Defesa da concorrência

Compartilhar ou não compartilhar? As visões do direito antitruste

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25 de julho de 2022, 8h01

O verbo compartilhar geralmente está associado a aspectos positivos do ato de dividir alguma coisa ou algum sentimento com outras pessoas, seja repartindo algum ganho com seus familiares ou mesmo compartilhando despesas ou aflições em que se busca diminuir o sofrimento com a presença de amigos ao seu lado para ajudar a superar alguma dor ou dificuldade financeira. De outro lado, quando o compartilhamento de um bem ou de uma propriedade é feito de maneira forçada, é possível que esse sentimento fraternal e altruísta se modifique. Na perspectiva do Direito Antitruste, geralmente, o debate foca majoritariamente no viés positivo de se “compartilhar” estruturas produtivas. Todavia, é possível haver efeitos negativos de um compartilhamento forçado por uma decisão da Autoridade Antitruste.

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Tais discussões têm como pano de fundo um tema complexo e controverso no Direito Concorrencial: a chamada doutrina das instalações ou estruturas essenciais (ou, em inglês, Essential Facility Doctrine). O presente artigo tem o objetivo de trazer algumas considerações sobre esse tema à luz da doutrina e jurisprudência nacional e internacional.

A referida doutrina teve origem nos Estados Unidos. Foi nomeada como tal pela primeira vez em 1977, no caso Hecht vs. Pro-Football, Inc.[1], muito embora já tivesse sido aplicada desde 1912 e em diversos outros precedentes[2]. Esta doutrina foi expressa mais claramente na opinião de 1983 do Sétimo Circuito norte-americano no caso MCI Communications vs. AT&T, que afirmou que existem “quatro elementos necessários para estabelecer responsabilidade sob a doutrina de instalações essenciais: (1) controle da estrutura essencial por um monopolista[3]; (2) a incapacidade de um concorrente praticamente ou razoavelmente para duplicar a instalação essencial; (3) a negação do uso da estrutura para um concorrente; e (4) a viabilidade de fornecer a instalação.”

Em outro caso norte-americano, conhecido como caso Trinko[4],  estipularam-se outras limitações para o uso da referida doutrina. Por exemplo, se a regulação já possuir uma solução adequada para acessar uma dada infraestrutura, não caberia uma intervenção do Direito Concorrencial para, também, garantir este mesmo acesso. Passou-se a chamar esta hipótese de soft immunity ou imunidade branda (AFONSO, 2017, p. 45).

Na Europa, mesmo sem se referir ao termo “estruturas essenciais” (BRONNER, 2004, p. 1), julgou-se o caso United Brands[5], em que se determinou que uma empresa que produzia e vendia bananas não poderia se recusar a reabastecer outra empresa que amadurecia essas frutas e as distribuía.

Outro caso europeu interessante foi o Oscar Bronner/Mediaprint (Processo C-7/97). Neste precedente, o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia teve que analisar se a Mediaprint deveria distribuir os jornais da Oscar Bronnero por um preço razoável.  O Tribunal de Justiça Europeu, à época, entendeu que não havia qualquer espécie de infração concorrencial na recusa de negociação da MediaPrint, visto que não havia evidências de obstáculos técnicos, legais ou econômicos para o estabelecimento de um sistema de distribuição de jornais rival.

No Brasil, em 2002, a Embratel denunciou a Telefônica por ato discriminatório em relação aos preços da Exploração Industrial de Linhas Dedicadas (EILDs)[6]. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) usou a teoria das infraestruturas essenciais em sua análise para condenar a Telefônica. É importante ressaltar, todavia, que tal caso não disse respeito a uma recusa total de acesso, mas de discriminação de preços de acesso.

No inquérito administrativo nº 08700.006268/2018-15, a Companhia Brasileira de Soluções e Serviços (“Veloe”) e a Greenpass Tecnologia em Pagamentos S.A. (“GreenPass”) denunciaram a empresa Centro de Gestão de Meios de Pagamentos Ltda (“Sem Parar”) por cobrar preços tão altos pelo compartilhamento de suas antenas que tal atitude representaria uma recusa de acesso a um bem essencial. Estas empresas atuam no serviço de operação de meios eletrônicos de pagamento através de identificação automática de veículos (“AVI”) por radiofrequência. Neste mercado, os clientes – proprietários/motoristas de veículos – contratam uma empresa que presta esse serviço e recebem dela um dispositivo para fixar no para-brisa de seu veículo. Esse dispositivo é identificado remotamente por antenas, fazendo com que as cancelas se abram automaticamente. As tarifas relacionadas aos pedágios e estacionamentos são computadas diretamente na conta que o cliente.

O Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do CADE, na Nota Técnica nº 31/2019/DEE/CADE, buscou avaliar qual seria o nível de investimento necessário para que um entrante construísse uma estrutura de antenas alternativa, tentando mensurar quanto seria necessário investir para entrar no referido mercado. Chegou-se à conclusão que uma entrada independente seria viável e os preços ofertados pela Sem Parar não representariam recusa travestida de negociação. Ao final do inquérito a Superintendência-Geral do Cade arquivou o caso. Enfim, há uma série de outros casos que lidaram com essa teoria e ainda estão debatendo questões afetas ao compartilhamento de ativos ou à recusa do provimento de bens.

A respeito dos pontos positivos que este tipo de medida gera, pode-se citar que o compartilhamento de ativos tidos como essenciais pode melhorar a situação dos entrantes, diminuindo barreiras à entrada, trazendo mais transparência para cenários de empresas verticalmente integradas, além de diminuir eventuais preocupações com práticas exclusionárias e discriminatórias. Ocorre que é possível haver custos com este tipo de determinação por parte da autoridade pública.

Sabendo de tais custos, Phillip Areeda (1989) foi um grande crítico da doutrina de Essential Facility e seu pensamento teve uma profundo impacto no Direito Concorrencial norte-americano, compreendendo que esta teoria deveria ser aplicada em casos excepcionais apenas e que nenhum tribunal deveria impor o dever de contratação que não possa explicar ou supervisionar de forma adequada e razoável. Enfim, há custos de transação na imposição de um acesso forçado a uma infraestrutura. Hovenkamp (2008) igualmente apresenta ceticismo em relação a este tipo de abordagem, já que nem todo monopolista dono de uma estrutura essencial é verticalmente integrado, o que pode retirar preocupações de cunho exclusionário do debate.

De outro lado, Pindyck (2007, p. 275) sustenta que as regras de compartilhamento de rede adotadas para atrair entrantes reduzem os incentivos para investir na criação de redes. Assim, os entrantes apropriam-se de recompensas (upside), deixando os proprietários de rede totalmente responsáveis pelas perdas (downside). Quando se estabelece o compartilhamento forçado, entrantes podem facilmente entrar e sair do mercado, já que não incorrem em custos afundados (sunk costs). Pindyck sustenta que é muito provável que entrantes deixem de investir em infraestrutura, podendo pegar carona nos investimentos dos incumbentes. Com este tipo de determinação, diminui-se não apenas o incentivo para construir novas redes, mas também para atualizar e conservar as redes existentes.

O Ministro Breyer da Suprema Corte norte-americana explicou no caso AT&T Corp. vs. Iowa Utils. Bd. (1999), que, em um contexto de unbundling[7] regulatório, não se pode garantir que as empresas incumbentes realizarão investimentos necessários para produzir complexas inovações no bem que será compartilhado, sabendo, de antemão, que qualquer vantagem competitiva decorrente dessas inovações serão dissipadas pela exigência de compartilhamento.

Hausman e Sidak (1999, p. 460) sustentam que os consumidores sofrem se os entrantes não tiverem incentivos para construir novas redes, já que, neste cenário, não haverá oferta de rede alternativa. Na decisão Loretto vs. Teleprompter Manhattan CATV Corp., (1982), considerou-se que se o governo autoriza a ocupação física de uma propriedade, deve-se pagar uma indenização justa pelo seu uso. Autores como Sidak e Spulber (1997, p. 232) consideraram que este princípio deveria ser válido igualmente para políticas de unbundling.

O Secretariado da OCDE (2008, p. 35) considera que a competição baseada em unbundling é uma alternativa do tipo “segundo-melhor” (second-best) se comparada com a competição baseada em infraestrutura. Há diversos estudos empíricos sobre o tema, mostrando o menor vigor da concorrência baseada apenas em serviços vis-à-vis a concorrência baseada em infraestrutura. Briglauer, Ecker, e Gluger (2013) analisaram dados dos países membros da União Europeia para os anos de 2005–2011 e concluíram que à medida em que há unbundling (competição baseada em serviços) há menos construção de redes de fibra ótica. O estudo de Waverman e outros (2007) e o modelo teórico de Gayle & Wesiman (2007) igualmente apontam na direção de que investimentos são afetados com este tipo de compartilhamento forçado de propriedade.

