Opinião

Inteligência artificial e seus impactos nos escritórios de propriedade intelectual

Autor

  • Rafaela Di Sabato Guerrante

    é engenheira química formada pela UFRJ mestra e doutora em Gestão Tecnológica e de Inovação pela mesma instituição especialista em propriedade industrial e servidora do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

25 de julho de 2022, 9h08

O direito de propriedade industrial (PI) é um ramo da propriedade intelectual e é regulado no Brasil pela Lei de Propriedade Industrial (LPI), nº 9.279/1996. Os direitos de PI incluem as patentes, as marcas, os desenhos industriais, as indicações geográficas, os segredos industriais e à repressão à concorrência desleal. No Brasil, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) é o órgão do governo federal responsável pela sua concessão. Em outros países, há escritórios responsáveis pela análise de requerimentos e pela concessão desses direitos, como o escritório europeu (EPO) e o escritório dos Estados Unidos (USPTO).

Os impactos da inteligência artificial (IA) nos escritórios de propriedade industrial podem ser agrupados em dois grandes conjuntos. O primeiro deles, relacionado à melhoria da eficiência operacional e administrativa dos escritórios, a partir do emprego de tecnologias que utilizam IA nos processos dessas instituições.

Trata-se de ferramentas de chatbot para atendimento a usuários (helpdesk), softwares capazes de traduzir e classificar documentos de patente; proceder a buscas figurativas de marcas e desenhos industriais e de anterioridade de patentes; e, até mesmo, capazes de examinar o mérito de pedidos de PI. A maioria dessas ferramentas já existe e está disponível em escritórios de propriedade industrial de diversos países. Algumas delas foram desenvolvidas in-house, mas a maioria pertence a empresas privadas.

Nesse cenário, os principais questionamentos surgem quanto ao uso da IA no exame de mérito de pedidos e suas consequências e responsabilidades. Alguns escritórios já fazem uso de forma experimental desse tipo de aplicação, e há consenso de que, a curto prazo, essas ferramentas não substituirão o papel dos examinadores, mas sim trarão agilidade e eficácia ao sistema de concessão de ativos, considerando o viés de crescimento dos depósitos de ativos de PI no mundo e o consequente aumento da carga de trabalho dos escritórios de PI.

A intensificação na adoção dessas ferramentas é questão de tempo, mas um fato consumado. Em escritórios de propriedade industrial que buscam a celeridade no processo de exame, elas se tornam ainda mais fundamentais. O compartilhamento de ferramentas de IA entre escritórios de PI também desponta como oportunidade estratégica, uma vez que quanto maior o volume e a diversidade dos dados alimentados à ferramenta, mais eficiente e inteligente ela será. Assim sendo, o acervo nacional de pedidos de PI de cada escritório, com suas especificidades e particularidades, ganha ainda mais protagonismo, sendo preciosa moeda de troca em negociações de cooperação entre escritórios de propriedade industrial.

O segundo grande conjunto de impactos da IA nos escritórios de PI reúne os aspectos jurídicos relacionados à proteção da inteligência artificial. Muitas são as questões já levantadas e ainda poucas são as respostas. Neste artigo, serão citadas algumas delas.

A primeira delas é a falta de consenso na definição técnica da inteligência artificial, devido à sua abrangência e ao dinamismo de sua evolução. As definições hoje disponíveis não são suficientes para descrever o que de fato a IA abrange e representa. Invenções geradas pela IA sem a intervenção humana e invenções assistidas pela IA que, de alguma forma, envolvem a intervenção humana, divergem entre si e vão requerer proteções jurídicas diferentes. Até mesmo ferramentas de IA de mesma natureza podem vir a requerer regulações distintas. Uma inteligência artificial de reconhecimento facial de aplicação na identificação de criminosos tem a mesma natureza de uma IA que reconhece, pela face, animais que estão doentes em um rebanho e que precisam ser tratados ou sacrificados.

No entanto, as consequências e os impactos do uso dessas duas ferramentas de IA de mesma natureza são claramente distintos. Assim, vem-se discutindo a possibilidade de que até mesmo IAs de mesma natureza venham a ser reguladas de maneira diferente, tendo como foco suas aplicações.

Ainda no que concerne aos impactos jurídicos da IA, emerge a discussão sobre a possibilidade de a inteligência artificial ser nomeada como inventora ou titular de uma propriedade intelectual. Nesse aspecto, invenções assistidas por IA, ou seja, geradas com interferência humana, não são o centro das discussões. A principal celeuma está nas invenções geradas exclusivamente pela IA. Distintas são as argumentações. Nomear a IA como inventor em um pedido de patente preveniria a apropriação indevida da invenção por humanos que não estivessem envolvidos no processo.

