Processo Tributário

Transação do contencioso de relevante e disseminada controvérsia: moldura legal

Autores

  • Carla de Lourdes Gonçalves

    é advogada em São Paulo mestre e doutora (PUC-SP) professora dos cursos de pós-graduação do Ibet e PUC-Cogeae e pesquisadora do Grupo de Estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

  • Camila Campos Vergueiro

    é advogada doutoranda pela Unimar mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professora do Curso de Especialização do Ibet do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV Law) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus professora e coordenadora do curso de extensão Processo Tributário Analítico do Ibet e coordenadora do grupo de estudos de Processo tributário analítico do Ibet.

31 de julho de 2022, 8h06

A fim de materializar o projeto de desjudicialização e solução consensual de litígios da codificação processual civil, no âmbito do direito tributário federal foi regulamentada a figura da transação, por meio da edição da medida provisória 899/2019 posteriormente convertida na Lei federal 13.988 de 2020.

Considerada um dos mecanismos nominados alternativos para resolução de controvérsias, o estabelecimento de regras que possibilitam a transação representou significativo avanço nas relações entre fisco federal e contribuinte, não só por intensificar o diálogo entre eles, mas também porque outorga transparência e lealdade nesse relacionamento em que, usualmente, os sujeitos estão em lados antagônicos "da balança" sob a perspectiva de seus interesses subjetivos [1].

Não se pode olvidar que essa iniciativa federal de, enfim, regulamentar o artigo 171 do código tributário nacional, produziu um efeito externo alheio à relação Fisco federal-contribuinte, pois provocou outros entes tributantes a editarem suas próprias leis de transação, em um nítido movimento multiplicador de consolidação dos valores almejados quando da edição do Código de Processo Civil/2015.

Consolida-se a transação como instrumento cujo objetivo é a extinção do litígio, alcançado por meio da fixação de concessões mútuas que podem consistir, mas não unicamente: a) em redução do valor principal do tributo, bem como a redução ou exclusão dos juros moratórios (remissão), para pagamento à vista; b) em redução ou exclusão da multa de mora ou de ofício (anistia) condicionada ao pagamento à vista do tributo; c) em dilação do prazo de pagamento; d) em instituição de parcelamento em favor do contribuinte; e) em dação em pagamento de bens móveis consumíveis ou fungíveis; f) em dação em pagamento em bens imóveis [2].

Dentre as modalidades de transação "por adesão" [3] destaca-se da referida lei federal a do "contencioso por relevante e disseminada controvérsia jurídica", assim identificada aquela cuja questão tematicamente ultrapassa os interesses subjetivos dos litigantes e está atrelada com lides tributárias instaladas por iniciativa do contribuinte, portanto, medidas processuais antiexacionais [4].

Mas, não só, ao analisarmos a lei federal a respeito da transação do "contencioso por relevante e disseminada controvérsia", notamos que, além do escopo de extinguir litígios sobre temas nos quais há multiplicidade de demandas, determina, em contrapartida, que a proposta de transação se restrinja a temas limitados a determinado seguimento econômico ou produtivo ou a universo de contribuintes demarcado [5]. Essa a moldura legal que deve reger a proposta (edital) de transação "por adesão" apresentada pelo Fisco.

Contudo, não parece ser exatamente essa a diretriz que tem sido observada pelo fisco federal ao identificar temas para que se viabilize essa espécie de transação. Vejamos o porquê.

Desde a edição da referida lei federal, dois temas foram eleitos de modo a permitir a transação por adesão na hipótese de "contencioso de relevante e disseminada controvérsia jurídica": (1) o do pagamento de participação nos lucros e resultados (PLR) a empregados e diretores sem a incidência das contribuições previdenciárias; e (2) o do aproveitamento fiscal de despesas de amortização de ágio decorrente de aquisição de participações societárias, limitada às operações de incorporação, fusão e cisão ocorridas até 31 de dezembro de 2017, cuja participação societária tenha sido adquirida até 31 de dezembro de 2014 [6].

É de se notar que os referidos temas não invocam somente argumentos meramente jurídicos, tampouco as situações fáticas que as envolvem são de análogo jaez.

Notadamente os casos que envolvem a amortização de ágio, há fundamentos diferentes a ensejar as autuações por parte do fisco, do que decorre notória multiplicidade de situações que demandam, por vezes, complexa dilação probatória.

O mesmo ocorre com as questões que envolvem o pagamento do PLR sem a incidência de contribuições previdenciárias. A despeito de transitar em um universo de situações significativamente menores em relação à plêiade daquelas concernentes ao ágio, esse universo dista de ser uniforme, repetitivo.

As escolhas desses temas distam de dar efetividade ou se enquadrar na moldura legal autorizativa dessa espécie de transação por adesão, justamente por suas especificidades casuísticas; além do que não se restringem a determinado seguimento econômico ou universo limitado de contribuintes, a menos que se considere como tal a "classe empresarial brasileira" ou "as pessoas físicas empregados ou diretores".

