Opinião

Cláusula de mediação nos contratos administrativos

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31 de julho de 2022, 17h06

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos Brasileira (14.133/2021), que revogou a normativa anteriormente vigente há quase 30 anos, em seu artigo 151[1], estabeleceu a possibilidade de serem utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem, sendo importante ressaltar que o artigo 153 [2] da referida lei consagra a possibilidade de aditamento aos contratos administrativos já celebrados para o fim de inclusão de cláusulas contratuais que possibilitem as alternatives dispute resolution (ADRs).

A previsão do parágrafo único do artigo 151 foi de suma importância para espancar a insegurança jurídica decorrente da possibilidade de emprego das ADRs no âmbito da administração pública em virtude do princípio da indisponibilidade do interesse público, o que certamente contribuirá para superar resistências culturais no âmbito das procuradorias estaduais e municipais [3].

A própria extinção do contrato administrativo, segundo a novel normativa supra referida, poderá ocorrer por meio das ADRs, nos termos em que prescreve o inciso II do artigo 138 [4] do diploma legal antes mencionado.

Nesse contexto, as modificações na lei de licitações e contratações brasileira trazem um aumento da segurança jurídica a contribuir com a diminuição dessa desconfiança na relação entre público-privado, pois o combate a corrupção, se possível, não deve estar dissociado da manutenção da empresa como ente socialmente relevante, gerador de renda e emprego, tal como vemos pela aplicação da consensualidade por meio dos chamados acordos de leniência.

As ADRs, inclusive, vêm sendo usadas para o desiderato de contribuir para a recuperação judicial de empresas que muitas vezes são contratantes com a administração pública, permitindo-se uma deslinde ao conflito que não coloque em risco a continuidade do serviço público prestado à população [5].

Os contratantes habituais com a administração pública sabem que a contratação é cercada de riscos na entrega do objeto, cronograma de longo prazo, fracionamento de insumos, prestação continuada de serviços e as diversas fases de execução de obras públicas [6].

Essa desconfiança, inevitavelmente, leva ao aumento da litigiosidade no âmbito do próprio processo administrativo, por vezes no mesmo nível de beligerância que constatamos nos processos judiciais, com tudo isso impactando negativamente no equilíbrio da equação econômico-financeira dos contratos administrativos.

Disso resulta o fenômeno do apagão das canetas, qual seja, os gestores públicos com medo de ordenar despesas em cima de contratos reguladores de uma relação jurídica onde há uma evidente cultura de beligerância e medo, o que acaba postergando na praxe administrativa a decisão do conflito ao juiz, que muitas vezes tem uma formação generalista em relação as especificidades dos contratos, gerando aumento da percepção de riscos na execução contratual.

Uma obra parada, por sua vez, continua gerando custos de segurança, refazimento de etapas, conservação, desmobilização/mobilização de mão de obra, e suas repercussões trabalhistas, o que acabará acarretando um impacto no erário público também pela necessidade de reequilíbrio da equação econômico-financeiro do contrato.

Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o Brasil tem mais de 14 mil obras inacabadas, em contratos que somam R$ 144 bilhões. O total de dinheiro necessário para cobrir as despesas com obras paradas é maior do que toda a verba dos Ministérios da Educação (R$ 113,7 bilhões) e da Defesa (R$ 112,6 bilhões) [7].

A consensualidade, como eixo das transformações recentes do direito administrativo, superando o falso dilema acerca da disponibilidade do interesse da administração pública, tal como há tempos já constatamos na assinatura de termos de ajustamento de conduta, acordos de leniência, procedimentos de manifestação de interesse e diálogos competitivos, é uma grata novidade introduzida pela nova lei de licitação/contratos administrativos brasileira.

