Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que as alíquotas do ICMS sobre itens essenciais como energia elétrica e telecomunicações não pode ser superior às alíquotas aplicáveis a mercadorias em geral, sob pena de afronta ao princípio da seletividade previsto no artigo 155, §2º, inciso III, da Constituição (RE 714.139 — Tema 745). Contudo, o STF modulou os efeitos de sua decisão de forma que a alíquota geral do ICMS fosse aplicada apenas a partir de 2024, como forma de proteger as finanças dos estados.
Em 23 de junho de 2022, o Congresso aprovou e o presidente sancionou a Lei Complementar nº 194/2022 (LC 194), reconhecendo a essencialidade dos combustíveis, do gás natural, da energia elétrica, das telecomunicações e do transporte coletivo, por meio de alterações ao Código Tributário Nacional (CTN) e à Lei Kandir. De acordo com o texto da LC 194, os estados e o Distrito Federal não poderão exigir o ICMS sobre referidos bens e serviços por meio da aplicação de alíquotas superiores à alíquota geral (que normalmente é de 17% ou 18%, a depender do estado).
O Congresso agiu nos exatos termos de sua atribuição legislativa e editou o ato normativo próprio para regular a cobrança do ICMS nacionalmente (lei complementar), automaticamente vinculando as unidades federativas. A Constituição prevê que a edição de norma geral federal sobre matéria cuja competência legislativa é concorrente suspende a eficácia de lei estadual, no que lhe for contrária (artigo 24, §4).
Assim, desde 23 de junho a alíquota do ICMS sobre energia, telecomunicações, combustíveis e gás natural é aquela aplicável a mercadorias em geral, conforme a lei do estado competente para cobrar o tributo no caso concreto. Tanto é assim que diversos estados e o Distrito Federal reconheceram a eficácia imediata da LC 194. São Paulo publicou um singelo, mas importante e suficiente, ato informativo.
Entretanto, alguns estados ajuizaram a Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de Medida Cautelar nº 7195 (ADI) contra a LC 194. Em resumo, alegam 1) intervencionismo indevido da União na esfera de competência dos Estados e do Distrito Federal, 2) concessão de desoneração tributária heterônoma, 3) violação ao pacto federativo e 4) desrespeito à modulação de efeitos determinada pelo STF e consequente violação à separação de poderes e à coisa julgada.
Nenhum destes argumentos é procedente.
Assim como o CTN e a Lei Kandir, a LC 194 é uma norma geral tributária editada nos termos do artigo 146, III, da CF, que atribui às leis complementares precisamente a competência para legislar sobre as limitações ao poder de tributar e veicular normas gerais em matéria tributária. Por esta razão, a LC 194 deve ser considerada na verdade lei nacional (e não federal), pois voltada a todos os brasileiros e todos os entes da federação.
O Congresso Nacional tem competência para legislar sobre todas as matérias de competência da União, incluindo o sistema tributário, as limitações constitucionais ao poder de tributar e as normas gerais tributárias (artigos 24, 48 e 146 da CF). Uma vez que o objetivo da LC 194 é regulamentar o ICMS nacionalmente, de forma geral, e, de forma mais específica, garantir a aplicação do princípio constitucional da seletividade, não há interferência indevida ou violação ao pacto federativo.
Também não se trata de ato da União concedendo isenção de tributo estadual, o que de fato se qualificaria como uma isenção heterônoma, vedada pelo artigo 151, III, da Constituição. O princípio da seletividade no âmbito do ICMS não foi instituído LC 194, já que expresso na Constituição desde 1988. Houve apenas a sua regulamentação.
Embora os estados tenham desrespeitado este princípio por décadas, mediante a tributação de itens indiscutivelmente essenciais a alíquotas elevadíssimas, não se pode tratar a nova previsão da LC 194 como uma isenção. Há uma clara diferença entre a concessão de uma isenção relativa a tributo estadual pela União e a regulação de uma limitação constitucional ao poder de tributar (princípio da seletividade) já prevista na Constituição Federal.
