Opinião

Reparação de danos concorrenciais e a política pública de acordos com o Cade

Autores

  • Leonardo Rocha e Silva

    é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados Master of Laws (LL.M.) pela University of Warwick bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).

  • Amanda Athayde

    é professora doutora adjunta de Direito Empresarial de Concorrência Comércio Internacional e Compliance na Universidade de Brasília (UnB) consultora no Pinheiro Neto Advogados nas práticas de Concorrencial Compliance e Comércio Internacional doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) ex-subsecretária de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia ex-chefe de Gabinete do Ofício do MPF junto ao Cade e do Gabinete da Superintendência-Geral do Cade coordenadora do Programa de Leniência Antitruste ex-analista de Comércio Exterior do Ministério de Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC) cofundadora da rede Women in Antitrust (WIA) e idealizadora e entrevistadora do podcast Direito Empresarial Café com Leite.

  • Jackson Ferreira

    é advogado sênior do escritório Pinheiro Neto Advogados e Master of Laws (LL.M.) pela Universidade de Chicago.

19 de julho de 2022, 9h03

A persecução pública a condutas anticompetitivas tornou-se prioritária em diversas jurisdições em todo o mundo, sendo notório, nas últimas décadas, o amadurecimento dos programas de leniência e de compromissos, bem como das cooperações interinstitucionais nacionais e internacionais com as autoridades para fomentar a identificação e condenação de cartéis.

Por outro lado, a reparação de danos concorrenciais na esfera privada ainda é desafiadora em grande parte das jurisdições, incluindo o Brasil. Mesmo após a inclusão de disposições expressas na antiga Lei 8.884/94 (artigo 29) e na atual Lei 12.529/11 (artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência), assegurando o direto dos prejudicados de serem indenizados pelas práticas anticompetitivas, a reparação privada ainda não "decolou".

Entre as diversas razões para isso destaca-se justamente o desafio de compatibilizar o interesse público em incentivar acordos de leniência, colaborações e cooperações (pelo que é preciso conferir incentivos e proteções aos delatores das infrações), e o interesse privado no devido ressarcimento, inclusive contra os delatores, pelos danos decorrentes da prática dessas mesmas infrações.

A verdade é que esses interesses não precisam andar em descompasso, e é justamente nesse contexto que se insere o Projeto de Lei 11.275/2018 (PL 11.275/2018), que busca promover alterações à Lei de Defesa da Concorrência.

Aprovado em 12/7/2022 pela a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, o PL 11.275/2018 [1], que tramita naquela casa legislativa desde 2018, pode seguir em breve à sanção presidencial, a não ser que haja recurso para a análise, antes, pelo Plenário da Câmara dos Deputados [2].

De fato, o PL 11.275/2018 tem como principal objetivo balancear duas posições por vezes antagônicas. Por um lado, há a posição de proteção ao Programa de Leniência e de TCCs (Termo de Compromisso de Cessação) do Cade, que consiste em um dos instrumentos mais exitosos, no Brasil e no mundo, para a detecção de cartéis (public enforcement). Por outro lado, há a posição de incentivo às ações de reparação por danos concorrenciais, ajuizadas pelos clientes prejudicados pelo suposto sobrepreço decorrente da prática anticompetitiva (private enforcement).

Diante disso, para que haja um reforço às ações de reparação no Brasil, há que se prever, igualmente, uma maior garantia aos signatários dos acordos de leniência ou TCC com o Cade. Caso contrário, os próprios programas de acordos estariam fadados ao insucesso, gerando repercussões ainda mais negativas para a sociedade, tendo em vista a potencial redução drástica de novas investigações de condutas anticompetitivas no país.

O PL 11.275/2018 traz novas bases para as ações de reparação por danos concorrenciais no Brasil. Dentre as alterações trazidas, serão destacadas, neste breve artigo, algumas reflexões sob quatro principais enfoques: (1) prescrição, (2) reparação em dobro, (3) proteção aos signatários dos acordos, e (4) outras questões processuais.

