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Miriam Dolhnikoff: José Bonifácio era exceção reformista

14 de julho de 2022, 14h07

Por Miriam Dolhnikoff

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*artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo

Súdito do império português nascido em sua porção americana, José Bonifácio de Andrada e Silva viveu em um mundo em transformação que abria diferentes possibilidades para conceber e implementar reformas políticas e sociais. Não queria, a princípio, a independência. Defendia um império luso-brasileiro renovado por mudanças estruturais, no reino e na colônia, que o conduzissem para o que se afigurava ser uma nova era.

Reprodução/Benedito Calixto
José Bonifácio retratado em pintura de Benedito Calixto
Reprodução

Nasceu em Santos, na capitania de São Paulo, em 1763, e passou a maior parte da sua vida adulta na Europa. Como muitos filhos da elite colonial embarcou para Portugal aos 20 anos para estudar na Universidade de Coimbra, mas, ao contrário da maioria, só retornou ao Brasil com 56 anos.

Cursou a Faculdade de Direito, como era usual entre os jovens vindos da América, e a Faculdade de Filosofia, que incluía o estudo das ciências naturais. Especializou-se em mineralogia, campo que incorporava geologia, química e metalurgia, atividades essenciais no contexto do desenvolvimento da indústria da época.

Formado na Ilustração, acreditava no poder da razão e do conhecimento científico para moldar os homens e seu meio. Por isso, ao seu ver, o cientista não poderia ficar preso em seu gabinete, envolto em livros e absorto em teorias, mas sim dedicar-se à resolução dos problemas que afligiam a sociedade e obstruíam o progresso material. Fazia parte do grupo de letrados portugueses reunidos na Academia das Ciências de Lisboa que, sob a liderança de dom Rodrigo de Souza Coutinho, ministro de dom João, empenharam-se em desenhar políticas para a modernização da economia.

A partir de 1801, após dez anos de uma viagem de estudos por vários países europeus, recebeu de dom Rodrigo a incumbência de ocupar diversos cargos públicos, de modo que o mineralogista pudesse converter seu saber em políticas concretas. Procurou dinamizar a exploração de carvão, a fundição de ferro e outras atividades que estimulassem a manufatura. Foi também responsável por criar a cadeira de metalurgia na Universidade de Coimbra.

Sua vida seria alterada com a invasão de Portugal pela França em 1807, resultado da guerra entre franceses e ingleses, dos quais Portugal era aliado. A Corte fugiu para o Brasil. Bonifácio permaneceu no reino para lutar contra os invasores. Vencidos os franceses em 1810, demorou-se ainda alguns anos em Lisboa. Porém, expressava profundo desgosto e desilusão por ver seus esforços, no exercício dos cargos que ocupava, frustrados por seguidos entraves burocráticos. Era a hora de se aposentar e voltar à terra natal.

Encontrou um Brasil diferente quando aqui chegou em 1819. Com a vinda da Corte, o Rio de Janeiro foi elevado a capital do império lusitano e o Brasil não era mais colônia. Adquirira o estatuto de reino, o mesmo de Portugal. A intenção de Bonifácio era se retirar da vida pública, no entanto, em 1820 a revolução constitucionalista do Porto o impeliu para a política.

Os revoltosos exigiam a transferência da Coroa para Portugal e a instauração de uma monarquia constitucional. Com este fim, convocaram as Cortes, assembleia que deveria escrever a Constituição do novo regime. As províncias da América elegeram seus deputados. O liberalismo unia os portugueses dos dois lados do Atlântico e inaugurava um novo tempo.

Bonifácio participou destes acontecimentos em São Paulo. Não se candidatou a deputado, mas escreveu uma espécie de programa para orientar os representantes paulistas na sua atuação nas Cortes. Nele defendia o império luso-americano. O Brasil permaneceria subordinado a Lisboa, mas contaria com um governo autônomo para tomar as decisões referentes à América. Sua direção caberia ao herdeiro do trono, dom Pedro, tornado príncipe regente depois que o rei dom João 6º obedeceu às ordens dos rebeldes vitoriosos e voltou a Portugal.

