Direito do Agronegócio

AVJ, ativo biológico e mudança de regime tributário

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

22 de julho de 2022, 8h03

Embora não seja um tema exclusivamente voltado para a tributação no agronegócio, tem sido recorrente o questionamento a respeito da necessidade de tributação por pessoa jurídica no lucro presumido dos valores apontados nas subcontas a título de avaliação a valor justo (AVJ) de ativos biológicos (por exemplo, um ativo florestal), quando há a migração para o regime do lucro real.

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Isto porque, quando estamos diante de ativo biológico como cultivo de eucalipto e/ou pinus ou mesmo da soja, existe um ciclo de formação entre o plantio até a colheita de aproximadamente sete anos para o primeiro e de até 145 dias para esta última.

Em cumprimento de normas contábeis, tem-se a AVJ para o ativo florestal e para a plantação de soja, entre outros, com ganho ou perda para fins contábeis (CPC — 29 "Ativos Biológicos e Produtos Agrícolas"), quando optante pelo regime de tributação do IRPJ e CSLL, no lucro real, reconhecendo, por conseguinte, um passivo fiscal diferido.

É plenamente possível que o contribuinte, antes optante do lucro real, realize a mudança para a lucro presumido em determinado momento.

Ao se avaliar a legislação regente, mais especificamente, quanto à alteração do lucro real para o presumido para fins de IRPJ/CSLL, notamos que o artigo 6º, da Lei nº 12.973/2014, em alteração à redação do artigo 54, da Lei nº 9.430/96, preceitua que:

"Art. 54. A pessoa jurídica que, até o ano-calendário anterior, houver sido tributada com base no lucro real deverá adicionar à base de cálculo do imposto de renda, correspondente ao primeiro período de apuração no qual houver optado pela tributação com base no lucro presumido ou for tributada com base no lucro arbitrado, os saldos dos valores cuja tributação havia diferido, independentemente da necessidade de controle no livro de que trata o inciso I do caput do art. 8o do Decreto-Lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977." (NR)

Da mesma forma, o art. 219, da INSTRUÇÃO NORMATIVA nº 1.700/2014:

"CAPÍTULO V

DA MUDANÇA DE LUCRO REAL PARA LUCRO PRESUMIDO

Art. 219. A pessoa jurídica que, até o ano-calendário anterior, houver sido tributada com base no lucro real deverá adicionar às bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, correspondentes ao 1º (primeiro) período de apuração no qual houver optado pela tributação com base no lucro presumido, os saldos dos valores cuja tributação havia diferido, independentemente da necessidade de controle na parte B do e-Lalur e do e-Lacs.

Parágrafo único. O disposto no caput aplica-se inclusive aos valores controlados por meio de subcontas referentes:

I – às diferenças na adoção inicial dos arts. 1º, 2º e 4º a 71 da Lei nº 12.973, de 2014, de que tratam os arts. 294 a 296; e
II – à avaliação de ativos ou passivos com base no valor justo de que tratam os arts. 97 a 101".

Daí se nota que a legislação quando cuida de disciplinar o IRPJ/CSLL e os reflexos quanto à AVJ , notadamente, na migração do lucro real para presumido, determina, indevidamente, a adição de eventual "ganho" (saldo) na apuração deste último no primeiro trimestre.

Numa análise estrita e isolada da Lei nº 12.973/2014, ignorando a completude, harmonia e hierarquia do sistema jurídico tributário, poder-se-ia afirmar que o saldo da avaliação a valor justo do contribuinte seria tributado em virtude da migração realizada de real para presumido, quanto aos seus ativos biológicos.

Apesar desta interpretação e primeira conclusão no sentido de se tributar referido ganho decorrente de avaliação a valor justo quanto ao IRPJ/CSLL, por força da mudança de real para presumido, acreditamos que esta não seria a interpretação mais adequada.

A primeira razão para este posicionamento advém da necessidade de se interpretar toda a legislação fiscal com fundamento no texto constitucional (supremacia formal e material).