Num belo exemplo a ser seguido, o município de São Paulo aprovou a Lei 17.324/2020, que instituiu a política de desjudicialização no âmbito da administração pública municipal direta e indireta, e "poderá servir como relevante ferramenta de racionalização da prestação jurisdicional, desafogando a advocacia pública do município de São Paulo e garantindo o tratamento adequado das controvérsias entre entes da Administração Pública ou entre esses e os particulares" [8].

A mediação é o meio mais adequado de resolução de conflito a viabilizar a reconstrução dessas relações jurídicas entre administração e administrado, tudo à luz do princípio da consensualidade, uma vez que solução que passa ser vista pelas partes litigantes como um ganha-ganha, sem haver uma imposição da solução do litígio de fora para dentro, ou mesmo uma nefasta sensação de derrotados versus vitoriosos, o que manteria acesa a chama do conflito numa escalada crescente de ineficiência e aumento de custos.

O cérebro humano é desenhado para reforçar o que as pessoas acreditam e defendem, vale dizer, manter suas posições e crenças nas teses jurídica defendidas, o que está a aumentar a relevância da mediação para quebrar a cultura da litigiosidade para a qual os operadores do direito público e privado foram educados durante o curso de graduação em direito.

Relevante impulso ao princípio da consensualidade é a reformulação dos currículos dos cursos de graduação e pós-graduação na Ciência do Direito, para o fim de tornar mais conhecida, empírica e cientificamente, os meios extrajudiciais de resolução de conflitos, dentre eles a mediação, inclusive por meio da criação da Câmara de Conciliação e Mediação, bem como cursos de formação de mediadores e conciliadores.

A adoção da mediação digital por meio das plataformas digitais especializadas em on line dispute resolutions também pode ser aprimorada para utilização em conflitos que envolverem os contratos administrativos [9].

Obviamente que o insucesso da mediação, havendo cláusula neste sentido no contrato administrativo, pode redundar na aplicação da arbitragem, ou mesmo se irão litigar em juízo, em suma, as partes podem clausular mais de uma ADR como meio apto a solucionar os conflitos contratuais decorrentes, vale dizer, por meio de cláusulas escalonadas mediação-arbitragem, ou arbitragem-mediação-arbitragem (AMA).

Nesse contexto, constata-se uma importante distinção entre as cláusulas que preveem a mediação e a convenção de arbitragem, na medida em que esta tem o condão de afastar da apreciação do Poder Judiciário a temática vertente, o que não acontece com a primeira como consagrado no §2º do artigo 2º da lei brasileira de mediação.

Sugere-se que as cláusulas de mediação sejam padronizadas pela advocacia pública em seus sítios na internet, após consulta pública para recebimento de sugestões por parte da sociedade civil, e que prevejam cláusulas de mediação cheias, que emprestam maior segurança jurídica ao já preverem o procedimento de mediação, bem como os critérios de escolha dos mediadores e respectivas instituições idôneas a que estejam vinculados.

No âmbito do estado do Rio de Janeiro, e da União [10], bem como do estado de São Paulo, há o credenciamento de instituições idôneas aptas a fazerem a mediação. As partes escolhem, caso necessário, dentre as instituições credenciadas.

Desconfiança na relação público privado é custo de transação, com elevação de preços na licitação/contratação. Premissa do diálogo e da autonomia dos contratantes, ínsitos à mediação, é muito importante para reduzir a propalada desconfiança.

Parece muito relevante a criação de estruturas de incentivos para que as cláusulas de mediação possam prosperar no âmbito da administração pública. Neste sentido, a advocacia pública e demais órgãos de gestão têm um papel fundamental em criar dificuldades para prevalência da cultura de empurrar os passivos contratuais para a gestão subsequente.

Tem que se criar um sistema de incentivo para enfrentamento do fenômeno do apagão das canetas, isto é, o medo do gestor público dos órgãos de controle, notadamente dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, qual seja, trazer os citados órgãos de controle para esse tipo de discussão concreta.

Relevante distinguir-se entre indisponibilidade e intransigibilidade, na medida em que a mediação positiva, qual seja, aquela profícua que redunda no acordo, tem natureza jurídica de negócio jurídico.

