Opinião

Inversão do ônus da prova em favor do Ministério Público

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

21 de julho de 2022, 11h42

Preceitua o Código de Defesa do Consumidor que, quando houver verossimilhança na alegação ou quando o consumidor for hipossuficiente, o ônus da prova deverá ser invertido (artigo 6º, VIII), cabendo única e exclusivamente ao fornecedor comprovar a plausibilidade de seus argumentos e as inconsistências dos argumentos do consumidor. Todavia, há que se dizer que a inversão do ônus da prova não é automática. Deverá o juiz da causa justificar se estão presentes os pressupostos da mencionada norma, para, então, deferir a inversão do ônus probante. Nesse caso, temos a chamada "inversão do ônus da prova ope iudici" (por ato do juiz), que se contrapõe ao modo de "inversão do ônus da prova ope legis" (por força de lei).

O CDC adotou, via de regra, a "Teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova", haja vista que poderá o juiz redistribuir a inversão se verificada a verossimilhança nas alegações ou a hipossuficiência do consumidor, excepcionando-se a regra contida nos artigos 12, §3º; 14, §3º e 38.

Em contrapartida, o Código de Processo Civil adotou, como regra, a "Teoria da distribuição estática do ônus da prova", ou seja, no momento de sua edição, a própria lei, de forma prévia e abstrata, já determinou a quem incumbe o encargo probatório [1]. Todavia, diz o §1º do artigo 373 que nos "casos previstos em lei e diante das peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz distribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído". Diante disso, alguns autores defendem que no Código de Processo Civil "criou-se um sistema misto: existe abstratamente prevista em lei uma forma de distribuição, que poderá ser no caso concreto modificada pelo juiz" [2].

Por tratar-se de regra de instrução, deverá a decisão que determina a inversão do ônus probatório ser proferida, preferencialmente, no despacho saneador, assegurando à parte a quem inicialmente não incumbia o encargo a possibilidade de se manifestar nos autos. Inclusive, esse é o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, tendo em vista que a decisão que inverte o ônus da prova com base no CDC, artigo 6º, VIII, deverá ocorrer antes da fase instrutória, ou quando proferida em momento posterior, garantir à parte a quem foi imposto o ônus a oportunidade de apresentar provas em sentido contrário [3].

No microssistema processual coletivo, poderá o Ministério Público valer-se da inversão do ônus da prova do CDC, artigo 6º, VIII. A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que nas ações consumeristas, por atuar o Ministério Público como substituto processual dos consumidores, não há que se indagar de sua hipossuficiência para a inversão, uma vez que o instituto processual se refere ao consumidor, sujeito material da relação de consumo, e não ao seu substituto.

"No que respeita ao ônus da prova possível no caso, eis que se aplicam as disposições do Código de Defesa do Consumidor nestas questões de telefonia, devendo ser observada a hipossuficiência do consumidor, que se refere ao sujeito da relação material de consumo  consumidor  e não à parte processual  Ministério Público". [4]

Observa, ainda, a ministra Nancy Andrighi que em função do entendimento da Corte estar consolidado no sentido de que é possível, em ação civil pública, a inversão do ônus da prova em favor do Ministério Público quando a ação versar sobre direito do consumidor (REsp 1.554.153-RS, 3ª Turma, Dje de 01/08/2017; REsp 736.308-RS, 4ª Turma, Dje de 02/02/2010 e AgRg no REsp 1.241.076-RS, 3ª Turma, Dje de 09/10/2012), é aplicável a Súmula 568, autorizando o relator, monocraticamente ou no Superior Tribunal de Justiça, a dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema.

Márcio André Lopes Cavalcante nos mostra que tal entendimento também é utilizado em ações ambientais, uma vez que aquele que cria ou assume o risco de danos ambientais tem o dever de repará-los e, em tal contexto, transfere-se a ele todo o encargo de provar que sua conduta não foi lesiva. Cabível, portanto, a inversão do ônus da prova que, em verdade, se dá em prol da sociedade, que detém o direito de ver reparada ou compensada a eventual prática lesiva ao meio ambiente (CDC, artigo 6º, VIII c.c artigo 18 da Lei nº 7.347/85) [5].

