Opinião

Contornos jurídicos dos fan tokens (parte 1)

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22 de julho de 2022, 18h18

A pandemia de Covid-19 agravou a situação financeira de praticamente todos os setores da atividade econômica, escancarando a fragilidade dos agentes econômicos diante dos imprevistos de um mundo altamente globalizado.

Neste contexto, os clubes de futebol não saíram ilesos, razão pela qual buscaram alternativas para estancar a sangria e alentar o fluxo de caixa, sendo certo que os fan tokens surgiram como protagonistas no resgate às agremiações desportivas extremamente combalidas pela pandemia de Covid-19, possibilitando, inclusive, a contratação do atleta David Luiz [1] pelo Flamengo com os recursos advindos do contrato e o pagamento de luvas ao argentino Lionel Messi pelo Paris Saint-Germain [2] com "$PSG fan tokens".

Isto porque, ao prometer uma maior integração entre o clube e seus torcedores, este tipo de criptoativo fez grande sucesso durante o período pandêmico, cuja distância entre os personagens integrantes se tornou ainda maior por motivos óbvios, sendo certo que o criptoativo prometia solucionar essa questão, ganhando enorme popularidade e gerando elevadas receitas aos players envolvidos na operação [3], o que possibilitou uma redenção aos clubes.

Mas afinal, sob a ótica jurídica, o que são os fan tokens e qual a natureza desse ativo digital?

Apesar da ampla divulgação e veiculação de matérias jornalísticas acerca da vultuosidade dos valores envolvidos nas operações entre os clubes e as empresas emissoras dos criptoativos e operadoras das plataformas de engajamento, pouco ou nada se fala sobre a natureza jurídica destes ativos criptografados inseridos na tecnologia blockchain.

Pior, existe uma enorme confusão entre os fan tokens, os tokens de mecanismo de solidariedade e os NFTs, o que é totalmente compreensível, tendo em vista se tratar de um mercado recém-nascido e que traz consigo diversas novidades não apenas aos torcedores dos clubes e admiradores do futebol e de outros esportes, mas também ao público em geral que busca entender as peculiaridades de cada criptoativo e seus respectivos benefícios.

Diante disto, imperiosa se torna a discussão acerca da natureza jurídica dos fan tokens, de modo a compreendermos melhor o que são efetivamente, bem como traçarmos as diferenças deste criptoativo para os demais.

É de se destacar que não há qualquer regulamentação clara e específica acerca deste ativo digital atualmente, como veremos na parte 2 do presente estudo, o que realça a necessidade de traçar suas características para uma melhor compreensão.

Pois bem, a despeito dos ativos digitais não possuírem arcabouço normativo específico no âmbito do artigo 2º, da Lei nº 6.385/76 [4], o inciso IX, do mencionado dispositivo, engloba todos os títulos ou contratos ofertados publicamente, razão pela qual é possível o enquadramento do token como um valor mobiliário na hipótese de o ativo gerar uma remuneração, cujos rendimentos advêm do esforço de terceiros, isto é, do emissor do token.

Destarte, prossigamos para o cerne da questão, qual seja a natureza jurídica dos security tokens e dos utility tokens emitidos através de um ICO.

O primeiro ativo digital representa um bem, sendo considerado um investimento, cuja finalidade de emissão do token será de investimento de capital em um empreendimento desenvolvido pelo emissor, não possuindo uma funcionalidade intrínseca, mas sim determinados direitos na plataforma Blockchain, dentre eles o direito de participação nos resultados ou qualquer tipo de remuneração entabulada.

Por outro lado, o utility token emitido, dentre eles o fan token, atende a uma certa utilidade, cujo intuito será de acesso a um determinado produto ou serviço, de modo a inexistir qualquer garantia de remuneração ou de participação no projeto, mas apenas o direito de utilizar a função específica dentro do protocolo blockchain.

Devido ao caráter remuneratório do security token, resta patente que este possui natureza jurídica de valor mobiliário, nos moldes do artigo 2º, da Lei nº 6.385/76, sobretudo quando o mesmo se presta a atribuir direitos econômicos ou políticos que determinam os rumos da atividade do emissor aos seus detentores. Em outro viés, a aplicação do utility token torna a análise um pouco mais complexa, tendo em vista que este ativo não possui cunho remuneratório, diferentemente do security token, de modo a não possuir amparo no dispositivo legal supramencionado.

Assim, ao examinar o conteúdo positivado na Lei nº 6.385/76, observa-se que os fan tokens se tratam de utility tokens, que não preenchem todos os requisitos previstos no inciso IX, do artigo 2º, para configurarem valores mobiliários, concluindo-se, portanto, que os utility tokens não possuem natureza jurídica de valor mobiliário em nosso ordenamento jurídico e que, consequentemente, não estão sob a competência da CVM.

Destaca-se que o potencial de valorização do utility token não corresponde à expectativa de lucro, uma vez que não acarreta um caráter remuneratório, bem como não reflete o "direito de participação, de parceria ou de remuneração" previsto no inciso IX, do artigo 2º, da Lei nº 6.385/76.

O desfecho lógico é pautado no posicionamento da CVM nos casos referentes à Niobium Coin [5] e aos créditos de carbono [6], que representam a posição mais recente do órgão regulador, sob a égide da Lei nº 6.385/1976, que vem construindo um entendimento no sentido de que é imprescindível que a remuneração esteja atrelada ao token para o preenchimento de todos os quesitos previstos em seu inciso IX, do artigo 2º.

