Observatório Constitucional

Retrocesso constitucional: lições do outro lado do mundo

Autor

  • Ana Beatriz Robalinho

    é doutoranda (J.S.D.) e mestre (LL.M.) em Direito pela Yale Law School mestre em Direito Público pela Universidade de São Paulo (USP) graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) professora do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) advogada e consultora em Direito Público.

23 de julho de 2022, 8h03

1. Há pouco mais de três décadas, do outro lado do mundo, um país conquistou a democracia num clima de mobilização popular, após anos de ditadura, e consolidou essa conquista com uma nova Constituição, democrática, com valores liberais e ampla preocupação com a igualdade social. Nos anos seguintes, ainda lidando com os problemas do passado — entre os quais a pobreza, a corrupção e a instabilidade econômica — esse país fortaleceu e consolidou sua democracia por meio de eleições livres e periódicas, e pela aplicação gradativa de suas promessas constitucionais. No entanto, a recente eleição de um presidente populista e autoritário gerou imensos retrocessos no processo de consolidação democrática [1].

Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. São muitos os paralelos que podem ser traçados entre os processos que levaram Jair Bolsonaro e Rodrigo Duterte, nas Filipinas, ao poder. Em ambos os casos, escândalos de corrupção em massa deslegitimaram os partidos da oposição e deram início a uma antipatia generalizada em relação ao establishment político existente. Duterte e Bolsonaro então empregaram uma retórica comum de populismo que combinava críticas à política tradicional, militarismo e misoginia. Suas presidências deram início a ataques sistêmicos à democracia e viram um recuo geral das liberdades políticas e cívicas. Ambas foram especialmente marcadas pelos retrocessos no campo da liberdade de expressão, com ataques à mídia tradicional e o uso contínuo e aprofundado de fake news [2].

A afinidade entre as figuras de Duterte e Bolsonaro, o contexto político que os levaram ao poder e a forma que suas presidências tomaram sugerem que o populismo autoritário e seus efeitos no retrocesso constitucional seguem um script, identificável mesmo em países tão diferentes quanto o Brasil e as Filipinas. O primeiro objetivo desse artigo é destacar os pontos chave desse script, sob a premissa de que a única forma de combater o retrocesso constitucional é conhece-lo na maior extensão possível.

O segundo objetivo é o compartilhado por todos os estudos em direito comparado: aprender com os erros, e com os acertos, de outras jurisdições que enfrentam problemas semelhantes. Esse aprendizado adquire um tom urgente diante do desfecho do governo de Rodrigo Duterte nas Filipinas: em maio de 2022, Duterte obteve sucesso em eleger seu sucessor, Ferdinand Marcos Jr., filho do ditador Ferdinand Marcos, que governou o país por duas décadas; a própria filha de Duterte foi eleita vice-presidente. Com isso, as Filipinas ultrapassaram o ponto de não retorno sinalizado pela ciência política: a segunda eleição de um líder anti-democrático, após a qual a democracia dificilmente será salva [3].

Num momento em que o Brasil se aproxima da eleição que vai definir o futuro da sua democracia, é especialmente relevante entender o que pode levar um país previamente democrático ao ponto de não retorno, quais instituições falharam em seus deveres, e quais escolhas de design constitucional se mostraram inadequadas.

2. O tema do retrocesso constitucional tem dominado os debates acadêmicos. Esse e outros termos são utilizados de formas distintas e por vezes indiscriminadamente. Mesmo no breve debate proposto aqui, alguns esclarecimentos teóricos se fazem necessários.

A consolidação democrática é aqui entendida na formulação clássica de Juan Linz e Alfred Stepan como a transformação de um regime político em um em que a democracia se tornou o único jogo da cidade [4]. Já o termo retrocesso constitucional se refere ao processo de mudanças incrementais que não levam à alteração radical do regime, mas transformam fundamentalmente o caráter liberal dos estados democráticos. Vários estudiosos usaram termos diferentes para descrever esse fenômeno: erosão democrática [5], constitucionalismo abusivo [6], autoritarismo furtivo [7], inovações autoritárias [8], retrocesso democrático anticonstitucional [9], e podridão constitucional [10].