Portanto, a determinação de compartilhamento de uma infraestrutura por parte da Autoridade Concorrencial ou até mesmo um unbundling regulatório diz respeito a uma decisão complexa. Deve-se estudar muito bem este tema, ponderando-se todos os efeitos e incentivos envolvidos, antes de cogitar este tipo de decisão.


[1] US Court of Appeals, District of Columbia Circuit. Norman F. HECHT et al., Appellant vs. PRO-FOOTBALL, INC., et al., Appellee, 570 F.2d 982 (D.C. Cir. 1977).

[2] United States vs. Terminal Railroad Association of St. Louis; Associated Press vs. United States; Gamco vs. Providence Fruit & Produce Building United States Court of Appeals, First Circuit. Gamco, Inc., appellant, vs. Providence Fruit & Produce Bldg., Inc., et al, appellee. 194 F.2d 484 (1st Cir. 1952). Otter Tail Power Co. vs. United States ; Eastman Kodak Co. vs. Image Technical Services.

[3] Aspen Skiing Company vs. Aspen Highlands Skiing Corporation

[4] Decidido pela Suprema Corte norte-americana, em Verizon Commc‘ns Inc. vs. Law Offices of Curtis V. Trinko (2004).

[5] United Brands Company and United Brands Continentaal BV vs. Commission of the European Communities.

[6] BRASIL, Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo n. 08700.003174/2002-19, Requerente: Embratel. Requerida: Telecomunicações de São Paulo S.A. – TELESP. Relator Conselheiro Cleveland Prates Teixeira, julgado em 27.02.2003

[7] Unbundling significa em português desagregar, separar ou dissociar, em que o preço e vários outros aspectos contratuais podem ser regulados. Trata-se, assim, de uma desagregação de propriedade já existente.


Referências

AFONSO, M. G. (2017). O Controle Concorrencial das Condutas Unilaterais das Empresas Estatais. Dissertação de Direito. Rio de Janeiro: FGV. Acesso em 21 de Julho de 2022, disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/20187 

BRIGLAUER, W., ECKER, G., & GLUGER, K. (2013). The impact of infrastructure and service-based competition on the deployment of next generation access networks: Recent evidence from the European member states. Information Economics and Policy, 25, 142-152. Acesso em 21 de Julho de 2020, disponível em https://www.wu.ac.at/fileadmin/wu/d/i/iqv/Gugler/Artikel/beg_iep.pdf

BRONNER, O. (2004). Essential facilities in the European Union: Bronner and beyond. Columbia Journal of European Law, 1-35. Acesso em 20 de Julho de 2022, disponível em https://www.jonesday.com/files/Publication/e2d79ea9-8440-49e6-a879-c834f4b0b557/Presentation/PublicationAttachment/9cf89b02-295b-43cf-8a00-3cbea13a85bf/Article%20essential%20facilities.pdf

GAYLE, P., & WEISMAN, D. (2007). Efficiency trade-offs in the design of competition policy for the telecommunications industry. Rev. Netw. Econom., 6, 321–341.

HAUSMAN, J. A., & SIDAK, G. J. (1999). A Consumer-Welfare Approach to the Mandatory Unbundling of Telecommunications Networks. The Yale Law Journal, 109, 417-505.

Mattos, C. (. (2005). A proposta do governo em interconexão e unbundling na renovação dos contratos de concessão em telecomunicações em 2006. Anais do XXXIII Encontro Nacional de Economia [Proceedings of the 33rd Brazilian Economics Meeting], ANPEC – Ass. Acesso em 21 de Julho de 2022, disponível em http://www.anpec.org.br/encontro2005/artigos/A05A107.pdf

OCDE. (2008). Monitoring the recommendation of the council on broadband development – Documento C(2008)51. Paris: OCDE. Acesso em 21 de Julho de 2022, disponível em https://one.oecd.org/document/C(2008)51/en/pdf

PINDYCK, R. S. (2007). Mandatory Unbundling and Irreversible Investment in Telecom Networks". Review of Network Economics, 6, n.3, 274-298. doi: https://doi.org/10.2202/1446-9022.1121

SIDAK, J. G., & SPULBER, D. (1997). Deregulatory Takings and the Regulatory Contract: The Competitive Transformation of Network Industries in the United States.,. Cambridge: Cambridge University Press.

WAVERMAN, L., MESCHI, M., REILLIER, B., & DASGUPTA, K. (2007). Access Regulation and Infrastructure Investment in the Telecommunications Sector: An Empirical Investigation. Londres: LECG. Acesso em 21 de Julho de 2022, disponível em https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.110.119&rep=rep1&type=pdf

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