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Thiago Gonçalves: Normalidade e legitimidade das eleições

16 de julho de 2022, 6h32

Por Thiago André Silva Gonçalves

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Muito se discute sobre a constitucionalidade da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 1/2022 [1]. Cada um de seus pontos poderia ser analisado individualmente, entretanto a justificativa da proposta apresenta em sua alegação um resumo das medidas que pretende concretizar "(i) auxílio diesel a caminhoneiros autônomos; (ii) subsídio para aquisição de gás liquefeito de petróleo pelas famílias de baixa renda brasileiras; (iii) repasse de recursos da União com vistas a garantir a mobilidade urbana dos idosos, mediante a utilização dos serviços de transporte público coletivo; e (iv) redução de tributos sobre os preços de diesel, biodiesel, gás e energia elétrica, bem como outros de tributos de caráter extrafiscal".

Tratando-se de temas tão sensíveis, especialmente às vésperas de uma eleição extremamente acirrada, não surpreende a existência de fortes reclamações acerca do regime de votação e a celeridade na aprovação da emenda, seja pelo pouco debate político ou pela fragilidade da avaliação jurídica da medida.

Embora haja vários textos alegando a inconstitucionalidade da PEC, imperioso reconhecer que a maioria invoca as proibições de cunho eleitoral de forma errônea, já que a estratégia política de utilizar uma Proposta de Emenda Constitucional afasta a aplicação da lei eleitoral por si só. A PEC pode ser inconstitucional, mas não será "ilegal". Não precisamos recorrer a Otto Bachof. Não é possível inverter a ordem normativa, ou seja, uma PEC não pode ser considerada inconstitucional por violar uma lei ordinária.

Existem também setores respeitáveis da doutrina defendendo que houve a criação de um estado de exceção [2], não previsto na Constituição. De início, pensamos que os argumentos que fundamentam qualquer refutação desta PEC devem passar, quase que de forma exclusiva, pelo juízo político [3].

Não que o Direito não seja capaz de responder à questão, mas pensamos que qualquer análise, neste momento, apela, de uma forma ou de outra, para soluções descomedidas ou para "salto hermenêuticos hiperbólicos". O texto pretende refletir sobre essa questão: (in)constitucionalidade da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 1/2022.

De início, não vislumbramos qualquer violação ao artigo 60º, parágrafo 4º da Constituição. É exagero hermenêutico alegar que está PEC está buscando abolir ("abolir", locução utilizada pela própria Constituição): a forma federativa de Estado; voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.

A ideia de que a proposta estaria criando estado de exceção, nos parece ainda mais exagerada. Estado de emergência, em nada se assemelha com estado de sítio ou estado de defesa. Fosse assim, o próprio artigo 73º, inciso VI, alínea "a" e §10º, da Lei 9.504/1997, que invoca a chamada situação de "emergência e de calamidade pública" seria inconstitucional.

A primeira questão que deveria ser respondida é: a Lei nº 13.979/2020 (dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019) criou um estado emergencial?

É possível questionar se houve ou não a existência deste estado emergencial e é neste ponto que a celeuma política reside. O governo teve a oportunidade de utilizar estas medidas anteriormente, por que não o fez? Ao que tudo indica, há claro propósito político. Mas como controlar o mérito político, quando boa parte da própria oposição votou a favor da proposta?

Embora esta pergunta possa transpassar a ideia de "utilitarismo" (do Direito) para o controle de decisões políticas, é justamente esta a problemática que queremos levantar. Há uma dimensão democrática em jogo, por mais que reprovamos.

Parece-nos, difícil sustentar a inconstitucionalidade da PEC na perspectiva das cláusulas pétreas. Contudo, sabe-se que tanto na doutrina quanto na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, existe o conceito de cláusulas pétreas implícitas.

Neste sentido, para se discutir a inconstitucionalidade desta PEC, é preciso compreender, o que se entende por "normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função" a que fala Constituição em seu artigo 14, § 9º.

