Direito Eleitoral

Eleição de deputados pelo sistema majoritário — perda da primazia do sistema proporcional

Autores

  • Vladimir Belmino de Almeida

    é advogado assessor legislativo no Senado Federal membro da Comissão Especial de Estudo da Reforma Política do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e membro fundador da Abradep.

  • Mauro Antonio Prezotto

    é especialista em direito público advogado professor de direito eleitoral membro fundador da Abradep e membro da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB.

25 de julho de 2022, 8h03

Você já pensou votar pelo sistema proporcional em um partido e eleger uma pessoa? Pois é, toda jurisprudência e legislação vem sendo adequada ao longo do tempo para dar primazia aos partidos e à representação popular proporcional; e esse esforço pode sofrer retrocesso se for utilizada a pior das formas da hermenêutica, a literal.

O problema aqui abordado tem por base as disposições dos artigos 106 a 111 do Código Eleitoral (CE) que, como de praxe, foram reproduzidos na Resolução TSE 23.667/2021, nos artigos 8º e seguintes, os quais se ocupam da regulamentação do funcionamento do sistema proporcional [1].

A regra primeira do sistema proporcional é a realização do cálculo do quociente eleitoral (QE), que indicará o número de votos necessários para o preenchimento de uma vaga — artigo 106 do CE — [2]. Segundo passo é a distribuição das vagas entre os partidos e federação de partidos que disputaram o pleito, através do quociente partidário (QP) — artigo 107, CE [3].

Da primeira distribuição de vagas, por dedução lógica, somente participam os partidos e/ou federação de partidos que alcançaram o quociente eleitoral [4]. Os lugares eventualmente não preenchidos com base na aplicação dos quocientes partidários e em razão da exigência de votação nominal mínima, serão distribuídos de acordo com as regras estabelecidas no artigo 109 do CE [5], fase da qual participam todos os partidos e federação de partidos que tenham obtido pelo menos 80% do quociente eleitoral e que tenham candidato com votação nominal igual ou superior a 20% do mesmo quociente.

A despeito da clareza das disposições contidas especialmente nos artigos 108 e 109 do CE, o mesmo diploma traz outra regra que, se interpretada de forma literal, poderá afastar a aplicação do sistema proporcional. Referimos aqui o artigo 111 do CE [6], segundo o qual, se nenhum dos partidos alcançar o QE, aplica-se o sistema majoritário, pelo qual serão eleitos os candidatos mais votados, independentemente de vinculação partidária e do número de votos que o partido e/ou federação de partidos conquistou. Ou seja, por tal interpretação, não se cogitaria de aplicar a regra dos 80% e 20% prevista no § 2° do artigo 109 do CE, ignorando o sistema de eleição para a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmara de Vereadores, indo de encontro ao texto constitucional, ao espírito da lei e jurisprudências atuais, que buscam prestigiar partidos e eliminar o individualismo. Seria uma interpretação antissistêmica?

O ponto nodal a ser considerado na interpretação e aplicação das normas é a sua matriz de sustentação. No caso aqui analisado, tem-se previsão expressa no texto constitucional que estabelece o sistema proporcional como instrumento para a escolha de deputados e vereadores. Nesse norte, considerando a opção estabelecida pelo constituinte fixada de forma clara na CF/88, estaria a regra do artigo 111 do CE em constância com o estabelecido nos artigos 45 e 27, § 1º da CF/88? A regra da maior votação nominal poderia ser aplicada de forma direta em desprestígio àquela prevista no artigo 109 do CE? A interpretação literal, no caso, seria o melhor método para compatibilizar o desejo do legislador ordinário de mitigar a fragmentação da representação política com o texto expresso da CF/88?

O artigo em questão (111, CE) ainda não foi objeto de análise pelo Poder Judiciário, até porque a redação atual foi dada pela Lei nº 14.211/2021 [7], de modo que a eleição de 2022 poderá enfrentar pela vez primeira eventual problema de aplicação dessa regra [8]. De todo modo, a aplicação automática da rega do artigo 111, na hipótese nele contida, parece mesmo indicar incompatibilidade com o sistema previsto na CF/88, já que implicaria ignorar, pura e simplesmente, o sistema erigido no texto constitucional.

No caso específico, a interpretação literal não constitui o melhor método para compatibilizar o texto do artigo 111 do CE ao preceito da CF/88 e, ao mesmo tempo, atender o sentido da lei e principalmente, dar primazia à forma proporcional de preencher as vagas destinadas ao sistema proporcional, representando uma quebra lógica antecipada e abjeta.

Há de se buscar forma de interpretação integrativa que garanta a primazia do sistema proporcional, levando à exaustão as maneiras de preencher as vagas por tal sistema e somente após esgotadas todas as possibilidades poderá se valer do sistema majoritário previsto no artigo 111 do CE.

A título exemplificativo, temos 32 partidos e Estados que dispõe de somente 8 vagas para Câmara Federal. Agora, imagine que todos — ou a maioria — lancem nominatas, ou seja, a hipótese de extrema fragmentação é real! Tal circunstância pode provocar uma situação concreta em que os partidos e/ou federação de partidos não alcancem os 100% do QE, mas obtenham os 80% e, dentre seus candidatos, algum alcance 20% desse quociente.