A exegese do artigo 6º, VIII, CDC e o Princípio Ambiental da Precaução demonstram que não é correto, em ações que versam sobre direitos difusos e coletivos, a interpretação que reduz a hipossuficiência apenas aos debilitados financeiramente. Nas ações supraindividuais, entende-se como hipossuficiente o cidadão com baixo poder aquisitivo (carência material), como aquele que de acordo com as regras ordinárias de experiência e em função da especificidade do caso em concreto, não pode valer-se de seu direito (carência processual). Em havendo substituição processual, a questão da hipossuficiência deve ser analisada sob o prisma dos substituídos, titulares do bem jurídico protegido, para fundamentar a inversão probante.

Eis o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

"1. Trata-se, originalmente, de Ação Civil Pública ambiental. Em saneamento, o juízo de primeiro grau, entre outras providencias, determinou a inversão do ônus da prova, decisão reformada pelo Tribunal de origem. 2. Para o acórdão recorrido, não é possível a inversão do ônus da prova nas ações ambientais e, se o for, exige-se a comprovação de hipossuficiência do autor, o que, de pronto, a afasta nas demandas em que for demandante o Ministério Público. Esse entendimento opõe-se ao esposado pelo Superior Tribunal de Justiça, seja no particular âmbito das Ações Civis Públicas ambientais, seja, mais amplamente, na perspectiva da aplicação da teoria do ônus dinâmico da prova. POSSIBILIDADE DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA EM QUALQUER MODALIDADE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA (…) 7. Na relação jurídica em que há substituição processual, a hipossuficiência deve ser analisada na perspectiva do substituto processual ou dos sujeitos-titulares do bem jurídico primário, qualquer uma das duas hipóteses bastando para legitimar a inversão do ônus da prova" [6].

Todavia, em que pese o reiterado entendimento de que a inversão do ônus da prova é possível mesmo quando o titular (hipossuficiente) for processualmente substituído, em recente e atípica decisão, o STJ se utilizou da falta de caracterização da hipossuficiência para não reconhecer a legitimidade do Ministério Público na inversão. Decidiu a Corte acerca da: "inviabilidade de inversão do ônus probatório em sede de apelação, notadamente quando fundado em premissa equivocada atinente a suposta hipossuficiência da parte autoria, visto que o órgão do Ministério Público não é de ser considerado opositor enfraquecido ou impossibilitado de promover, ainda que minimamente, o ônus de comprovar os fatos constitutivos de seu direito" [7].

Dessa forma, abre a Corte o precedente de indeferimento da inversão quando o hipossuficiente for substituído por quaisquer dos legitimados ativos para interposição de Ação Civil Pública. No que tange especificamente ao Ministério Público, nos parece que a decisão confronta o objetivo trazido pela Constituição Federal, tendo em vista que o artigo 127 determina que: "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". A inversão do ônus da prova, nesses casos, não deve ser fundada na fraqueza da parte, mas na relevância do bem jurídico em nome de quem se representa, notadamente o patrimônio público e social, o meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos (CF, artigo 129, III).


[1] Artigo 373, CPC. O ônus da prova incumbe: I – ao autor quanto ao fato constitutivo de seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor)

[2] NEVES, Daniel Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador, Ed. JusPodivm, 2016, p. 657.

[3] STJ, 4ª Turma, REsp 1.286.273-SP, relator ministro Marco Buzzi, j. 08/06/2021 (Info 201).

[4] STJ, 3ª Turma, AgInt no AREsp 1.740.942-RS, relator ministro Nancy Andrighi, j. 08/03/2021.

[5] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e STJ Comentados. São Paulo. Ed. JusPodivm, 2022, p. 592.

[6] STJ, 2ª Turma. REsp 1235467-RS, relator ministro Herman Benjamin, j. 20/08/2013.

[7] STJ, 4ª Turma, REsp 1.286.273-SP, relator ministro Marco Buzzi, j. 08/06/2021 (Info 201).

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