1. Prescrição no PL 11.275/2018
O PL 11.275/2018 define o prazo de cinco anos para que os compradores de produtos e serviços de empresas que tenham cometido "infrações à ordem econômica" ingressem com ações judiciais de reparação de danos.

O texto também esclarece que a contagem desse prazo para o ingresso das ações ocorre a partir da ciência inequívoca do ilícito, que se dá com a publicação da decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) (novo artigo 46-A).

Nos termos da Lei de Defesa da Concorrência, as condutas anticompetitivas ou "infrações à ordem econômica" são "os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; e IV – exercer de forma abusiva posição dominante" [3].

Se incorporada ao texto de lei, essa alteração deverá resolver a incerteza acerca do início da contagem do prazo prescricional da pretensão indenizatória, percebida em diversos precedentes judiciais no tema.

A divergência jurisprudencial gira, principalmente, em torno de três teorias, segundo as quais a contagem do prazo prescricional deveria ocorrer a partir:

(a) do fato considerado infração à ordem econômica, independentemente do conhecimento do titular da pretensão [4];

(b) do conhecimento do fato constitutivo da infração à ordem econômica por parte do titular da pretensão [5];

(c) da decisão condenatória do Cade reconhecendo a ocorrência da infração à ordem econômica (linha adotada pelo PL 11.275/2018) [6]

Além disso, ao estabelecer o prazo de cinco anos, o PL 11.275/2018 resolverá a divergência verificada em julgados segundo os quais prazo aplicável seria o de três anos previsto no Código Civil [7], sem contar certos precedentes que reconheceram ainda outros prazos [8].

Por fim, na medida em que o PL 11.275/2018 estabelece claramente que a contagem da prescrição será iniciada a partir da publicação da decisão do Cade, tendem a ser resolvidas também as dúvidas atuais em torno da sentença definitiva como causa impeditiva da prescrição "quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal" (artigo 200 do Código Civil).

2. Reparação em dobro no PL 11.275/2018
O novo texto deixa claro que o juiz determinará o pagamento de dano em dobro por parte das empresas que sejam condenadas por cartel, ou seja, por acordos com concorrente, relacionados (a) a preços de bens ou serviços, (b) à produção ou à comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou à prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços; (c) à divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos; (d) a preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública. O pagamento do dobro do valor do dano também será imposto àquele que promover, obtiver ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes (novo §1º ao artigo 47).

Apesar de a previsão da reparação em dobro encontrar inegável referência nos treble damages do sistema norte-americano (no qual os infratores devem pagar o triplo dos prejuízos das vítimas do cartel) [9], é também verdade que a reparação dobrada já é conhecida no Brasil, sendo prevista no Código de Defesa do Consumidor, no caso de cobranças indevidas [10].

Dessa forma, espera-se com o PL 11.275/2018 que o pagamento do dano em dobro na seara antitruste no Brasil funcione, na prática, como um eficaz mecanismo de deterrence contra cartéis e, ao mesmo tempo, um incentivo ao private enforcement, com o consequente fortalecimento do ambiente concorrencial no país.

3. Proteção aos signatários de acordos com o Cade no PL 11.275/2018
O texto aprovado pela CCJC traz uma proteção aos signatários de acordo de leniência ou TCC, que são firmados com o Cade mediante a confissão da ocorrência do ilícito. O texto assegura que os signatários de tais acordos não terão que pagar, em juízo, danos em dobro aos prejudicados pelas condutas anticompetitivas que foram confessadas perante o Cade (novo §2º ao artigo 47).

Além disso, o texto também oferece outra proteção aos signatários de acordo de leniência ou TCC, ao assegurar que eles não serão solidariamente responsáveis com os demais envolvidos na infração à ordem econômica pelo pagamento dos danos causados (novo §3º ao artigo 47).

Tais proteções são importantes para manter incentivos aos interessados em negociar e firmar acordos de leniência ou TCC com o Cade, já que tais acordos são fundamentais para as investigações conduzidas pela autoridade, principalmente contra empresas e indivíduos suspeitos de praticar condutas concertadas entre concorrentes.

