SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS TITULARES DE CARGOS EFETIVOS – RPC-RS. AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO ACERCA DA COMPENSAÇÃO SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES AO SISTEMA ANTERIOR NA HIPÓTESE DE MIGRAÇÃO DO SERVIDOR PARA O NOVEL SISTEMA DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR. NECESSIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO PARCIAL, SEM PRONÚNICA DE NULIDADE. (….) 2. A LC-RS nº 14.750/15, que “Institui o Regime de Previdência Complementar para os servidores públicos estaduais titulares de cargos efetivos – RPC/RS, fixa o limite máximo para a concessão de aposentadorias e pensões pelo Regime Próprio de Previdência Social – RPPS/RS, autoriza a criação de entidade fechada de previdência complementar denominada Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público do Estado do Rio Grande do Sul – RS-Prev, e dá outras providências”, insere-se na competência exclusiva do Estado-membro, extraída do § 1º do artigo 25 da Constituição Federal. 3. Na espécie, a alegada inconstitucionalidade se dá por omissão parcial, por não dispor a legislação inquinada sobre a compensação das contribuições ao sistema anterior na hipótese de migração do servidor para o novo sistema de previdência complementar. 4. Na omissão parcial agora examinada há conflito entre princípios constitucionais: contributividade versus solidariedade; enriquecimento sem causa da administração versus pacto de gerações para sua auto sustentabilidade; regime de repartição simples versus direito de compensação. Tais choques devem ser resolvidos pelo Poder Judiciário de modo proporcional. 5. Não se trata de compensação financeira entre regimes previdenciários federativos, decorrentes de contagem recíproca do tempo de contribuição, mas antes de compensação financeira decorrente da limitação do valor do benefício, na hipótese de migração voluntária do servidor contribuinte entre os regimes diferentes previdenciários. Não há dúvida de que ele poderá computar o seu tempo de contribuição em qualquer deles, para obter os benefícios previdenciários e de pensão por morte. Necessidade de criação de mecanismo ressarcitório, evitando-se burla aos princípios constitucionais examinados. PRELIMINAR REJEITADA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO PARCIAL, SEM PRONÚNCIA DE NULIDADE, COM CHAMAMENTO DO LEGISLADOR JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. [aqui]

A decisão do TJ gaúcho foi cumprida pelo Governador do Estado, que apresentou na sequência projeto de lei para a criação do benefício especial, origem da atual Lei Complementar Estadual 15.511, de 24/11/2020.

Atualmente, além da União Federal (Lei 12.618/2012; MP 1.119/2022), nove estados da Federação disciplinam o benefício especial voluntário: Piauí (Lei 6.764/2016; Lei 7227/2019); Ceará (LC 183/2018); Pará (LC 129/2020); Rio Grande do Sul (LC 15.511/2020); Alagoas (LC 54/2021); Minas Gerais (LC 158/2021); Paraná (Lei 20777/2021); Maranhão (Lei 11.636/2021) e Santa Catarina (LC 795/2022).

Em qualquer caso, embora as fórmulas legais variem, em todas as unidades da Federação o benefício especial voluntário é previsto para os servidores que ingressaram no serviço público antes da implantação efetiva de planos de previdência complementar. A razão é singela: depois da implantação da previdência complementar pelo ente federativo, consoante o artigo 40, § 14, 15 e 16, da CF, os novos servidores estarão sujeitos automaticamente ao regime previdenciário contributivo restritivo, limitado ao teto de regime geral de previdência social, e não verterão contribuições previdenciárias sobre base superior ao limite máximo que norteará os seus próprios benefícios futuros. É dizer: os novos servidores, ausente contribuição anterior a regime próprio ou vínculo contínuo com o regime próprio, desde a posse realizam aportes ao RPPS na justa medida da contrapartida futura, calculada a partir da média das contribuições que verterem.

Benefício Especial Compulsório
O benefício especial compulsório, além de encontrar suporte na vedação ao enriquecimento sem causa e nos artigos 194, V, e 195, §5º, da Constituição Federal, assenta no artigo 34, da Emenda Constitucional 103/2019:

"Art. 34. Na hipótese de extinção por lei de regime previdenciário e migração dos respectivos segurados para o Regime Geral de Previdência Social, serão observados, até que lei federal disponha sobre a matéria, os seguintes requisitos pelo ente federativo:
…………
II – previsão de mecanismo de ressarcimento ou de complementação de benefícios aos que tenham contribuído acima do limite máximo do Regime Geral de Previdência Social;
…………."

O ressarcimento de contribuições vertidas no RPPS acima do teto do RGPS, em caso de extinção de regime próprio, é obrigatório para o Poder Público e direito imediato do servidor, pois importa em migração coletiva compulsória dos agentes para o Regime Geral de Previdência e alteração ex lege do regime previdenciário contributivo dos agentes. Ficam resguardados apenas os servidores que já tenham integralizado o direito à aposentadoria ou à pensão antes da extinção.