Pensar que, nesta hipótese, por força do artigo 111 deve-se adotar de forma direta o sistema majoritário, por maioria de votos nominais, parece que vai contra a maré, tornando inócuo o preceito que gerou o 80/20%. Então, se nenhum partido alcançar os 100% do QE (artigo 108), há que se verificar a regra dos 80/20% (artigo 109, § 2°). Somente após essa incursão – nenhum partido alcançar os 100%, tampouco 80% do QE — poderia se adotar a regra da maior votação nominal (artigo 111).

Caso contrário, será mesmo um contrassenso ter mudado as regras de coligação e criado o pedágio das sobras sem garantir a proeminência do partido ante o individualismo, em total desprestígio à proporcionalidade.

Importa, portanto, ressaltar que a regra do artigo 111 não pode ser aplicada de forma automática, sob pena de ferir o princípio da distribuição proporcional inscrito no texto constitucional. Há de se considerar a matriz constitucional e a lei em sua inteireza e não somente parte dela. Então a interpretação do artigo 111 deve se dar sem desconsiderar o art. 109, incluindo, portanto, seu § 2.

De outro giro, o artigo 109 diz que "os lugares não preenchidos com a aplicação dos quocientes partidários e em razão da exigência de votação nominal mínima a que se refere o art. 108 serão distribuídos de acordo com as seguintes regras […]", sendo correto supor que vagas não preenchidas podem corresponder a 100% daquelas em disputa. Até porque a lei refere em seu art. 109 em lugares não preenchidos e não exatamente em sobras. Se o legislador assim quisesse dizer, o teria dito! Portanto, a conclusão de que "lugares não preenchidos" subentende que ao menos uma vaga foi preenchida, é um falsear da mente, que nos engana, em uma leitura rápida e descontextualizada da evolução legal e jurisprudencial.

E as preocupações não cessam na correta interpretação legal, ela avança em direção ao sistema de totalização (Sistot) do TSE, o qual vai ser programado para calcular as vagas. E como o programador vai elaborar esse algoritmo, respeitando ou não essa interpretação?

Logo, ainda que a interpretação lógico-literal possa indicar que na hipótese de não haver distribuição inicial de nenhuma vaga, não haveria sobra, para preservar ao máximo o sistema preferencial posto na CF/88, é sustentável dizer que as sobras podem variar de um até a totalidade das vagas em disputa. Assim, não havendo nenhum partido ou federação que atinja o QE, teremos 100% de vagas para distribuir segundo as regras do artigo 109 do CE. Desse modo, o artigo 111 só teria aplicação residual e nos casos em que não haja mais partidos que cumpram a regra dos 80/20%.

Esse pensar tem por premissa a distribuição das vagas de deputado aos partidos pelo sistema que a CF/88 estabeleceu, de modo a assegurar a máxima representação possível das diferentes correntes e forças, preservando o valor do voto quanto ao resultado, posto que a adoção do sistema majoritário para a escolha de deputados, como pontuam Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, implica no descarte dos votos dados a candidatos minoritários, afetando a igualdade do valor do voto quanto ao resultado.

 


REFERÊNCIAS:

BRASIL. Código Eleitoral. Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4737compilado.htm.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional

 


[1] O sistema proporcional é adotado para a escolha dos membros da Câmara dos Deputados, das Assembleias Legislativas e Câmara de Vereadores, nos termos dos arts. 45 E 27, § 1º da CF/88.

[2] Art. 106. Determina-se o quociente eleitoral dividindo-se o número de votos válidos apurados pelo de lugares a preencher em cada circunscrição eleitoral, desprezada a fração se igual ou inferior a meio, equivalente a um, se superior.

[3] Art. 107. Determina-se para cada partido o quociente partidário dividindo-se pelo quociente eleitoral o número de votos válidos dados sob a mesma legenda, desprezada a fração.

[4] O art. 108 do CE adiciona ainda outro componente, ao estabelecer que estarão eleitos os candidatos registrados pelo partido ou federação, que tenham obtido votos igual ou superior a 10% do quociente eleitoral.

[5] Art. 109. Os lugares não preenchidos com a aplicação dos quocientes partidários e em razão da exigência de votação nominal mínima a que se refere o art. 108 serão distribuídos de acordo com as seguintes regras:

[…]

§ 2°. Poderão concorrer à distribuição dos lugares todos os partidos que participam do pleito, desde que tenham obtido pelo menos 80% (oitenta por cento) do quociente eleitoral, e os candidatos que tenham obtido votos em número igual ou superior a 20% (vinte por cento) desse quociente.

[6] Art. 111. Se nenhum partido alcançar o quociente eleitoral, considerar-se-ão eleitos, até serem preenchidos todos os lugares, os candidatos mais votados.

[7] O artigo 111 do CE na redação anterior, da dada pela Lei nº 7.454/1985, apresentava conteúdo semelhante ao que agora vige. Porém, a matéria nunca foi enfrentada pelo Judiciário.

[8] No julgamento da ADI 5.920/2020, o STF reconheceu a constitucionalidade da cláusula de desempenho individual (votação nominal igual ou superior a 10% do quociente eleitoral, prevista no art. 108 do CE), o que não autoria concluir que o art. 111 do CE também se compatibiliza com a CF/88 em sua inteireza, ou que pode ser aplicado de forma preferencial às outras regras de que visam contemplar o sistema de distribuição proporcional.

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