ConJur, 25 anos

Liberdade de expressão: o Direito garantido pela ConJur há 25 anos

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

22 de julho de 2022, 13h02

Há 25 anos o espaço virtual ganhava um novo componente. Por mais que a internet fosse cara, demorada e discada, abria-se um espaço plural para o exercício da liberdade de expressão no domínio do Direito. De lá para cá muitas controvérsias surgiram em face do ajuste digital, isto é, o modelo constitucional de livre circulação de ideias ou como os americanos gostam de dizer "mercado de ideias" convive com comentários, artigos e notícias em tempo real, ao mesmo tempo que insere novos questionamentos. É que atualmente precisamos conviver com o excesso de informações, em que o ritmo frenético é incompatível com a capacidade humana de adquirir, processar, analisar e construir o conhecimento adequado. A velocidade, alavanca do mundo moderno (Paul Virilio), gera uma verdadeira narcose dromológica, cujo ritmo alucinante, seda os sentidos se não for bem administrada.

Spacca
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Se você tem a sensação de que não consegue acompanhar as frenéticas alterações do domínio jurídico (legislação, doutrina, jurisprudência, aplicativos, sites etc.), paradoxalmente, você está atualizado. É que o modo em que fomos ensinados a aprender e processar informação foi invadido por novas tecnologias que alteraram abruptamente a maneira pela qual o Direito era ensinado e aplicado. O importante é se dar conta e buscar reduzir o espaço de desatualização e, assim, aumentar a competitividade. Para isso a ConJur é uma parceira cotidiana, a primeira leitura de todo jurista comprometido com a informação de qualidade.

A liberdade de expressão vincula-se à premissa democrática da manifestação de ideias, opiniões, pensamentos etc., sem a prévia censura estatal, isto é, todos nós somos livres para podermos colocar em circulação no espaço público de nossas ideias, opiniões, pensamentos etc. O exercício da Liberdade de Expressão traz consigo a responsabilidade do remetente pelo conteúdo da mensagem.

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A colocação de ideias, opiniões, sentimentos, pensamentos em circulação é um Direito Fundamental associado aos deveres de boa-fé objetiva, de integridade, de responsabilidade, de lealdade, de verdade do emissor do discurso quanto ao conteúdo, justamente porque não se pode confundir o Direito Fundamental do "ato de dizer" e o "conteúdo do dito". Embora o Estado não seja o dono da verdade, nem possa assumir democraticamente o monopólio da verdade, as condutas que extrapolam os limites da liberdade de expressão podem ser objeto de intervenção estatal por meio de restrições administrativas, civis e criminais, justamente para o fim de coibir condutas tendentes à manipulação do escopo da liberdade de expressão. Do contrário, os tipos penais de ameaça, racismo, antissemitismo, difamação, dentre outros, sempre estariam cobertos pela liberdade de expressão, o que é inválido. Em consequência, a liberdade de expressão aceita que o conteúdo da mensagem, no contexto, possa assumir um dos dois valores (a) coberto; ou, (b) descoberto. Aliás, por isso não há Direito Fundamental de Liberdade de Expressão no contexto de fake news, dada a responsabilidade prévia quanto ao conteúdo da mensagem, como se verifica na disseminação irresponsável, com malícia real, de teorias imaginárias e conspiratórias quanto à integridade das urnas eletrônicas (logo, descobertos pela liberdade de expressão).

Caio — enteado do Alexandre — descobriu que a Alexa (da Amazon) pode, além de abrir o YouTube ou tocar músicas no Amazon Music, ajudá-lo a fazer as atividades escolares. O que para nossa geração (nascida no início dos anos 1970) significava pesquisar em livros ou na Enciclopédia Barsa (ou na Larousse) e para geração mais recente procurar no Google, para Caio passou a ser uma conversa em linguagem natural. Há um encurtamento físico, temporal, de sentidos, de forma impressionante nesse novo processo cognitivo.

Nessa perspectiva, caminha a informação e também a liberdade de expressão, desafiando o (lento) direito a disciplinar limites e definir o convívio em tão complexa sociedade.

Considere a hipótese de alguém se deslocar até a casa do vizinho e lá desferir-lhe um soco, causando lesão corporal (CP, artigo 129). O fato de o agente ativo ter utilizado o Direito Fundamental de ir, vir ou ficar, previsto no artigo 5º, da Constituição, é independente da responsabilização penal. De acordo?