Aziz Huq e Tom Ginsburg usaram o termo "retrocesso constitucional" para se referir a um processo de "decadência incremental (mas em última análise substancial) em três predicados básicos da democracia — eleições competitivas, direitos liberais de expressão e associação, e estado de direito" [11]. É importante ressaltar que o retrocesso ocorre "somente quando uma mudança negativa substancial ocorre ao longo de todas as três margens" [12]. Huq e Ginsburg também identificaram cinco mecanismos de retrocesso: (1) emenda constitucional; (2) a eliminação dos controles institucionais; (3) a centralização e politização do poder executivo; (4) a contração ou distorção de uma esfera pública compartilhada; e (5) a eliminação da competição política.

3. Rodrigo Duterte chegou à presidência das Filipinas usando a mídia digital para difundir uma retórica radical que retratava todo o establishment político como uma facção corrupta que protege traficantes e viciados e ele, um forasteiro político duro que garantiria a lei e a ordem e reduziria a criminalidade. No que Mark Thompson chama de "engrandecimento executivo irrestrito" [13], Duterte eliminou sistematicamente os controles institucionais sobre o poder executivo. Um de seus primeiros alvos foi a Comissão de Direitos Humanos, uma comissão independente que atua como agência central do país para a proteção dos direitos individuais. Em 2018, uma Câmara dos Deputados liderada por Duterte tentou extinguir da Comissão, alocando a ela um orçamento anual de vinte dólares [14].

Duterte também ameaçou repetidamente com impeachment os chefes da Comissão Eleitoral, do Ministério Público e da Suprema Corte. No caso da última, com sucesso. Em maio de 2018, a independência judicial foi severamente comprometida com a destituição de uma Ministra que enfrentava o impeachment após expressar preocupação com as derrogações dos direitos humanos trazidas pela guerra às drogas [15].

A liberdade de imprensa também sofreu duros ataques. O governo revogou o registro do Rappler, um site de notícias online que criticava a guerra às drogas de Duterte, e a franquia da ABS-CBN — a maior empresa de transmissão das Filipinas [16]. Órgãos de acusação do governo sistematicamente atacaram jornalistas com ações estratégicas destinadas a prejudicar sua credibilidade e restringir suas atividades [17].

Duterte fez o possível para alterar o dispositivo constitucional que impediu a sua reeleição, um movimento que muitos acreditam não ter tido sucesso em razão da pandemia da Covid-19 ter interrompido os trabalhos normais do Congresso. No entanto, mesmo sem ter sido capaz de alterar o dispositivo do termo presidencial, Duterte manteve e até mesmo fortaleceu a posição do presidente no sistema político filipino, que historicamente tem dificuldades em restringir o poder executivo [18].

Os direitos humanos se deterioraram nas Filipinas desde 2016, depois que Duterte iniciou uma guerra violenta contra as drogas que levou a execuções extrajudiciais sistemáticas. Em seus seis anos no cargo, Duterte incitou pública e rotineiramente a violência contra usuários de drogas e incentivou a impunidade policial. Em 2021, o Tribunal Penal Internacional autorizou uma investigação sobre possíveis crimes contra a humanidade cometidos no país entre 2016-2019 [19].

O governo de Rodrigo Duterte, assim, procurou utilizar-se dos cinco mecanismos de retrocesso identificados por Aziz e Huq para atingir os três predicados básicos da democracia. Os inimigos do governo de Duterte são os mesmos eleitos por Bolsonaro: comissões, agências e outros órgãos governamentais de controle, a justiça eleitoral, a Suprema Corte, e a imprensa. As técnicas utilizadas por Duterte também são notavelmente parecidas: esvaziamento legal e ou orçamentário dos órgãos de controle, ameaças de impeachment contra ministros da Suprema Corte, ataques à imprensa tradicional, e disseminação de fake news.