Em qualquer caso, a lógica inerente ao benefício especial compatibiliza-se perfeitamente com o princípio da solidariedade. Conforme assentou o Supremo Tribunal Federal, "não é possível invocar o princípio da solidariedade para inovar no tocante à regra que estabelece a base econômica do tributo" (STF, RE 593.068/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, DJE 22/03/2019), sendo afirmado, na mesma assentada, que "a dimensão contributiva do sistema é incompatível com a cobrança de contribuição previdenciária sem que se confira ao segurado qualquer benefício, efetivo ou potencial".

A partir do julgamento do RE 593.068/SC, o STF fixou em repercussão geral o Tema 163 e retirou a legitimidade da contribuição previdenciária sobre verbas não incorporáveis. Na mesma decisão, explicitou que "a leitura dos §§3º e 12 do artigo 40, c/c §11 do artigo 201 da CF, deixa claro que somente devem figurar como base de cálculo da contribuição previdenciária as remunerações/ganhos habituais que tenham 'repercussão em benefícios'. Como consequência, ficam excluídas as verbas que não se incorporam à aposentadoria". (STF, RE 593068/SC, Rel. Minº Roberto Barroso, Plenário, j. em 11/10/2018).

Cresce o interesse na migração voluntária
A decisão de migrar para o regime contributivo restritivo é personalíssima. Porém, a migração tem sido cada dia mais atraente em face da insegurança jurídica e insegurança financeira dos regimes próprios de previdência social.

A revogação e o desrespeito às disposições constitucionais transitórias previdenciárias anteriores por emendas sucessivas colocaram em crise a própria seriedade e firmeza das disposições transitórias em si. A projeção do futuro dos servidores nesse cenário perde qualquer base de sustentação normativa.

Em termos financeiros, a obrigatoriedade de instituição e o crescimento da previdência complementar pública reduzem os aportes das novas gerações ao regime próprio, sem compensação do Poder Público. Esse fato agrava também por si o equilíbrio do regime próprio, que passa a restringir ainda mais a reposição da inflação nos vencimentos dos ativos e nas aposentadorias dos agentes públicos e encomenda o crescimento contínuo de alíquotas ordinárias e até extraordinárias no regime próprio de previdência social. O benefício especial, com marco temporal e quantitativo certo fixado no momento da migração do regime contributivo, não sofre a incidência de contribuição previdenciária por seu caráter compensatório ou restitutório.

As restrições crescentes ao valor e à própria duração do benefício da pensão no regime próprio também incentivam a migração. O benefício especial não é reduzido por ocasião do falecimento do aposentado e "o valor do benefício especial, integralmente considerado, não sofre qualquer modificação em razão da perda superveniente da condição de dependente por algum dos seus beneficiários, devendo o montante (incólume) ser dividido igualmente entre os dependentes remanescentes, ou seja, a cota-parte do benefício especial que cabia ao dependente que vier a perder esta condição será revertida igualitariamente em favor dos demais beneficiários da pensão" (AGU, Processo nº 19975.121753/2019-87, Parecer nº BBL — 07, de 25/05/2022, aprovado pelo Presidente da República em 30/05/2022, com efeito vinculante nos termos do artigo 40, § 1º, da LC73/1993)

Para o Estado, a migração dos antigos servidores para o regime de previdência complementar amplia a previsibilidade de desembolso financeiro futuro e promove a redução das taxas de juros cobradas para obtenção de empréstimos e financiamentos pelo Poder Público; reduz a litigiosidade sobre a garantia da paridade; desincentiva movimentos paredistas articulados ou estimulados por servidores aposentados em regime de paridade e promove a redução da complexidade regulatória em matéria previdenciária.

Não por acaso, a MP 1.119, de 26/5/2022, reabriu pela quarta vez o prazo para servidores da União empossados até 4/2/2013 migrarem ao RPC com direito ao benefício especial. É de interesse do Poder Público ampliar a sua própria segurança financeira, pois a garantia da paridade dos antigos servidores gera incerteza quanto à despesa previdenciária, vinculando-a à política remuneratória futura.  Esse prazo de adesão finda em 30/11/2022. Na Câmara, a MP 1.119 recebeu 201 emendas e o seu conteúdo final permanece indefinido.

Mas é preciso ponderar. Se migrar, e renunciar ao direito à paridade, o servidor pode não capturar revalorizações futuras do padrão remuneratório de seu cargo, pois o benefício especial é corrigido apenas pelo INPC; terá o seu imposto de renda imediato elevado, caso não compense a redução da contribuição com a elevação da contribuição voluntária; pode ter benefícios reduzidos se ultrapassar a estimativa de sobrevida do seu plano de previdência complementar e precisará adotar vigilância sobre a aplicação dos seus recursos pelas entidades de previdência complementar. Não migrar, entretanto, não tranquiliza; corre-se o risco de novas reformas previdenciárias, novas regras restritivas ou a própria extinção dos regimes próprios. E o servidor, ao fim, pode ser levado a parafrasear Shakespeare: "migrar ou ser migrado, eis a questão!"

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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