Perceba que a estrutura é a mesma. Tanto o direito de ir, vir ou ficar e o de liberdade de expressão não podem ser previamente limitados e/ou censurados pelo Estado, enquanto os comportamentos decorrentes do seu exercício podem. Então, é inválido o argumento de que no exercício da liberdade de expressão se pode dizer o que se quiser impunemente. São domínios independentes. Vamos ver no caso de ameaça (CP, artigo 147).

Denomina-se de "ameaça" a mensagem oral, escrita e/ou gestual, com o propósito de causar um ato de violência (física, moral etc.), enviada direta ou indiretamente (por interposta pessoa), transmitida por meio físico ou digital, à destinatário determinável (individual ou grupo) contendo a intenção séria e verdadeira de causar medo e/ou intimidação comportamental. O comportamento se exaure com o envio da mensagem, independentemente da realização do conteúdo da ameaça, dada a independência das condutas, isto é, a conduta criminalizada é a de "comunicar" o propósito (com fim específico). A realização pode significar outra conduta penal autônoma ou não no futuro. Por isso, o ato de comunicação é suficiente, desde que possa incutir o medo e/ou restringir a liberdade comportamental do destinatário.

A comunicação pode ser dar nas modalidades: (a) Verbal: (i) escrita; e, (ii) oral; (b) Não Verbal: (i) gestual; (ii) linguagem corporal; (iii) expressões faciais; (iv) símbolos (balança da Justiça, faixa verde do defensor, algemas etc.); e, (v) sinais (apito, placa de trânsito etc.).

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Em geral, o padrão da comunicação é composto e ordenado pelas entidades: (a) Emissor (codificador da mensagem; quem emite); (b) Receptor (decodificador da mensagem; quem recebe); (c) Mensagem e Sinal (forma e conteúdo da comunicação: escrito, oral, não verbal e a transmissão até o receptor); (d) Código (linguagem reconhecida pelo domínio do Processo Penal e afins, pelo qual a mensagem se configura e se torna inteligível); (e) Referente (entidades e/ou pontos do caso penal aos quais a Mensagem se refere); (f) Codificação (processo pelo qual o Emissor transformar o conteúdo pretendido em formato de Mensagem); (g) Decodificação (processo pelo qual o Receptor traduz o conteúdo da Mensagem); (h) Canal de Comunicação (procedimentos ou interações por onde a Mensagem/Sinal é transmitida; digital, analógico); (i) Ruído (é qualquer fator que dificulte, distorça ou impeça a transmissão da Mensagem entre o Emissor e o Receptor); e, (j) Feedback (resposta verbal e/ou não verbal do receptor à mensagem: positiva, neutra ou negativa).

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As entidades primárias do mecanismo comunicacional (sem prejuízo das críticas que possam ser atribuídas) são os componentes do espaço comunicativo. O padrão comunicacional depende, ainda, da qualidade da transmissão do conteúdo da mensagem, isto é, de que o sinal seja emitido, recebido e entendido sem ruídos que alterem e/ou impeçam o entendimento do propósito do emissor. Além do que, a linguagem é o lugar o equívoco, do ato falho, em que o ritmo, a ênfase, a entonação, os gestos, a linguagem corporal, dentre outros fatores, comparecem no ato da fala, especialmente verbal. Em consequência, o emissor precisa "codificar" a mensagem, transformando a sua "representação" em linguagem para o fim de embarcá-la na mensagem que, por sua vez, exige que o receptor possa decodificar o conteúdo o mais próximo do pretendido pelo emissor. Nem sempre dá certo. O conteúdo da representação (pensamentos, percepções, ideias, sentimentos etc., vinculadas ao referente de realidade) do emissor da mensagem precisa ser codificado em linguagem, por meio da mensagem, em que palavras serão selecionadas e articuladas em proposições transmitidas por meio de petições, argumentos orais, gestos, expressões ou símbolos no meio de transmissão constituído pelos procedimentos penais. Os processos se denominam de: (a) Codificação; e, (b) Decodificação.