Assim como aconteceu com Duterte, Bolsonaro não conseguiu alterar a Constituição no ponto que lhe era fundamental — no caso, para retomar o voto impresso. Mas, tal e qual aconteceu nas Filipinas, seu governo promoveu um desmonte infraconstitucional e difuso dos instrumentos democráticos, que só não foi maior e mais extenso em razão da resistência oferecida pelas instituições brasileiras, e especialmente o Supremo Tribunal Federal.

De fato, a comparação com o caso das Filipinas demonstra que uma diferença crucial para o nível de retrocesso enfrentado pelos dois países sob a égide de governos populistas autoritários é justamente a presença de uma Suprema Corte independente e capaz de oferecer resistência e proteger a democracia. Essa conclusão, em termos das teorias tradicionais acerca do papel das Cortes, chega a ser óbvia. Mas analisar o que impediu a Suprema Corte Filipina de resistir a Duterte é fundamental para compreender os riscos e os desafios dessa proteção judicial.

A Constituição de 1987 das Filipinas, reconhecendo o difícil histórico do país com o hiper presidencialismo [20], entregou à Suprema Corte a responsabilidade central de rever os atos presidenciais. A Constituição contém a "cláusula de revisão judicial ampliada" — possivelmente uma das "concessões mais amplas de autoridade de revisão judicial" no mundo [21]. Isso tornou a revisão de um ato de "qualquer ramo ou instrumento do Governo" marcado por "grave abuso de poder" uma questão de dever legal.

Assim, em vez de isolar os tribunais do confronto direto com os poderes políticos, a tarefa foi expressamente atribuída à Suprema Corte. Esse poder de revisão expandido deu ao Tribunal um grande potencial para "judicializar uma ampla variedade de processos políticos que, de outra forma, seriam de responsabilidade do executivo e do legislativo" [22]. Ao longo das décadas, corte expandiu constantemente sua jurisdição para incluir os domínios tradicionais dos ramos políticos, como a discricionariedade por trás de nomeações presidenciais e impeachment.

No entanto, a sombra constante da revisão judicial teve a consequência não intencional da irresponsabilidade legislativa e executiva, levando a uma proteção dos direitos individuais mais fraca. A resultante "democracia pelo judiciário" incentivou os atores políticos filipinos a cooptar membros da Suprema Corte, expondo cada vez mais sua natureza política à população [23]. Dante Gatmaytan lamenta que, junto com Duterte, a atual Suprema Corte esteja liderando o ataque à democracia liberal ao decidir consistentemente a favor do presidente, desafiando precedentes de longa data e o próprio texto constitucional. Em seis anos, Duterte acabou nomeando 12 dos 15 ministros em exercício.

4. A captura da Suprema Corte das Filipinas não é propriamente uma surpresa na lógica da literatura sobre o retrocesso constitucional, em que o temor de que a resistência das cortes aos ataques à democracia termine em empacotamento é constante [24][25]. Mas ela ilumina a natureza paradoxal do papel das cortes enquanto protetoras da democracia: por um lado, a politização excessiva das Cortes é frequentemente vista como uma forma de torna-las alvo de captura política. Por outro lado, a história política recente das Filipinas, em contraste com a experiência brasileira, é uma lembrança constante do que pode ser o destino de uma democracia atacada sem a proteção última dos guardiões da Constituição.

 


[1] Sobre a história constitucional das Filipinas, ver TIOJANCO, Bryan Dennis Gabito, The Philippine People Power Constitution: Social Cohesion through Integrated Diversity, in: Pluralist Constitutions in Southeast Asia, [s.l.]: Hart Publishing, 2019.

[2] Toda a análise da situação constitucional das Filipinas durante o governo de Rodrigo Duterte foi feita com a contribuição inestimável de Sandra Magalang, minha coautora em ROBALINHO, Ana Beatriz; MAGALANG, Sandra M. T. A Roadmap to Democratic Backsliding: Lessons From the Global South (no prelo).