O artigo 153, III, da Constituição Federal, juntamente com os princípios da capacidade contributiva, legalidade e vedação do confisco, acabam por delimitar um conceito jurídico e densidade normativa mínima que há de ser adotado pelo legislador e intérprete.

Juntamente com o texto constitucional, ainda temos o disposto no artigo 43, do Código Tributário Nacional, que claramente reconhece renda como acréscimo patrimonial efetivo, com disponibilidade jurídica/econômica. Aliás, dispositivo de patamar e natureza de lei complementar (artigo 146, da Constituição), de tal sorte que leis ordinárias deverão se submeter ao referido dispositivo.

Dentro desta perspectiva, há de se reconhecer como renda para fins fiscais aquele acréscimo patrimonial definitivo e efetivo.

Equivale dizer: uma renda realizada e não ficta ou potencial, isto é, aquela concretizada e não simplesmente esperada ou estimada, característica da AVJ (renda potencial).

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), não é por outra razão que, à luz da noção de renda do artigo 43 do Código Tributário Nacional, ao cuida da AVJ decidiu:

"NEUTRALIDADE FISCAL. LEI 12.973/2014. AVALIAÇÃO DE VALOR JUSTO. CONCEITO DE RENDA. A ausência de criação de subconta não pode implicar automaticamente no acréscimo da base de cálculo de IRPJ sob o risco de afronta ao conceito de renda previsto no art.43 do CTN" [1].

Não se pretende sustentar que a renda somente seria tributável quando há recebimento em dinheiro, mas impossível se torna exigir tributo tão somente pelo fato de um potencial projeção ou quantificação de quanto seria o preço estimado (valor justo) a ser obtido em uma transação de mercado ou sem qualquer favorecimento às partes.

É exatamente a situação posta quanto à imposição de imediata e automática tributação definitiva de IRPJ e CSLL, pelo fato de se alterar a forma de apuração de tais tributos de real para presumido, sobre um "ganho" projetado a partir da AVJ.

Ora, esta alteração em nossa visão não seria suficiente, do ponto de vista jurídico-tributário, para o legislador impor a tributação de IRPJ e CSLL.

É preciso que ocorra algum evento futuro que impute uma realização da renda, como a alienação.

Isto se torna de maior relevo quando se está a tratar de ativos biológicos, que, como regra, não seriam o efetivo objeto de renda e receita da entidade (empresa), a partir do exercício de sua atividade econômica. Mas, sim, o seu produto ou aqueles resultantes de processamento após colheita.

Equivale dizer: dentro da postura adotada pelo legislador, ao pretender tributar a AVJ, pela migração de real para presumido, dos ativos biológicos, não somente estaria impondo a incidência sobre fato presumido ("renda fictícia"), além de desviar a própria finalidade da atividade exercida pelos contribuintes, pois não está, ao menos no momento, a alienar o ativo, e, no futuro, pelo seu objeto social o que será comercializado não será a plantação, mas o produto desta ou seus desdobramentos.

Entendemos que somente há de se considerar a realização da renda, que tem como elementos a mensurabilidade, liquidez e a certeza.

É preciso, assim, o ingresso no patrimônio do contribuinte de riqueza nova. De tal sorte que se tem a necessidade de que determinada mutação tenha aptidão para gerar a aquisição de elementos de riqueza nova com alto grau de certeza e definitividade, sobretudo, pela necessidade de se respeitar a própria noção de renda levando em consideração a capacidade contributiva protegida pelo texto constitucional, que é um direito fundamental do contribuinte.

A tributação, inclusive, dentro de um Estado Democrático de Direito, há de ser exercida dentro de limites jurídicos, especialmente, previstos na Constituição, o que exige razoabilidade, proporcionalidade, impedindo-se condutas legislativas desmedidas e excessivas que violem direitos do contribuinte, como a capacidade contributiva.