Mas tudo acontecerá num Contexto da Comunicação. A representação do circuito da comunicação pressupõe um contexto em que o sentido será atribuído (codificado e decodificado). É no contexto que a mensagem será codificada e decodificada, motivo pelo qual ganha relevo o Dispositivo Argumentativo (adiante, ZZZ). O sentido acontece nas situações e contextos de "uso". Por isso se usa "fora" ou "dentro" do contexto, porque a mesma mensagem ganha valores distintos a depender do contexto em que acontece. P.ex. se você já disse que "iria matar alguém" pode ter sido no sentido figurado, diverso daquele em que você está praticando uma ameaça, nos termos do artigo 147 do Código Penal. Em consequência, diferenciar os planos (sintático, semântico e pragmático) é condição à operacionalização da interlocução nos procedimentos, uma vez que o sentido atribuído é contextual. Quantas vezes somente entendemos a mensagem depois ("não tinha entendido o contexto"), razão pela qual sem contexto a mensagem flutua até ser capturada pelo sentido atribuído, com os riscos associados de o destinatário atribuir sentido diverso e, talvez, catastrófico. P.ex. se você estiver lendo este artigo pensando noutra coisa, talvez precise retomar a leitura ou tenha a sensação de que não entendeu (a distração impede o entendimento). Também se estiver preocupado com outras questões, dores, cansaço ou o modo como os argumentos estão sendo apresentados podem significar ruídos. Se você argumenta fora do padrão e/ou do contexto (se o receptor não dominar as entidades, não há espaço para que a mensagem cumpra a função desejada). Por isso a importância da determinação se estamos dentro ou fora do contexto.

Eis que poderemos estar dentro ou fora dos Limites da Liberdade de Expressão. Na perspectiva padrão da comunicação (Emissor — Mensagem — Receptor) o Direito Fundamental à Liberdade de Expressão significa que o Estado não pode, a priori, cercear a livre manifestação do pensamento, premissa do Estado democrático de Direito. A topologia do Direito Fundamental convive com outros Direitos Fundamentais, dentre eles a honra, imagem, reputação, integridade física, mental, emocional etc. Em consequência, a declaração da "existência" do Direito à Liberdade de Expressão não se confunde com a "validade" (conformidade com as demais normas jurídicas), nem com a "eficácia" (obtenção das finalidades do emissor). Em consequência, o direito de se expressar livremente não é sinônimo, nem equivalente, à imunidade sobre o conteúdo ou os efeitos ocasionados, porque são planos distintos. Segue-se que o Estado pode criar restrições e proibições tendentes à garantir (a) a proteção de bens jurídicos (integridade física, emocional, psicológica, mental, honra, imagem, reputação etc.); (b) a punição dos agentes antes da prática da conduta objeto da ameaça; (c) o desestímulo da prática de condutas criminalizadas (ameaça, racismo, misoginia, sexismo, vinculadas à prevenção e repressão; e, (d) a perseverança de práticas comunicativas que possam coagir ou implicar em ações contrárias à autonomia privada.

No caso de ameaça penal (CP, artigo 147), o que deve ser verificado é se no contexto da comunicação a "mensagem" pode ser qualificada como verdadeira, contendo o ato de transmissão "ameaças" de fomento, incentivo à agressão, uso de força física e/ou violência contra os destinatários da mensagem (direta ou indiretamente).

Segue-se que a mensagem, isoladamente, é insuficiente à determinação do sentido empregado pelo emissor, exigindo a construção do contexto em que a mensagem foi transmitida e recebida, além de eventuais ruídos comunicacionais. Qualquer ato de comunicação, incluindo a ameaça, receberá o valor contextual de verdade. A mesma mensagem "vou te matar" dita em dois contextos distintos pode receber valores de verdade ou de falsidade. Se nós dissermos que "vamos te matar" na hipótese de não acabares de ler o artigo até o final, a ameaça será falsa. Já no contexto de violência doméstica, quando o ex-marido afirma que irá matar a mulher caso ela se relacione com outro parceiro, pode assumir o valor de verdade contextual. Perceba-se que o conteúdo da mensagem é o mesmo (vou te matar). O que altera o resultado é o contexto de atribuição.

A comunicação de uma ameaça gera a incerteza de sua efetivação e a experiência decorrente da expectativa (estresse, ansiedade, angústia, medo etc.), com provável influência no cotidiano (vigilância e proteção, restrição à liberdade, redução das atividades profissionais, alteração de rotinas etc.). Os efeitos podem ser biológicos, psicológicos e sociais, a depender do contexto. Enfim, a mensagem pode gerar limitações ilícitas à Liberdade do destinatário (e de seu núcleo próximo: familiares, amigos, empregados etc.). Em consequência, a criação de mecanismos contra o discurso ameaçador justifica-se democraticamente.