[3] LEVITSKY, Steven; WAY, Lucan, The New Competitive Authoritarianism, Journal of Democracy, v. 31, nº 1, p. 51–65, 2020.

[4] LINZ, Juan J. (Juan José); STEPAN, Alfred C, Toward Consolidated Democracies, Journal of Democracy, v. 7, nº 2, p. 14–33, 1996, p. 15.

[5] HUQ, Aziz, Democratic Erosion and the Courts: Comparative Perspectives, NYU Law Review Online, v. 93, p. 21, 2018.

[6] LANDAU, David, Abusive Constitutionalism, U.C. Davis Law Review, v. 47, nº 1, p. 189–260, 2013.

[7] VAROL, Ozan O., Stealth Authoritarianism, Iowa Law Review, v. 100, p. 1673, 2015.

[8] CURATO, Nicole; FOSSATI, Diego, Authoritarian Innovations: Crafting support for a less democratic Southeast Asia, Democratization, v. 27, nº 6, p. 1006–1020, 2020.

[9] SADURSKI, Wojciech, Poland's Constitutional Breakdown, Oxford: Oxford University Press, 2019.

[10] BALKIN, Jack M, Constitutional Crisis and Constitutional Rot, Maryland Law Review, v. 77, p. 15.

[11] HUQ, Aziz Z.; GINSBURG, Tom, How to Lose a Constitutional Democracy, U.C.L.A. Law Review, v. 65, p. 78, 2018.

[12] Ibid.

[13] THOMPSON, Mark R., Pushback after backsliding? Unconstrained executive aggrandizement in the Philippines versus contested military-monarchical rule in Thailand, Democratization, v. 28, nº 1, p. 124–141, 2021.

[14] House gives CHR ₱1,000 budget for 2018, cnn, disponível em: https://www.cnnphilippines.com/news/2017/09/12/Commission-on-Human-Rights-CHR-House-budget.html. acesso em: 22 jul. 2022.

[15] VILLAMOR, Felipe, Philippines' Top Judge Took On Duterte. Now, She's Out., The New York Times, 2018.

[16] Philippines: Freedom in the World 2020 Country Report, Freedom House, disponível em: https://freedomhouse.org/country/philippines/freedom-world/2020. acesso em: 22 jul. 2022.

[17] GUTIERREZ, Jason, Leading Philippine Broadcaster, Target of Duterte’s Ire, Forced Off the Air, The New York Times, 2020.

[18] ROSE-ACKERMAN, Susan; DESIERTO, Diane; VOLOSIN, Natalia, Hyper-Presidentialism: Separation of Powers without Checks and Balances in Argentina and the Philippines, Faculty Scholarship Series, 2011.

[19] Philippines Archives, Amnesty International, disponível em: https://www.amnesty.org/en/location/asia-and-the-pacific/south-east-asia-and-the-pacific/philippines/report-philippines/. acesso em: 22 jul. 2022.

[20] ROSE-ACKERMAN; DESIERTO; VOLOSIN, Hyper-Presidentialism.

[21] JACKSON, Donald W.; TATE, C. Neal, Comparative Judicial Review and Public Policy, [s.l.]: Praeger, 1992.

[22] TATE, C. Neal, The Judicialization of Politics in the Philippines and Southeast Asia, International Political Science Review / Revue internationale de science politique, v. 15, nº 2, p. 187–197, 1994.

[23] GATMAYTAN, Dante, Constitutional Deconsecration: Enforcing an Imposed Constitution in Duterte's Philippines, v. 62, 2018.

[24] GARDBAUM, Stephen, Are Strong Constitutional Courts Always a Good Thing for New Democracies?, Colum. J. Transnat’l L., v. 53, p. 285, 2014.

[25] GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz Z., How to Save a Constitutional Democracy, First edition. [s.l.]: University of Chicago Press, 2018.

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