Ora, o valor justo do ativo florestal, por exemplo, do ponto de vista jurídico-tributário, é ainda uma mera flutuação incerta e não definitiva do valor daquele. Inexiste, inclusive, qualquer efetiva alteração patrimonial no sentido de aquisição ou alienação de direitos, da qual decorra riqueza nova. E o pior, ao se avaliar o objeto social dos contribuintes, é possível notar que a renda ou receita futura poderá vir não do ativo florestal, mas de seu produto, torna ainda mais incerta esta questão.

Por esta razão, a avaliação a valor justo isoladamente é um ganho de potencial (ou também perda), que somente irá se consumar caso se confirme algum evento futuro nesta direção de tal sorte que a exigência de IRPJ/CSLL pela simples alteração na apuração da base de cálculo de real para presumido viola a noção jurídica de renda (artigo 153, III, CF; artigo 43, CTN), sobretudo, à luz de princípios como a capacidade contributiva, legalidade e vedação ao confisco.

Não entendemos como um fato de mutação patrimonial definitiva e que geraria riqueza nova ao contribuinte a simples mudança de regime de apuração do mesmo tributo sem inclusive qualquer transferência de titularidade e resultado econômico.

Inexiste realização de renda, sobretudo, com vistas a respeitar a capacidade contributiva e própria vedação ao confisco, que impede, dentro dos limites ao poder de tributar, à União exigir tributo sobre patrimônio, eis que este não se confunde com renda.

É preciso um fato concreto definitivo e com certeza para que se permita a consumação, dentro de critérios jurídicos da renda, o que se dará alienação do ativo ou de seu produto, como ainda pela baixa deste (exaustão). No caso que exemplificamos, a única conduta realizada pelo contribuinte é a mudança de apuração de base de cálculo do real para presumido, sem impacto direto na disponibilidade jurídica e econômica de referido ativo, em especial, levando em consideração a necessidade de riqueza nova e capacidade contributiva.

A tributação exige segurança jurídica, o que, evidentemente, não haveria em tal hipótese.

O que se tem, portanto, é uma quase renda, algo fictício, potencial, mas que ainda não se consumou, mesmo com a mudança para o lucro presumido, de maneira que imputar uma automática tributação de IRPJ e CSLL seria exigir renda não realizada.

Ademais, cabe lembrar que, no lucro presumido, conforme artigo 25, § 3, da Lei nº 9.430/96, os ganhos "decorrentes de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo não integrarão a base de cálculo do imposto, no momento em que forem apurados".

De tal sorte que, a AVJ do ativo florestal e da plantação de soja, conforme exemplos dados, por ser ganho potencial e não configurar renda efetiva e realizada, à luz da segurança jurídica, capacidade contributiva e vedação ao confisco, não gera imediata tributação de IRPJ e CSLL, por força da simples migração do lucro real para o presumido, possuindo neutralidade fiscal, até que aquele ou seus produtos sejam realizados.

 


[1] – CARF, 1ª Seção, Ac. 1401-003.873 — 1ª Seção de Julgamento / 4ª Câmara / 1ª Turma Ordinária, j. 11/11/2019. No mesmo sentido: "Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica — IRPJ. Ano-calendário: 2010. NULIDAD. Rejeitam-se as preliminares de nulidade suscitadas contra o procedimento administrativo fiscal, quando o processo administrativo fiscal obedece às determinações legais e garante ao contribuinte o contraditório e a ampla defesa, e não foi provada nenhuma violação aos arts. 10 e 59 do Decreto nº 70.235, de 1972. NEUTRALIDADE FISCAL. LEI 12.973/2014. AVALIAÇÃO DE VALOR JUSTO. CONCEITO DE RENDA. A ausência de criação de subconta não pode implicar automaticamente no acréscimo da base de cálculo de IRPJ sob o risco de afronta ao conceito de renda previsto no art.43 do CTN". (CARF, 1ª Seção, Ac. 1402­003.589 — 4ª Câmara / 2ª Turma Ordinária, j. 21/11/2018.).

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet e sócio tributarista do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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