Opinião

Emenda da relevância demandará profunda mudança de cultura no litígio

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25 de julho de 2022, 18h20

Após anos de tramitação e grande esforço por parte do Superior Tribunal de Justiça, o poder legislativo enfim aprovou a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) nº 110/17, a denominada "PEC da Relevância", promulgada pelo Congresso no dia 15/7/2022.

Na prática, a EC (Emenda Constitucional) nº 125/22 instituiu filtro de admissibilidade aos recursos especiais teoricamente semelhante àquele há muito exigido pelo Supremo Tribunal Federal nos recursos extraordinários, a repercussão geral, relegando ao STJ a função de uniformização de jurisprudência e de formação de teses no âmbito infraconstitucional, o que foi celebrado pelo atual presidente do STJ, ministro Humberto Martins, nas seguintes palavras: "A aprovação da PEC contribui para a missão do tribunal e para o melhor funcionamento de todo o sistema de Justiça, pois possibilita ao STJ exercer de forma mais efetiva o seu verdadeiro papel de firmar teses jurídicas para pacificar o entendimento quanto às leis federais".

Alvo de muitas críticas ainda quando tramitava sob a forma de proposta, a emenda constitucional veicula pontos que merecem destaques, seja por seus potenciais efeitos positivos, seja pelos negativos ou, ainda, os que poderão causar inseguranças jurídicas caso não esclarecidos objetivamente pelo legislador ordinário.

De pronto indicamos que o presente texto se limitará a analisar alguns pontos positivos, o que certamente não exclui a existência de questões negativas ou duvidosas e que apenas não serão abordadas neste momento por uma questão metodológica.

Feito o alerta, começamos apontando que as alterações vistas como positivas repercutem no campo pragmático e que, possivelmente, não serão observadas no curto prazo, já que dependerão da mudança da cultura litigiosa que tanto marcou o processo civil brasileiro em sua trajetória.

Primeiramente, e nos socorrendo a paralelo traçado com o futebol, outro importante ponto da cultura nacional, a emenda constitucional poderá amenizar aquilo que se convencionou chamar de "efeito VAR" sobre os juízes/árbitros de campo e que, apesar de apenas atuarem dentro das quatro linhas e não possuírem poder jurisdicional, em muito influenciam o dia a dia de milhões de brasileiros.

Apesar da tecnologia introduzida dentro dos campos ter gerado uma sensação de maior justiça ao resultado do jogo — afinal, os equívocos cometidos pelos juízes passaram a ser revisados por um órgão colegiado —, tal modificação da regra também trouxe uma consequência inesperada e indesejada: a tomada de decisões de forma mais despreocupada pelo árbitro e seus auxiliares dentro de campo, já que os erros considerados como "fatais" (expulsões, penalidades máximas etc.) seriam corrigidos pelo órgão colegiado revisor, o qual possui menos decisões a tomar durante o jogo e mais elementos para decidir, já que munido de diversas ferramentas tecnológicas.

A despreocupação dos árbitros, como era de se esperar, implicou um acúmulo de pequenas decisões equivocadas durante o jogo e, como somente aquelas de maior potencial lesivo poderiam ser "consertadas" pelos revisores, fez ruir a confiança dos envolvidos (jogadores, torcedores, dirigentes etc.) no sistema do VAR em poucos meses após a sua instituição. Hoje, programas esportivos dedicam quadros e profissionais apenas à análise do tal do VAR — se acertou ou errou na sua revisão, ou, pior, se deveria ou não ter atuado.

Ou seja, diminuem-se os gols ilegais e as expulsões injustas, porém aumenta-se o número de equívocos menores que minam o jogo a médio e longo prazo e que também são determinantes para a confiança no seu resultado, como a distribuição (ou a falta de) de cartões amarelos, marcações de faltas simples, inversões de laterais e escanteios…

Em conclusão: a revisão de decisões consideradas fatais pouco adianta se as decisões sobre questões menores se acumulam durante o jogo. Ganha-se de um lado, porém tira-se de outro, remetendo à velha dinâmica do "cobertor curto".

Pois bem, voltando ao "juridiquês", a EC nº 125/22 parece ir na contramão do VAR ao suprimir uma instância revisora sobre decisões proferidas por juízes e Tribunais locais, confiando que uma gama limitadíssima de decisões chegue ao STJ para julgamento.

A medida pode ser considerada como louvável, especialmente diante do já conhecido congestionamento do STJ em razão dos inúmeros recursos que chegam ao Tribunal diariamente, porém a sua efetividade dependerá de mudança de cultura semelhante (porém, espera-se, inversa) àquela pela qual passaram os juízes do esporte bretão — isto é, a tomada de decisões mais responsáveis e completas, uma vez que serão elas definitivas ao jurisdicionado.

Do contrário, o processo brasileiro cairá na mencionada problemática do cobertor curto — um STJ mais efetivo, com menos decisões a tomar e, portanto, mais tempo e recursos para chegar a um veredito final adequado, porém processos finalizados em segunda instância de forma atabalhoada, com máculas no direito de defesa e no devido processo legal que, como consequência da EC nº 125/22, não poderão ser revisitadas por órgãos colegiados superiores.

No cômputo geral, tal mudança nos parece positiva, já que desafiará o Poder Judiciário a responder a altura dos anseios do STJ em sua longa jornada para repaginar sua identidade revisora (afinal, "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades"). Se o trem não descarrilhar, após alguns meses de menor conforto de desembargadores em razão da supressão da "terceira instância", o cidadão terá uma prestação jurisdicional mais completa ainda em segundo grau, a aumentar a segurança jurídica e o tempo de resposta do judiciário às demandas do jurisdicionado.

E é daí que podemos destacar o segundo ponto positivo da EC nº 125/22: a maior preocupação em entregar ao cidadão uma prestação jurisdicional completa sem a necessidade da intervenção do STJ potencialmente elevará a confiança do jurisdicionado nas decisões proferidas por juízes e Tribunais locais, sem que estas precisem passar por três níveis antes de se tornarem definitivas.

Diminui-se, assim, a cultura litigiosa de apenas se contentar com uma decisão após os fatos e provas terem sido analisados por, pelo menos, um juiz, três desembargadores e cinco ministros. Um sistema que incentiva que a maior parte das lides seja resolvida apenas após o dizer de nove juízes não parece ser o mais eficiente e, portanto, está fadado ao fracasso ao longo do tempo.

E, com o aumento da confiança sobre as decisões não carimbadas pelo STJ, aumenta-se também a possibilidade da utilização das formas alternativas de resolução de conflitos, como a mediação e os acordos. Em outras jurisdições, não é incomum que partes transacionem seu direito antes mesmo de uma decisão de primeiro grau, o que apenas ocorre porque há um certo grau de confiança de que aquela decisão será mantida pelos demais órgãos julgadores.

É claro que, como mencionado no próprio título desse texto, o sucesso da EC nº 125/22 dependerá de uma profunda e importante mudança de cultura de juízes e jurisdicionados (e da relação de confiança entre eles), o que, como toda questão cultural, possui tempo de maturação mais lento do que os anseios da sociedade.

Neste meio tempo, apenas podemos desejar que o sistema judiciário consiga se desprender da figura do seu VAR de forma orgânica e responsável, entregando justiça ao cidadão de forma completa e adequada, mesmo no período de transição entre a cultura atual e aquela pretendida pelo STJ com a sua nova figura de Tribunal responsável pelas questões relevantes.

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