A liberdade de expressão também garante a crítica às Instituições e aos Governantes. As críticas direcionadas às Instituições Públicas (Polícia, Judiciário, Ministério Público, INSS, Executivo, Legislativo etc.) estão cobertas pela Liberdade de Expressão, Direito Fundamental à garantia da livre circulação de ideias, opiniões, sentimentos e/ou pensamentos que, ainda que grosseiros, deselegantes e/ou agressivos, não podem ser encampados por seus membros como pessoais, salvo no caso de mensagem direta e tangível ao agente (ad persona) e/ou maliciosas em relação aos direitos de personalidade, cuja apuração depende tanto do conteúdo da mensagem, quanto do contexto situacional[1]. O Direito Fundamental à Liberdade de Expressão cobre as manifestações sobre eventos e/ou comportamentos, incluindo os de agentes estatais, aceitando avaliações positivas, neutras ou negativas, desde que não violem direitos de personalidade, nem sejam movidas por malícia, conforme art. 5º, II, IV, VI e IX, da Constituição da República.

Mais do que nunca, em um contexto de hiperaceleração e infinidade de fontes de informação, canais sérios e confiáveis como a ConJur são a principal arma para reduzir os danos das manipulações (fake news), garantir a liberdade de expressão (com responsabilidade) e servir de importantíssimo instrumento de controle contra o abuso estatal e de seus agentes. A ConJur dá condições de possibilidade para que direitos fundamentais de cada um de nós se concretizem diariamente, sem que sequer percebamos.

Para finalizar, somos gratos ao espaço na ConJur, onde escrevemos na coluna Limite Penal desde 13.jun.2014. A construção de espaços de garantia da Liberdade de Expressão sempre foi o mote da revista eletrônica Consultor Jurídico.

Agradecemos ao time todo: Márcio Chaer, Maurício Cardoso, Raul Haidar, Emerson Voltare, Lilian Matsuura, Luiza Calegari, Mateus Silva Alves, Arthur Gandini, Carlos Senna, José Higídio, Rafa Santos, Tábata Viapiana, Thiago Crepaldi, Vinícius Abrantes, Eduardo Reina, Danilo Vital, João Ozório de Melo, Karen Couto, Rayane Fernandes, Sérgio Rodas, Severino Goes, Júlia Stoever, Camila Santos, Luciana Huber e Spacca (merecemos novas caricaturas!).

Por mais que esteja em outros paragens, um grande abraço ao parceiro Leonardo Lellis, que deu todo o suporte inicial.


[i] TJSC, 3ª Turma Recursal, Recurso Cível 5004979-19.2020.8.24.0019, Juiz Alexandre Morais da Rosa (j. 08.06.2022):

“REDE SOCIAL. COMENTÁRIO EM POSTAGEM DE TERCEIRO SOBRE PRISÃO AFIRMADA COMO ILEGAL, NA QUAL CONSTA O VÍDEO DA CONTENÇÃO DE CONDUZIDO ESTRANHO AOS AUTOS. COMENTÁRIO DEPRECIATIVO E GROSSEIRO DO RÉU QUANTO À CORPORAÇÃO POLÍCIA MILITAR RELATIVA AO MODUS OPERANDI. AUSÊNCIA DE REFERÊNCIA AO NOME DOS AUTORES NA POSTAGEM E/OU NO COMENTÁRIO. INEXISTÊNCIA DE DOLO E/OU DE IMPRUDÊNCIA DO COMENTARISTA. A CRÍTICA ÀS INSTITUIÇÕES ENCONTRA-SE NO ESPAÇO COBERTO PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO (CR, ART. 5º, II, IV, VI E IX). EMISSOR QUE SE DIRIGE AO EVENTO E NÃO AOS AUTORES. AUSÊNCIA DE MENSAGEM AD PERSONAN E/OU DE MALÍCIA QUANTO AOS DIREITOS DE PERSONALIDADE. É INVÁLIDO TOMAR COMO PESSOAIS AS CRÍTICAS DIRECIONADAS ÀS INSTITUIÇÕES. PREVALÊNCIA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E À LIVRE CIRCULAÇÃO DE OPINIÕES, IDÉIAS E/OU SENTIMENTOS. ESPAÇO PÚBLICO PRESERVADO NO CASO CONCRETO. IMPROCEDÊNCIA. RECURSO PROVIDO”

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