Nesse sentido, elas visam a garantir que os incentivos às ações reparatórias não retirem dos programas de leniência e TCC os níveis mínimos de segurança jurídica e previsibilidade sem os quais eles seriam totalmente ineficazes como política pública. Ao garantir que os infratores que optam por reportar seus ilícitos e colaborar com as investigações do Cade devem se expor à reparação civil apenas na medida dos danos que causaram (sem o pagamento dobrado e sem a solidariedade obrigacional), o legislador evita colocar o leniente ou beneficiário do TCC numa posição pior do que a dos demais infratores (que não colaboram com a autoridade) [11].

Essa mesma lógica de preservação dos incentivos aos lenientes e compromissários de TCCs permeou a edição da Resolução Cade nº 21/2018, regulando o acesso a provas e disciplinando procedimentos "relativos à articulação entre persecução pública e privada às infrações contra a ordem econômica", quando, no mesmo ano, o Superior Tribunal de Justiça decidira que o sigilo aos documentos da leniência não era absoluto [12]. E é justamente esse esforço de compatibilizar os interesses do public e do private enforcement que se verifica no PL 11.275/2018, ao ele separar o joio do trigo e garantir um regime de reparação menos gravoso aos que colaboram com a autoridade.

4. Novas questões processuais no PL 11.275/2018
O texto do PL 11.275/2018 ainda estabelece que:

1. O juiz não pode presumir que a autora da ação, por exemplo uma empresa prejudicada pela conduta anticompetitiva, repassou ao preço dos seus próprios produtos e serviços o sobrepreço pago aos infratores, réus na ação (novo §4º ao artigo 47), sendo necessário provar o repasse que venha a ser alegado.

Essa discussão sobre o repasse ao preço do sobrepreço decorrente do cartel encontra fundamento na chamada "passing on defense". Essa defesa do réu/infrator é baseada no argumento de que as vítimas do aumento de preços causado pela violação, na verdade, não teriam sofrido nenhum dano, visto que teriam repassado o ônus resultante do aumento de preços para seus clientes/consumidores (cabendo a estes, que efetivamente cobraram o sobrepreço, serem parte da ação) [13].

Com a inclusão da ausência de presunção de repasse do sobrepreço e do ônus sobre o réu de provar que o autor da ação não repassou o sobrepreço aos seus clientes, parece haver um enfraquecimento dessa passing on defense no Brasil e um fortalecimento da posição dos autores nas ações de reparação [14].

2. A decisão do Plenário do Tribunal do Cade é apta a fundamentar a concessão de tutela da evidência, permitindo ao juiz decidir liminarmente nas ações de reparação de danos (novo artigo 47-A); o que poderá gerar consequências práticas imediatas contra os réus das ações de reparação de danos.

3. Uma empresa ou indivíduo que queira firmar um acordo (TCC) com o Cade terá que concordar com a utilização da arbitragem no caso de os prejudicados pela conduta anticompetitiva pedirem a reparação pelos prejuízos sofridos pela via arbitral (novo §16 ao artigo 85).

Sobre essa inclusão da arbitragem como cláusula nos TCCs, reconhece-se ser um instrumento muito benéfico e ágil, em especial para resolução de temas complexos. Podem surgir questionamentos, porém, no sentido de que tal inclusão em lei pode restringir a autonomia empresarial, bem como possivelmente levantar questionamentos sobre sua compatibilidade com o artigo 1º da Lei 9.307/1996 (Lei de Arbitragem), já que se passaria a ter a arbitragem como obrigação, e não como possibilidade para a resolução de conflitos. Essa posição, porém, foi refutada pelo relator do PL 11.275/2018 na Câmara dos Deputados, tendo mencionado expressamente que inexiste qualquer violação ao princípio da autonomia da vontade, pois se trataria de uma condição para a realização de um acordo, portanto, sujeito à aceitação das partes.