Por outro lado, se a inteligência artificial não é dotada de personalidade jurídica, como proteger as invenções da IA em alguns países e, em caso de proteção, quem seria remunerado por uma eventual licença de uso? Qual a saída? Adaptar a legislação atual, nomeando um ser humano como coinventor? Criar um sistema sui generis capaz de protegê-la? De que natureza seria esse novo sistema sui generis? De outra maneira, manter a invenção em domínio público parece não ser condizente com um sistema que busca estimular e premiar aqueles que inventam. Da mesma forma que nem todas as invenções de IA estariam confortavelmente protegidas por segredo industrial e não haveria divulgação do processo inventivo para a sociedade.

Com relação aos critérios de patenteabilidade, há também maior sensibilidade para as invenções geradas exclusivamente pela inteligência artificial. Nesse tocante, também se discutem a inadequação do sistema atual de proteção, a necessidade de criação de um novo sistema ou adaptação do que já existe. Também não há consenso quanto à figura do “técnico no assunto”, no que diz respeito ao critério de atividade inventiva, uma vez que uma invenção que foi gerada exclusivamente pela IA será avaliada por um experto no assunto, que é um ser humano. Não deveria ser essa avaliação feita também por uma inteligência artificial?

Outro aspecto de relevância é a suficiência descritiva de documentos de patente que envolvem a inteligência artificial. A principal questão hoje parece estar centrada na descrição, no pedido de patente, da chamada "caixa preta", que consiste em revelar, em detalhes, que tipo de IA foi utilizada para a geração da invenção e de forma ela trabalha. Se uma inteligência artificial está em constante aprendizado a partir dos dados de que ela se abastece, como garantir que a IA que está sendo avaliada por um examinador de patentes, com base no que está descrito no pedido, é a mesma invenção que será colocada no mercado ou licenciada a terceiros?

Em sendo a IA a única geradora/inventora de uma invenção, quem irá prover as informações necessárias à redação de um pedido de patente para que ele cumpra o critério de suficiência descritiva? Ademais, para o perfeito entendimento da IA descrita em um pedido de patente, se faz necessário que o depositante descreva, também, o tipo de dado utilizado para que a IA gere a invenção. Essa é uma exigência que já tem sido feita por alguns escritórios de patente no mundo quando do exame de tecnologias envolvendo IA. Das dificuldades de cumprimento do requisito de suficiência descritiva, surge a proposição de que os dados de treinamento da IA, bem como os detalhes da "caixa preta", façam parte de um depósito complementar, como acontece com as sequências genéticas no Tratado de Budapeste, a fim de garantir a suficiência descritiva.

Alguns países têm se posicionado a favor de um sistema internacional harmonizado para proteção da inteligência artificial, seja ele novo ou decorrente de adaptações do que já existe. Por outro lado, é também possível perceber algumas nações se moverem no sentido serem pioneiras na forma como a IA deve ser legalmente protegida. Para esses países, um sistema harmonizado poderia trazer limitações ao desenvolvimento de seus mercados e indústria.

Outras questões jurídicas envolvendo a IA — como a autoria de criações da inteligência artificial (músicas e pinturas, por exemplo), a influência da IA nas formas de consumo de produtos e serviços de marca no ambiente virtual e a atribuição de responsabilidade no caso de decisões tomadas pela IA sem a interferência humana — requereriam outro artigo de opinião.

Além das iniciativas de relevância já encampadas pela OMPI e mencionadas neste documento, alguns escritórios de propriedade intelectual, como o dos Estados Unidos (USPTO), do Reino Unido (UKIPO) e o Escritório Europeu de Patentes (EPO), vêm fazendo consultas públicas e eventos, a fim de aprofundar a discussão do tema. Casos recentes de aceite da IA como autora de um direito autoral na Índia e como coinventora de pedidos de patente na África do Sul e na Austrália acirram ainda mais as discussões sobre a adequação do sistema atual de propriedade intelectual à proteção da IA.

O fim do túnel parece não estar próximo, mas há que se sopesar os prós e contras da manutenção, no longo prazo, de incertezas jurídica, semântica e ética inerentes ao tema. De um lado ou de outro, a maior impactada será sempre a sociedade.

Autores

  • é engenheira química formada pela UFRJ, mestra e doutora em Gestão Tecnológica e de Inovação pela mesma instituição, especialista em propriedade industrial e servidora do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!