Cabe destacar, que este trecho já estava na redação original do texto constitucional, sendo posteriormente acrescentado a passagem "probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato" por meio da Emenda Constitucional nº 4/94.

O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento (ADC 29/DF, relator ministro Luiz Fux, 15 e 16/2/2012, ADC 30/DF, relator ministro Luiz Fux, 15 e 16/2/2012 e ADI 4.578/DF, relator ministro Luiz Fux, 15 e 16/2/2012) da famigerada Lei da Ficha Limpa, nos forneceu algumas pistas do que seriam estes conceitos.

É possível que o Direito controle estes assuntos, mas a questão não nos parece tão latente como muitos sustentam. O direito eleitoral funciona como uma espécie de força estrutural do direito constitucional. Na leitura da Constituição, é possível extrair que a "máxima igualdade na disputa eleitoral" [4], determina o afastamento da influência do poder econômico ou do poder político, como fator categórico para o sucesso eleitoral. E note que o controle judicial não se dá na perspectiva do voto em si, já que a ciência política (empírica) vem alertando sobre a incapacidade de controlar a "cognição política" [5]. Não podemos controlar até onde as medidas irão influenciar no voto do eleitor.

A questão deve ser objetiva. Quando sustentamos, a partir da ideia de normalidade e legitimidade das eleições, a possibilidade de inconstitucionalidade da PEC em questão, compreendemos que a análise deve recair sobre os princípios constitucionais do processo eleitoral, em especial o princípio da igualdade materializado na disputa eleitoral.

Em último caso, as normas do processo democrático. O debate sobre a igualdade na disputa eleitoral foi muito bem difundido na doutrina brasileira [6], quando se aprovou, no mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, a Emenda Constitucional nº 16/1997. Permitiu-se assim, a reeleição, rompendo-se com uma tradição histórica do país, (ao menos em termos do Poder Executivo).

Em termos de isonomia, como separar a condição de candidato e chefe da administração pública federal? Hoje, poucos setores da doutrina ainda questionam a constitucionalidade da PEC das reeleições. A celeuma recai no debate público.

Transcorrido aproximadamente 25 anos, Fernando Henrique Cardoso, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (6.set.2020) alegou "Cabe aqui um 'mea culpa'. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição (…) Sabia, e continuo pensando assim, que um mandato de 4 anos é pouco para 'fazer algo'. Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos. Visto hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade" [7].

Não nos parece que controlar os limites da atuação política, neste caso específico, seja algo tão simples como muitos imprimem. Tendemos a sustentar que a PEC é inconstitucional na perceptiva da isonomia eleitoral, mas não acreditamos que há conteúdo definitivo sobre o assunto.

O que existe são pistas de decisões e ensinamento dos passados (tradição), ou como bem pontuou Rafael Thomaz de Oliveira [8] (2008, p. 240-241) "sabemos que o direito se constitui a partir de um horizonte de sentido que é transcendente". Como cantou Cazuza, "saibam que ainda estão rolando os dados".

 


[3] Por juízo político, entenda-se: aspectos fiscais, econômicos, sociais etc. Neste sentido, cabe destacar o artigo do Senador José Serra, disponível: https://www.conjur.com.br/2022-jul-04/jose-serra-arcabouco-fiscal-resista Acesso em: 11 jul. 2022.

[4] SALGADO. Eneida. Desirre. Princípios Constitucionais Estruturantes do Direito Eleitoral. Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de Doutorado em Direito do Estado, Universidade Federal do Paraná. 2010. Disponível em https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/22321/Tese_Eneida_Desiree_Salgado.pdf;sequence=1. Acesso em 11 jul 2022.

[5] Neste sentido: Brennan. jason. Against Democracy: New Preface. Princeton University Press. 2017.

[6] Neste sentido: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Desincompatibilização e inelegibilidade de chefes de Executivo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 18, p. 5-14, 1997. Disponivel em: http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/759/542.

[8] OLIVEIRA. Rafael Tomaz. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do Direito. Porto Alegre: Livraria doa Advogado. 2008