O cenário, contudo, foi de disputa. Os portugueses do reino não aceitavam a autonomia pretendida pelos brasileiros. Insistiam no retorno de dom Pedro a Lisboa e no desmonte das instituições instaladas no Rio de Janeiro quando para lá se transferiu a Coroa lusitana.

Em reação, setores da elite luso-brasileira, entre eles Bonifácio, se articularam em um movimento que reivindicava a permanência do príncipe, estabelecendo com ele uma aliança em nome de objetivos comuns: impedir que a América portuguesa seguisse o exemplo de seus vizinhos que optaram pela independência e assegurar sua unidade frente o perigo de fragmentação em diversos países. Para Bonifácio, significava ainda garantir as condições para a adoção das reformas que defendia. dom Pedro permaneceu no Rio de Janeiro e nomeou Bonifácio ministro do Reino e Estrangeiros em janeiro de 1822.

Diante da intransigência das Cortes, caminharam juntos para a independência, que passou a ser uma alternativa concreta em agosto daquele ano. Estava no centro das articulações que levaram à ruptura com a metrópole, atuando para que todo o território da América portuguesa fosse integrado em um novo país. O que incluiu o envio de tropas para províncias que resistiam a aderir ao Rio de Janeiro.

A proclamação da Independência trazia consigo o desafio de construir um Estado e uma nação. Não havia, entretanto, consenso entre aqueles que estavam a frente deste processo sobre o perfil das instituições a serem organizadas, do país a ser constituído, do tipo de sociedade que deveria prevalecer.

Concordavam com a adoção de um regime liberal, com separação entre os poderes, eleição de representantes para o parlamento, súditos que se transformavam em cidadãos portadores de direitos individuais e políticos. Mas como materializar este regime em uma sociedade escravista e marcada por profunda hierarquia social?

Bonifácio acreditava ter a resposta com seu projeto nacional. Uma renovação profunda a ser conduzida pelo governo, com o objetivo de civilizar uma população que, para ele, estava imersa na barbárie. Pretendeu amalgamar os metais de que dispunha em seu laboratório social para obter a têmpera de uma nação europeizada. A natureza e a história forneciam os elementos necessários, bastariam os instrumentos da razão e do saber, postos a serviço do poder forjador do Estado, para sua transmutação em metal nobre. O Estado seria o agente que, de cima para baixo, irradiaria essas mudanças. Por essa razão, a monarquia constitucional que defendia era altamente centralizada, com um Executivo forte, capaz de implementar as reformas que tornariam viável o próprio país.

Não só o povo deveria ser civilizado antes de poder ser senhor de si mesmo, como também a elite branca, por viver da exploração de escravizados. Dela resultava a violência, o ócio, o isolamento que marcavam o cotidiano dos grandes proprietários, incapacitados, portanto, para o exercício de cidadania e de compromisso com o bem comum. Graças à escravidão aferravam-se ainda a práticas agrícolas tradicionais, com devastação das matas que empobrecia os recursos naturais, e resistiam à modernização das técnicas utilizadas na agricultura.

As medidas a serem adotadas eram radicais: abolir a escravidão, integrar o indígena, disseminar a educação e promover a mestiçagem. Todas elas visavam criar um povo homogêneo, pois só assim seria gerado um sentimento nacional e a aptidão para a cidadania.

Através da mestiçagem surgiria uma nova "raça", com um repertório comum, moldado pela educação, a fim de que esta massa miscigenada adquirisse os valores, costumes e hábitos dos povos cultos. Os brancos teriam contribuição fundamental, ao inocular o sangue europeu na mistura que seria também cultural.

Seu pressuposto era que todos os homens tinham capacidade intrínseca para alcançar o estágio superior que idealizava, inclusive negros e indígenas. Mas apenas se tivessem condições de vida que propiciassem o desenvolvimento de suas potencialidades.

Por isso era imperativo emancipar os negros e integrar os indígenas "selvagens". No caso dos primeiros, por serem escravizados eram refratários a uma civilização da qual só conheciam o trabalho excessivo e o açoite. O negro africano era assim um bárbaro em terras brasileiras não por sua natureza, mas por ser escravo: a escravidão o barbarizava, não a sua origem, sua cor ou sua raça.

