Opinião

O combate internacional ao crime organizado e direitos humanos

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

16 de julho de 2022, 11h07

Segundo relatório de 2021 da Global Initiative Against Transnational Organized Crime, mais de três quartos da população mundial vive em países com alto nível de criminalidade e com baixa capacidade de resistência ao crime organizado. Estados democráticos possuem maiores níveis de resiliência à criminalidade transnacional [1] que estados autoritários, embora a ameaça de erosão democrática crescente em tempos atuais possa configurar-se como catalisador de declínio na segurança. Diante desse cenário, a comunidade internacional possui diversas iniciativas normativas para combater o Crime Organizado Transnacional. Uma delas é um razoavelmente inovador instrumento jurídico do qual o Brasil faz parte, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (doravante "convenção"), assinada em Nova York em 15 de novembro de 2000, que conta com a robusta aderência de mais de 190 Estados.

Uma pergunta frequente que vem sendo colocada na academia e em setores da prática é a relação entre a convenção e o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH). O objetivo deste ensaio é lançar luzes sobre essa complexa relação, principalmente diante do Issue Paper "A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos" publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, liderado pela professora Serena Forlati e conduzido em colaboração com um time de experts de diversas partes do mundo, inclusive do Brasil. O Issue Paper é um estudo profundo sobre a relação entre a Convenção e os principais instrumentos de Direitos Humanos, servindo de guia aos Estados parte da Convenção sobre essa relação.

Como se sabe, a Convenção contra o Crime Organizado contém mais de 30 artigos substantivos sobre respostas domésticas e cooperação internacional para prevenir e combater o crime organizado transnacional, a maioria dos quais possuem obrigações específicas que são posteriormente incorporadas pelos Estados. Num primeiro olhar, parece ser uma tarefa hercúlea a de conciliar cada uma dessas disposições com as principais obrigações internacionais que um Estado possui em relação a Direitos Humanos. Contudo, a principal mensagem do Issue Paper é clara: a convenção não deve ser interpretada e aplicada isoladamente, mas sim à luz do direito internacional dos direitos humanos, e que os dois regimes podem ser interpretados e aplicados harmoniosamente e podem reforçar-se mutuamente. Essa mensagem é típica de uma série de leituras recentes relativas ao direito internacional: os regimes jurídicos interagem e, numa aplicação do artigo 31, 3, c da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, uma leitura sistêmica dos diferentes tratados deve ser realizada.

Em verdade, a ideia de interpretação harmoniosa tem duplo propósito. Está mais do que estabelecido que o escasso combate ao crime organizado em sociedades ao redor do mundo limita significativamente o pleno gozo de direitos humanos. Reforçar o combate ao crime organizado é também uma das maneiras que o Estado possui para fortalecer suas instituições e garantir plenamente os direitos humanos internacional e constitucionalmente assegurados. Por outro lado, como bem pontua o Issue Paper, "os Estados Partes da Convenção sobre o Crime Organizado devem considerar o direito internacional dos direitos humanos em suas estratégias, políticas, leis e medidas para a implementação da Convenção, não apenas para garantir o cumprimento do direito internacional dos direitos humanos, mas também para prevenir e reprimir o crime organizado transnacional mais efetivamente".

Nesse sentido, a observância aos direitos humanos demanda um respeito ao devido processo legal e demais direitos durante todo o procedimento de investigação, acusação e julgamento de indivíduos que cometeram crimes; padrões de devida diligência para que as vítimas tenham seus direitos a reparação e à verdade garantidos e sejam protegidas; igual precaução no cumprimento de eventuais condenações, em especial no contexto de cooperação internacional necessário ao combate de crimes transnacionais; e na atenção necessária a grupos vulneráveis à vitimização, que vêm desde o contexto de prevenção à criminalidade.

Um dos tantos exemplos interessantemente explorados pelo Issue Paper diz respeito aos casos de cooperação penal internacional em matéria de extradição. Ele demonstra exatamente as tensões no campo jurídico e como balanceá-las. Por um lado, a "extradição aumenta as oportunidades de levar os infratores à justiça e a possibilidade de as vítimas obterem reparação na forma de compensação ou restituição", sendo, portanto, percebida como uma forma de promoção dos direitos das vítimas de crimes. Por outro lado, a extradição de um réu ou de um condenado para outra jurisdição "pode representar o risco de violação dos direitos humanos dessa pessoa". Ambas as perspectivas precisam ser levadas em consideração pelos órgãos de um Estado diante de casos concretos de aplicação do artigo 16 da Convenção. Levar o DIDH em consideração nesse caso significa reconhecer que "o direito internacional dos direitos humanos proíbe um Estado de extraditar ou transferir uma pessoa quando suas autoridades sabem, ou deveriam saber, que a pessoa em questão enfrentaria um risco real de graves violações de direitos humanos no território para o qual foi extraditada ou transferida" (p. 50). Isso não significa impunidade, mas a busca de alternativas eficazes para o respeito das obrigações oriundas de ambos os tratados.

Isto é verdade ao se considerar que, no combate ao crime organizado transnacional, diferentes grupos de pessoas participam do processo e possuem direitos que precisam ser observados. Em especial, são quatro grupos que precisam ser levados em consideração: (a) pessoas suspeitas, acusadas ou condenadas por delitos abrangidos pela Convenção; (b) outras pessoas afetadas pelas medidas adotadas no âmbito da Convenção para a repressão do crime; (c) vítimas, testemunhas e pessoas que colaboram com as autoridades; e (d) pessoas ou grupos vulneráveis a crimes abrangidos pela convenção. Somente uma abordagem harmoniosa da Convenção e das obrigações oriundas do DIDH poderá efetivamente equilibrar as inerentes tensões entre esses grupos, bem como a necessidade das autoridades estatais de promover o efetivo combate ao crime organizado transnacional.

É necessário afastarmo-nos de discursos binários de que o combate à criminalidade não pode ser feito com observância a direitos humanos, e que o direito internacional dos direitos humanos serve para evitar a efetiva repressão da criminalidade transnacional. Essa é a lição fundamental do Issue Paper para sociedades de países em desenvolvimento que sofrem com profunda corrupção e enfraquecimento de instituições. As obrigações de respeitar, proteger, cumprir e promover os direitos humanos são mais do que compatíveis com a árdua obrigação estatal de combater grupos criminosos transnacionais; são, em verdade, obrigações interrelacionadas.

As lições e reflexões do Issue Paper são muitas e merecem atenção, debate e aprofundamento no Brasil e na América Latina. É possível notar, por exemplo, que o Paper foi cuidadoso em ponderar a prática das cortes Africana, Interamericana e Europeia em suas conclusões, bem como as conclusões dos órgãos da ONU. Tal fertilização pode ser considerada positiva e indicativa de standards internacionais comuns para a realização do processo de interpretação harmoniosa. Circular e discutir o Paper com os principais stakeholders (a começar por atores envolvidos na delimitação de políticas públicas e no combate ao crime organizado) é uma maneira de auxiliar agentes estatais na sisífica tarefa de promover direitos humanos e realizar o efetivo combate à criminalidade organizada transnacional.


[1] Sobre o tema ver BOISTER, Neil. Transnational criminal law? European Journal of International Law, vol. 14, No. 5, 2013, pp. 953-976, e também FORLATTI, Serena. Organized Crime: The Road to the Palermo Convention. In BOISTER, Neil et al. Histories of Transnational Criminal Law. Oxford: Oxford University Press, 2021.

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    é professor de Direito Internacional da UFMG, membro da diretoria da ILA-Brasil e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG.

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