Opinião

Mínimo existencial deve expressar a necessária proteção do Estado

Autor

  • Káren Rick Danilevicz Bertoncello

    é juíza do TJ-RS. Professora do Imed em Porto Alegre. Doutora e mestre em direito pela UFRGS. Diplome d'Université USMB-UFRGS em direito dos contratos europeus de consumo. Diretora do Observatório do Crédito e Superendividamento da UFRGS. Diretora do Brasilcon.

30 de julho de 2022, 10h44

A leitura do Decreto nº 11.150, de 26 de julho de 2022, que pretendeu regulamentar "a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento em dívidas de consumo", contemplados no Código de Defesa do Consumidor atualizado, confronta as lições de Robert Alexy[1] quando ensina as limitações dos "possíveis conteúdos do direito ordinário", in verbis:

"Embora a constituição, quanto constituição mista material-procedimental, não determine todo o conteúdo do direito ordinário, os direitos fundamentais excluem alguns conteúdos como constitucionalmente impossíveis e exigem alguns conteúdos como constitucionalmente necessários."

O texto emanado do Poder Executivo subsume-se no significado de "conteúdo constitucionalmente impossível" pela forma como adentrou o superprincípio da dignidade da pessoa, que lhe conferiu unidade material.[2] Nessa senda, o princípio da dignidade atua como fundamento à proteção do consumidor superendividado e criador do direito ao mínimo existencial, cuja previsão infraconstitucional foi sedimentada pelo Poder Legislativo na Lei n.14.181/21, que atualizou o Código de Defesa do Consumidor, instalando um microssistema de crédito ao consumo.

Veja-se que o Código atualizado previu a dupla dimensão do superprincípio (princípio e regra) ao contemplar explícita e implicitamente nos artigos 4o , X; 5o , XI, XII; 104-A; 104-B; 104-C a necessidade de preservação do mínimo existencial como forma de evitar a exclusão social do consumidor superendividado.[3] Assim já ensinava Ingo Sarlet sobre a origem "de um direito fundamental (e, portanto, também de uma garantia fundamental) às condições materiais que asseguram uma vida com dignidade"[4] . E prossegue apontando que o "Poder Constituinte de 1988 acabou por reconhecer um conjunto heterogêneo e abrangente de direitos (fundamentais) sociais"[5],  Como tal, qualificado como direito fundamental social, sua função precípua é "assegurar a qualquer pessoa condições mínimas para uma vida condigna", sendo a garantia de um mínimo existencial "o núcleo essencial dos próprios direitos sociais na sua condição de direitos fundamentais".[6]

Desprovidos do propósito de enumerar as impossibilidades do conteúdo do Decreto em exame, lembramos as palavras do saudoso professor Kazuo Watanabe:[7] "O mínimo existencial, além de variável histórica e geograficamente, é um conceito dinâmico e evolutivo, presidido pelo princípio da proibição de retrocesso, ampliando-se a sua abrangência na medida em que melhorem as condições socioeconômicas do país".

Para além da redação do regulamento determinado no Código do Consumidor atualizado, artigo 6o, XI, a eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais nas relações privadas para a preservação da dignidade da pessoa era avanço doutrinário e jurisprudencial pátrios já reconhecidos, a partir da previsão do artigo 5o , parágrafo 1o da CF/88.[8] [9]

E como outrora afirmado[10], observada a divisão dos direitos fundamentais em dois grupos, "de acordo com o critério da sua função preponderante, em direitos de defesa e direitos de prestação"[11] , consectário lógico é o reconhecimento da existência do direito fundamental social do mínimo existencial de caráter defensivo, por interpretação implícita do texto constitucional.

E o caráter negativo dos direitos fundamentais sociais é justificado na necessidade de proteção do consumidor superendividado perante o poder estatal e setores da sociedade[12], concluindo-se pela existência do direito fundamental social do mínimo existencial como direito de defesa (proteção) nas hipóteses de superendividamento do consumidor.

A complexidade na individualização do mínimo existencial e a adequação ao caso concreto advêm do próprio conceito de mínimo, como enfatiza ministro Luiz Edson Fachin: "o mínimo até pode ser a menor quantidade que preserva as características de algo". E continua, lecionando: "O mínimo não é menos nem ínfimo. É um conceito apto a construção do razoável e do justo ao caso concreto, aberto, plural e poroso ao mundo contemporâneo".[13] E a metodização da busca do mínimo existencial do devedor superendividado não é diversa, porque dependente da ponderação dos valores incidentes na relação creditícia pretérita.

Considerada a dimensão como direito de defesa, a preservação do mínimo existencial expressa a necessária proteção do Estado, destinando conteúdo que assegure concretamente a dignidade do consumidor e, de outro lado, assegure a proteção ao consumidor superendividado contra "conteúdos constitucionalmente impossíveis."

[1]  Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p.543.

[2]  Jacintho, Jussara Maria Moreno. Dignidade humana: princípio constitucional. Curitiba: Juruá, 2006. p. 207.

[3]  Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 83.

[4]  Sarlet, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 61, p. 100, jan.-mar. 2007.

[5]  Sarlet, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: Direitos fundamentais: orçamento e reserva do possível. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 16.

[6]  Sarlet, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado, p. 94.

[7]  Watanabe, Kazuo. Controle jurisdicional das políticas públicas, mínimo existencial e demais direitos fundamentais imediatamente judicializáveis. Revista de Processo, São Paulo, n. 193, p. 19, mar. 2011.

[8]  Marques, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 253.

[9]  Sarlet, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado, p. 99.

[10]  BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Superendividamento do consumidor: mínimo existência, casos concretos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[11]        Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 274.

[12]        Sarlet, Ingo Wolfgang. Mínimo existencial e direito privado, p. 61.

[13]        Fachin, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 274-281.

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