É de se ressaltar ainda o sublime voto do diretor relator Gustavo Machado Gonzalez no contexto do Processo Administrativo Sancionador (PAS) [7] ajuizado em face da Iconic, em virtude da oferta do criptoativo NIC pela empresa, que entendeu que a análise do ativo será casuística e não deve levar em conta apenas a denominação dada ao token, mas principalmente a sua finalidade:

"A classificação de um ativo digital como um payment token, um utility token ou um security token, dependerá não do seu rótulo, mas de sua função. Essas categorias, cabe ressaltar, não são estanques, de modo que um único criptoativo pode se enquadrar em uma ou mais modalidades, a depender das funções que desempenha e dos direitos a ele associados."

Nesta linha prossegue:

"Como afirmei anteriormente, o rótulo atribuído a um token é irrelevante para sua caracterização como utility token ou security token, pois o que realmente importa é a sua função.

Pelo exposto ao longo deste voto, conclui-se que o NIC, ofertado publicamente, foi adquirido por pessoas que realizaram um investimento em um empreendimento coletivo na expectativa de lucros decorrentes em larga medida dos esforços da ICONIC e de terceiros. Logo, o NIC é um valor mobiliário e, para sua oferta, deveria ter sido obtido o registro previsto no artigo 19 da Lei nº 6.385/1976 e no artigo 2º da Instrução CVM nº 400/2003, ou, então, ter sido obtida a dispensa prevista no inciso I do § 5º do artigo 19 da Lei nº 6.385/1976 e no artigo 4º da Instrução CVM nº 400/2003."

Como se vê, a CVM analisará, no bojo de um PAS, não somente a denominação do ativo ofertado, mas também a função deste, de modo a enquadrá-lo ou não nas hipóteses previstas nos incisos do artigo 2º, da Lei nº 6.385/1976.

A autarquia, no entanto, recomenda que os próprios agentes econômicos realizem esta análise dos criptoativos através do chamado "Howey Test", cujos requisitos devem estar preenchidos para que exista um enquadramento como contrato de investimento coletivo e esteja sob a competência da CVM. Neste sentido, os requisitos são: (1) a efetivação de um investimento; (2) a formalização deste investimento através de um título ou contrato, sendo certo que a natureza jurídica do instrumento adotado não tem grande relevância; (3) o caráter coletivo do investimento; (4) cunho remuneratório que confere o direito a algum tipo de remuneração em contrapartida do investimento realizado; (5) a remuneração tenha origem nos esforços do empreendedor ou de terceiros que não o próprio investidor; e (6) que o títulos ou contrato seja objeto de oferta pública.

Como se vê, o fan token é exclusivamente um utility token, por meio do qual o adquirente do ativo, seja um torcedor do clube ou um admirador, obterá acesso a um produto ou serviço, podendo desfrutar de diversos benefícios, sem, contudo, fazer jus a qualquer direito econômico ou político da entidade emissora.

Dessa maneira, resta patente que o fan token não tem natureza jurídica de valor mobiliário, razão pela qual não estará sujeito ao regime estabelecido pela Lei nº 6.385/76 e pela ICVM nº 400, de modo que não é necessário o registro para sua oferta.

Apenas à guisa de compreensão adequada, os ICOs (Initial Coin Offering) que tiverem por objeto utility tokens, como os fan token, não estarão sob a regulação da Comissão de Valores Mobiliários, possibilitando aos clubes brasileiros a captação de recursos através de um procedimento de baixo custo e de pouca burocracia. Isso porque o ICO, neste caso especificamente FTO (Fan Token Ofering), diferentemente da IPO (Initial Public Offering), não demanda a efetivação de procedimentos administrativos extremamente burocráticos e custosos, sendo desnecessário o cumprimento das diretrizes impostas pela CVM para posterior listagem na Bolsa de Valores.

Isto posto, é de se ressaltar ainda que o fan token é um bem móvel, nos termos do artigo 82 do Código Civil, eis se tratar de um ativo suscetível de movimento próprio sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

Ademais, diferentemente dos NFTs (tokens não fungíveis), trata-se de um bem fungível, tendo em vista que cada fan token específico é igual às outras unidades do mesmo token em todos os sentidos, assim como um bitcoin é igual a outro bitcoin, por exemplo. Assim, um fan token pode ser substituído por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.

Já no que diz respeito à divisibilidade do fan token, entende-se que o criptoativo é indivisível, eis que é impossível a sua divisão sem a diminuição considerável de valor ou prejuízo do uso a que se destina.

Por fim, mostra-se de bom alvitre salientar que o fan token é um bem incorpóreo, isto é, trata-se de um ativo abstrato que não possui existência física, encontrando-se inserido dentro da tecnologia blockchain.

Assim, sob uma perspectiva jurídica respaldada nos fundamentos do Direito Civil, ainda que não exista qualquer doutrina ou jurisprudência acerca dos fan tokens, pode-se afirmar, com base nas suas características e finalidades, que os fan tokens são utility tokens, que não têm natureza jurídica de valor mobiliário, sendo certo que se tratam de bens móveis, fungíveis, indivisíveis, e incorpóreos, o que permite concluir que transações como compra, venda e doações deverão seguir as orientações previstas pelo Código Civil para bens dessa espécie.

Continua parte 2.


[4] "Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: I – as ações, debêntures e bônus de subscrição; II – os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II; III – os certificados de depósito de valores mobiliários; IV – as cédulas de debêntures; V – as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos; VI – as notas comerciais; VII – os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários; VIII – outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros. § 1o Excluem-se do regime desta Lei: I – os títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal; II – os títulos cambiais de responsabilidade de instituição financeira, exceto as debêntures."

[5] Processo SEI nº 19957.010938/2017-13

[6] Processo CVM RJ 2009/6346

[7] PAS CVM nº 19957.003406/2019-91

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