Há que diferenciar-se a indisponibilidade do direito em tese (ponto de partida), isto é, conceitualmente, da indisponibilidade in concreto (ponto de chegada), o que somente poderá ser aferido após a leitura da transação resultante da mediação exitosa, quando será possível aferir os respectivos requisitos de validade do contrato transacional.

A experiência tem demonstrado que muitas vezes a possibilidade de um desfecho traumático na arbitragem, podem levar as partes a preferirem um escalonamento para a mediação, e quem vem levando a resultados muito bons.

Licínio Lopes Martins assevera na direção de que pode haver primazia da administração pública por meio de outras maneiras que não a autoridade, ou de cláusulas exorbitantes, vale dizer, a autoridade não inviabiliza a margem para mediação entre o público e o privado sempre tendo como condição inafastável a busca incessante pelo interesse da coletividade [11].

Assim sendo, a demonstração efetiva e fundamentada da vantajosidade do acordo obtido no negócio jurídico acordado a partir do emprego da mediação faz-se imprescindível como requisito de validade do ato à luz dos princípios da indisponibilidade do interesse público, nos termos das reflexões de Ana Claudia Paranaguá e Flávia Corrêa Azeredo de Freitas:

"A importância em se estudar a vantajosidade nos campos dos acordos administrativos, portanto, advém da premissa que sua configuração representa requisito fundamental para celebração de qualquer ajuste pela administração pública, seja na prevenção ou solução de litígios, seja enquanto instrumento de política pública" [12].

 


[1] Art. 151. Nas contratações regidas por esta lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.

Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.

[2] Art. 153. Os contratos poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de resolução de controvérsias.

[3] LONGO, Samantha Mendes; NETTO, Antônio Evangelista de Souza. A nova lei de licitações e os métodos adequados de solução de conflitos, 2021, Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/343349/nova-lei-de-licitacoes-e-os-metodos-adequados-de-solucao-de-conflitos.

[4] Art. 138. A extinção do contrato poderá ser: II – consensual, por acordo entre as partes, por conciliação, por mediação ou por comitê de resolução de disputas, desde que haja interesse da Administração.

[6] NÓBREGA, Theresa. A Lei 14.133 e as expectativas de segurança jurídica para os fornecedores. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-mar-21/theresa-nobrega-seguranca-juridica-fornecedores-administracao. Acesso em 29/6/2022.

[9] MARQUES, Marcelo Silva Moreira. A mediação digital e a judicialização da saúde. Disponível em https://www.migalhas.com.br/, acesso em 29/6/2022.

[10] Quanto ao credenciamento, a Advocacia Geral da União (AGU) tem, no que diz respeito a arbitragem, a Portaria AGU 21/2021, que pode ser aplicada mutatis mutandis às câmaras de mediação, verbis:

Art. 1º — Esta Portaria Normativa dispõe sobre o credenciamento de câmaras arbitrais na Advocacia-Geral da União, para administrar procedimentos arbitrais que envolvam a União ou as entidades da administração pública federal e concessionários, subconcessionários, permissionários, arrendatários, autorizatários ou operadores portuários, do setor portuário ou de transportes rodoviário, ferroviário, aquaviário ou aeroportuário.
Parágrafo único. O credenciamento de que trata o caput consiste em cadastro das câmaras arbitrais para eventual indicação futura em convenções de arbitragem e não caracteriza vínculo contratual entre o Poder Público e as câmaras arbitrais credenciadas".

[11] MARTINS, Op. Cit, pp. 482-517.

[12] PARANAGUÁ, Ana Claudia e FREITAS, Flávia Corrêa Azeredo. Acordo administrativo eficiente: a vantajosidade sob análise. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-abr-03/publico-pragmatico-acordo-administrativo-eficiente-vantajosidade-analise, acesso em 29/6/2022.

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