Além de empecilho para o exercício pleno da cidadania por negros e brancos, a escravidão ainda representava um permanente perigo para a manutenção da ordem. Bonifácio alertava para o risco de manter uma parcela da população como inimiga interna, porque escravizada. Ao invés de inimigos, seriam alçados a cidadãos, que reconheceriam assim o Estado e o pertencimento à nação brasileira.

A principal beneficiária seria, afinal, a própria aristocracia dirigente. No entanto, não era suficiente libertar os escravos. Era preciso que o governo tomasse para si a tarefa de integrá-los à sociedade, fornecendo-lhes terras, o que lhes proveria meios de subsistência. Nenhum bem resultaria se os negros fossem simplesmente abandonados à própria sorte. A profunda hierarquia social seria preservada, pois educação e meios de subsistência seriam distribuídos na medida certa para converter ex-escravos em trabalhadores disciplinados.

Bonifácio era uma exceção no seio do grupo dirigente. Suas convicções reformistas atraíram contra ele uma oposição feroz. Em julho de 1823 foi demitido do ministério em função das desavenças com aqueles que disputavam o poder e o programa de nação.

Assumiu então sua cadeira de deputado na Assembleia Constituinte, que se reunira em março de 1823 para escrever a Constituição brasileira. Apresentou um projeto de lei que previa o fim do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão. Enquanto a emancipação não ocorria, caberia ao governo mediar a relação entre senhor e escravo, regulando-a de modo a retirar do primeiro o pleno arbítrio sobre a vida de seus cativos. Esta mediação já seria em si uma novidade.

Os artigos da lei que propunha estipulavam normas para reger o trabalho dos escravos, com restrições à exploração de menores e mulheres, delimitação da jornada de trabalho e determinação de que o proprietário fornecesse alimentação e vestuário adequados. Além disso, prescrevia que ficaria a cargo do poder público, não mais dos senhores, o julgamento e a punição de escravos infratores. Medidas paliativas para diminuir o risco de revoltas e preparar os escravos para no futuro serem livres. Antes que o projeto entrasse em discussão e antes que fosse promulgada a Constituição, dom Pedro fechou a Constituinte em novembro de 1823. Bonifácio foi condenado ao exílio na França.

Lá amargou sua derrota. Para ele havia sido derrotado tanto o regime liberal, com a outorga de uma Constituição pelo imperador em 1824, quanto seu projeto nacional, com a continuidade da ordem escravista.

De volta ao Brasil anos depois, obteve certo protagonismo ao ser nomeado tutor de dom Pedro 2º após a abdicação do pai em 1831. Mais uma vez sofreu forte oposição de políticos que não poderiam permitir que o jovem imperador fosse formado pelas ideias reformistas de Bonifácio. Destituído da tutoria em dezembro de 1833, foi colocado em prisão domiciliar em Paquetá. Morreu em 1838.

A maior ilusão de Bonifácio foi, talvez, a volúpia voluntarista que o fez acreditar que o homem poderia escrever a história futura exclusivamente segundo sua vontade. Sabia, por outro lado, que não podia prescindir do apoio daqueles que compartilhassem de sua visão ilustrada. Tentou convencer a elite brasileira do que seriam seus reais interesses: aceitar o fim da escravidão e integrar os negros à sociedade para garantir a ordem, tendo na base da hierarquia social uma população homogênea e devidamente instruída.

Contudo, encontrou a resistência dessa mesma elite, que não estava disposta a pagar o preço das reformas que supostamente a beneficiariam. Bonifácio falava aos grupos dominantes e só poderia ter sido bem-sucedido se contasse com a adesão de seus pares.

A alternativa que restava era inconcebível para um membro da elite branca brasileira do século 19, como o era Bonifácio: a mobilização de parcelas da população excluídas do poder. Acreditou ser possível transformações de fundo, econômicas e sociais, através de um projeto político que não era capaz de incorporar como agentes efetivos os diferentes setores de uma população heterogênea. Acabou derrotado.