Um Habeas Corpus escrito com sangue e em papel de pão
29 de julho de 2022, 11h18
Resumo: "Em matéria criminal, tudo deve ser preciso e certo para que não haja possibilidade de desencontros na apreciação das provas".
Quem teria escrito a frase acima? Um erudito do direito processual? Um ministro da Suprema Corte? Não. Quem escreveu foi uma pessoa encarcerada por quatro anos de forma ilegal.
A partir dessa carta, João conseguiu ser inocentado. O "detalhe", vale dizer, é que fora condenado a oito anos de reclusão, e que passou quatro anos na cadeia, em regime fechado, a partir de um processo eivado de problemas.
Como isso acontece? Fácil. Todos os dias. Às vezes descobrimos. O ministro Rogerio Schietti (STJ) e eu temos insistido nisso em diversas oportunidades (aqui, aqui, aqui, aqui, etc…). O Ministério Público não é o defensor dos direitos — antes de ser acusador? Bom, deveria. Mas não é assim.
Precisamos falar sobre Ministério Público e precisamos deixar de precisar falar sobre o Ministério Público. O rei está nu. Resta fazer alguma coisa…
Estou exagerando? Aporrinhando? Bem, aos mais céticos vale a leitura da matéria que desvelou o caso (aqui). De toda forma, eis um esboço do ocorrido:
João, um homem negro de 23 anos, pedreiro, foi condenado a oito anos e dez meses de reclusão por um assalto ocorrido um bairro da periferia de São Paulo. Ainda em 2018, três pessoas foram assaltadas e a Polícia Militar foi acionada para circular pelas ruas. Segundo o boletim de ocorrência, "avistaram um indivíduo correndo em desabalada carreira" e aí entra João. Nesse momento, o homem que estava voltando para casa correndo, em razão da chuva, foi abordado pelos agentes que então tiraram uma foto do rapaz e enviaram por WhatsApp aos colegas que estavam com as vítimas. Elas, então, teriam reconhecido o jovem. Em seguida, João foi preso em flagrante e reconhecido também pessoalmente.
Após um autêntico processo kafkiano com "direito" a flagrante sem "nada de ilícito" com o jovem, tendo negado peremptoriamente a acusação e tendo sido identificado em desacordo com o artigo 266 do Código de Processo Penal[1], João foi vítima do próprio sistema. Valendo frisar também aqui que na delegacia, as vítimas o “reconheceram” novamente, mas ele foi a única pessoa apresentada pelo delegado. Fantástico isso, não?
Em audiência no fórum, aconteceu da mesma forma. Depois de preso e após quatro anos é que João escreveu a carta referida mais acima para o STF, quando conseguiu ser inocentado. Quando entrei na faculdade, o professor me disse: habeas pode ser feito com sangue e em papel de pão…! Foi mais ou menos isso que ocorreu com João.
Mas pensemos agora no Ministério Público. O que fez o fiscal da lei?. Condescendeu com todas as irregularidades no 1º grau. Já no 2º e quando a Defensoria Pública pediu a revisão da sentença, a procuradoria respondeu que, na análise de roubo, "a palavra da vítima assume peso fundamental no contexto probatório para apontar a autoria, sendo certo que, em muitos casos, apresenta-se como única fonte".
Já no STF, a Procuradoria-Geral da República pediu a confirmação da sentença. Quer dizer: quando alguém do governo comete ilícito, há zelo do zelo do zelo, chegando ao cúmulo de se arquivar representação por prevaricação (ação pública) porque faltaram elementos… Mas o MP não investiga? Já no caso de João, ocorreu o contrário. A total ausência de zelo.
Veja-se: o artigo 226 do CPP determina que o reconhecimento de suspeitos deve seguir algumas regras. E "deve" que não deve ser lido como "pode". Quando o Código determina um processo e aponta que "proceder-se-á pela seguinte forma", disso não se pode concluir que quaisquer autoridades possam fazer como querem.
Detalhe: como procurador de Justiça, eu exigia que o 226 fosse cumprido literalmente. Seguir o protocolo. Sob pena de nulidade. Quantos presos injustamente existem com base no reconhecimento bichado?
A carta que João encaminhou ao STF termina assim: "para uma possível condenação tudo deve ser claro como a luz. Condenação exige certeza, e não alta probabilidade". Bingo, João.
Uma valiosa lição de um jovem rapaz que estudou o CPP enquanto estava preso e que deveria ser compreendida pelo Ministério Público. E pelo juiz que o condenou. E pelo tribunal. Sua sorte foi alguém no STF ter lido sua carta. E a defensoria ter entrado com ação. E os ministros Gilmar, Kassio e Fachin terem julgado favoravelmente ao pleito de João. Mas foi por pouco. Ministro Gilmar ainda falou de uma coisa que muitos esquecem (sem trocadilho): existem falsas memórias. E há que tomar muito cuidado com prova desse tipo. Some-se a isso à precariedade de terem colocado apenas o próprio João para reconhecimento… e temos a tempestade perfeita.
Mesmo sendo uma triste realidade de terrae brasilis que o investigador indica como resultado aquilo que quer provar[2], torna-se importante refletir sobre o papel do Forma Dat Esse Rei no processo penal. Quando trata da liberdade, a forma é a essência do ato. Não seguiu, processo nulo. Ônus é do Estado. Garantias existem… contra o Estado. Com a devida vênia aos votos vencidos. Não dá para usar oração adversativa em processo penal, algo como: o procedimento é ilícito, mas…
Numa palavra final.
O HC foi escrito com sangue e em papel de pão? Não. Mas simbolicamente, sim! Meu professor tinha razão. E cumprimentos à defensora Miriam Aparecida Marsiglia!
[1] Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais. Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial. 1. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 71.
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