Agregue-se ainda a isso o fato de que são temas que não ensejam uma solução uniforme e repetitiva por parte dos tribunais responsáveis para emissão de julgamentos de casos repetitivos em última instância a respeito da legalidade (STJ) e/ou da constitucionalidade (STF) da exigência. Ao contrário. A julgar pela ampla necessidade de análise de fatos e produção de provas, ousa-se concluir que serão temas que possivelmente não serão afetados para análise repetitiva.

Somada à ausência de observância da moldura legal normativa e à diversidade de situações e fundamentos, a questão de que ambos os temas sequer têm produzido disseminada controvérsia porque limitado o número de decisões nos Tribunais Regionais Federais, constata-se nítido esvaziamento do conteúdo de significação da própria norma transacional, instrumento tão importante ao fisco federal e ao contribuinte.

Isto porque, os contribuintes, incertos sobre eventual desfecho desfavorável sobre o tema no seu caso subjetivo, à míngua de decisões que apontem para um determinado norte (os feitos têm origens, fatos e fundamentos distintos, lembre-se), deixarão de aderir à transação, exceto em situações extremas de necessidade de obtenção de CND ou, ainda, casos pontuais como, exemplificativamente, a incorporação ou extinção da pessoa jurídica.

Diante desse cenário, o que se verifica é o fomento da litigiosidade, espraiando a opção, por ser temática e não seguir a diretriz da regra legal, em sentido diametralmente oposto ao que se pretende com a transação, cujo efeito e correlato é o de não promover o fim do litígio, prejudicar a arrecadação e impedir o ingresso de valores nos cofres públicos.

Parece-nos que a quadratura da regra legal objetivou abarcar na transação por adesão do "contencioso de relevante e disseminada controvérsia" assuntos mais lineares, com fundamentos jurídicos semelhantes e que possam conduzir à prolação de decisões uniformes ("precedente") por parte dos tribunais superiores, na qual os casos envolvendo PLR e os referentes ao ágio não dão azo ao seu conteúdo de significação.

Desta forma, a escolha de temas por parte do fisco para permitir a transação nessa modalidade deve ser realizada segundos os critérios legais para que possa maximizar seus resultados, tanto para o fisco federal quanto para o contribuinte.

 


[1] O que se está a afirmar baseia-se na ideia que subjaz à transação, a de conflito, isto é, a da busca do pagamento pelo fisco e a resistência do contribuinte.

[2] Mais a respeito sugere-se a leitura de artigo seguinte artigo de uma das autoras do presente artigo, Carla de Lourdes Gonçalves: Transação tributária e a superveniência de decisão favorável ao contribuinte sob sistemática repetitiva: efeitos e desdobramentos. In Transação Tributária na Prática da Lei nº 13.988/2020. CONRADO, Paulo Cesar; ARAUJO, Juliana Furtado Costa. 1ª edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 271.

[3] Identificam-se duas modalidades para que a transação no ambiente federal se conforme: (1) a transação por adesão, cujas diretrizes são firmadas pelo fisco federal e estão à disposição de todos os contribuintes que se "encaixem" na proposta (edital publicado pelo fisco federal); (2) a transação individual, em que os termos são firmados segundo proposta personalizada de iniciativa do fisco ou do contribuinte e alcança apenas crédito tributário inscrito em dívida ativa, à luz do artigo 2º da lei federal 13.988/2020.

[4] Art. 16, lei federal 13.988/2020. (…)

§ 3º. Considera-se controvérsia jurídica relevante e disseminada a que trate de questões tributárias que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.

[5] Art. 17, lei federal 13.988/2020. (…)

§ 2º. A proposta de transação deverá, preferencialmente, versar sobre controvérsia restrita a segmento econômico ou produtivo, a grupo ou universo de contribuintes ou a responsáveis delimitados, vedada, em qualquer hipótese, a alteração de regime jurídico tributário.

[6] Em:

– 18 de maio de 2021foi publicado o edital 11/2021 que tratou da possibilidade de transação de débitos de pessoas naturais ou jurídicas relativos a contribuições previdenciárias e contribuições destinadas a outras entidades ou fundos incidentes sobre a participação nos lucros e resultados por descumprimento da lei 10.101/2000;

– 3 de maio de 2022 foi publicado o edital 09/2022 que versa sobre a possibilidade de transação referente aos feitos que envolvem a controvérsia jurídica alusiva ao aproveitamento fiscal de despesas de amortização de ágio decorrente de aquisição de participações societárias, limitada às operações de incorporação, fusão e cisão ocorridas até 31 de dezembro de 2017, cuja participação societária tenha sido adquirida até 31 de dezembro de 2014, período de vigência dos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/97.

Autores

  • Brave

    é advogada em São Paulo, mestre e doutora (PUC/SP), professora dos cursos de pós-graduação do Ibet e PUC-Cogeae e pesquisadora do Grupo de Estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

  • Brave

    é advogada, doutoranda pela Unimar, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora do Curso de Especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGVLaw) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus, professora e coordenadora do curso de extensão "Processo tributário analítico” do Ibet e coordenadora do grupo de estudos de "Processo tributário analítico" do Ibet.

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