Diante dos breves comentários acima tecidos a respeito dos enfoques escolhidos para fins deste artigo inicial — quatro principais enfoques: (1) prescrição, (2) reparação em dobro, (3) proteção aos signatários dos acordos, e (4) outras questões processuais —, nota-se que haverá espaço para novos debates, tanto se o PL 11.275/2018 for aprovado com a redação atual quanto se houver recursos e eventuais alterações, tendo em vista se tratar de um hot topic no direito concorrencial. As alterações à Lei de Defesa da Concorrência introduzidas pelo PL 11.275/2018 afetam diretamente as avaliações de riscos relacionados à ocorrência de condutas anticompetitivas com efeitos no Brasil e devem, portanto, estar no radar das empresas que aqui fazem negócios.


[3] Art. 36, caput e incisos I a IV da Lei de Defesa da Concorrência.

[4] STJ. REsp nº 1168336/RJ, rel. ministra Nancy Andrighi, j. 22/3/2011 (julgado que, embora não referente a ilícito concorrencial, serve de base para essa corrente jurisprudencial).

[5] TJ-RS, Agravo de Instrumento nº 0475465-52.2014.8.21.7000, rel. des. Voltaire de Lima Moraes, j. 19/3/2015; TJ-MG, Apelação Cível nº 1.0024.06.984815-8/0033, rel. des. Mariza Porto, j. 29/6/2016; entre outros.

[6] TJ-SP, Apelação Cível nº 1076734-73.2017.8.26.0100, rel. des. Moreira Viegas, j. 25/9/2019; TJ-SP, Agravo de Instrumento nº 2103889-09.2018.8.26.0000, rel. des. Caio Marcelo Mendes de Oliveira, j. 11/10/2018; TJ-SP, Agravo de Instrumento nº 2103889-09.2018.8.26.0000, rel. des. Caio Marcelo Mendes de Oliveira, j. 11/10/2018; entre outros.

[7] Por exemplo, TJ-MG, Apelação Cível nº 1.0024.06.984815-8/0033, rel. des. Mariza Porto, j. 29/6/2016.

[8] Por exemplo, TJ-RS, Agravo de Instrumento nº 0053119-7.2016.8.21.7000, rel. des. Vicente Barroco de Vasconcellos, em que, em sede de decisão monocrática, reconheceu-se um prazo prescricional de dez anos.

[9] Cf. §4º do Clayton Act.

[10] Cf. Art. 42, § 1º da Lei 8.078/1990.

[11] Nesse sentido, "… o colaborador tenderá a não procurar a autoridade investigadora para cooperar caso imagine que, ao final da negociação, estará em situação pior do que no início da negociação" (Athayde, Amanda. Manual dos Acordos de Leniência no Brasil, Belo Horizonte, Forum, 2019, p. 72).

[12] STJ, REsp 1.554.986/SP, rel. ministro Marco Aurélio Belizze, j. 8/3/2016.

[13] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Relationship Between Public and Private Antitrust Enforcement, 2015. Disponível em:  https://www.oecd.org/daf/competition/antitrust-enforcement-in-competition.htm. Acesso em 13 jul. 2022.

[14] Nos termos do Voto do Relator Deputado Amaro Neto ao PL 11.275/2018, "o integrante do cartel bem pode requerer ao juiz o acesso aos dados contábeis da parte prejudicada, inclusive quanto aos preços praticados, de modo a demonstrar a inexistência de dano" (disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node080nh58hx7i36y34o5bre3rd27716941.node0?codteor=1766898&filename=Parecer-CDEICS-19-06-2019. Acesso em 13 jul. 2022).

Autores

  • Brave

    é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados, Master of Laws (LL.M.) pela University of Warwick, bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).

  • Brave

    é professora doutora adjunta de Direito Empresarial na UnB — bem como de Concorrência, Comércio Internacional e Compliance —, consultora no Pinheiro Neto Advogados nas práticas de Concorrencial, Compliance e, a partir de 2023, Comércio Internacional, doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em Administração de Empresas com habilitação em Comércio Exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I — Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, Comércio Internacional, Compliance, Acordos de Leniência, Defesa Comercial e Interesse Público, Anticorrupção.

  • Brave

    é advogado sênior do escritório Pinheiro Neto Advogados, Master of Laws (LL.M.) pela Universidade de Chicago e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!