Esta situação é diferente daquelas nas quais a edição de LC foi questionada por configurar uma intervenção indevida na autonomia dos estados e violação ao Pacto Federativo. Tomemos como exemplo a própria Lei Kandir, que isentou do ICMS a exportação de bens primários e semi-elaborados a partir de 1996, quando a Constituição garantia a imunidade apenas aos produtos industrializados. Houve grande discussão política a respeito da necessidade de se compensar os estados, resultando na inclusão de mecanismo de compensação no artigo 31 da lei. Ainda, muitas foram as críticas em função de a previsão ter, sem dúvidas, a natureza de isenção heterônoma.
Somente com a EC 42/03 a não-incidência do ICMS sobre a exportação de bens primários e semi-elaborados foi alçada à condição de imunidade constitucional. Nesta oportunidade foi acrescentado o artigo 91 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinando que houvesse a edição de lei complementar para instituir e implementar o mecanismo de compensação aos estados e o Distrito Federal.
Em função da ausência da edição desta lei complementar e implementação do mecanismo de compensação, o Governador do Estado do Pará ajuizou a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão 25, que resultou em acórdão do STF determinando a edição da lei em 12 meses ou então que a forma de compensação fosse determinada pelo Tribunal de Contas da União.
A decisão foi fortemente baseada no pacto federativo, que se considerou violado na medida em que houve a supressão de competência tributária e não implementação do mecanismo de compensação que servia para garantir a autonomia financeira dos estados.
Diferentemente, a LC 194 não suprimiu qualquer competência tributária dos estados, mas simplesmente regulou uma limitação já prevista na Constituição Federal e reconhecida como válida pelo STF.
Ainda em respeito ao pacto federativo, a LC 194 mantém a autonomia dos entes para aplicar alíquotas reduzidas em relação aos bens nela referidos, como forma de beneficiar os consumidores em geral, o que preserva os entes federados que, eventualmente, já apliquem alíquotas mais benéficas para determinados bens e serviços integrantes desse rol.
Além disso, o legislador tomou o cuidado de apresentar ressalvas relacionadas à lei de diretrizes orçamentárias, ao implementar mudanças no meio do exercício financeiro, bem como a exoneração das principais exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Assim, não há qualquer vício de constitucionalidade na LC 194.
A irresignação do Distrito Federal e dos estados que ajuizaram a ADI também está intimamente ligada à já mencionada modulação dos efeitos da decisão do STF no RE 714.139, que reconheceu a impossibilidade de se tributar a alíquotas elevadas os itens essenciais. Com a LC 194, a redução das alíquotas passa a ser imediata, um ano e meio antes do previsto pelo STF. Contudo, isto não significa que o Congresso tenha atuado de maneira irregular ou incorrido em ofensa à coisa julgada.
Somente haveria ofensa à coisa julgada caso a LC 194 pretendesse se qualificar como interpretativa, de modo a permitir aplicação retroativa (tal como a LC 118/05, que foi julgada inconstitucional neste aspecto [1]).
A decisão que regula relações jurídicas permanentes e sucessivas, tal como a decorrente do RE 714.139, contém uma cláusula rebus sic stantibus: ou seja, havendo modificação superveniente no estado de fato ou de direito, a qual não foi objeto de análise na decisão (superveniência da LC 194), tem-se uma situação jurídica nova, não abrangida pela coisa julgada, nos termos do artigo 505, I, do CPC.
Nesse passo, a LC 194 modificou o estado de direito, o que limita automaticamente a aplicação de efeitos da decisão anterior. O STF é categórico no sentido de que a eficácia temporal de decisão transitada em julgado só permanece válida enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos que lhe serviam de alicerce [2]. Dessa forma, também não há elementos para invocar a modulação dos efeitos decidida no RE 714.139.
A LC 194 ainda merece aplausos por colocar em situação de igualdade todos os contribuintes, uma vez que a citada modulação trazida pelo STF deixava em situação privilegiada aqueles que haviam ajuizado ações para questionar a alíquota do ICMS sobre itens essenciais, já que os demais contribuintes somente poderiam se beneficiar de uma tributação reduzida a partir de 2024.
Em conclusão, o ato do Congresso Nacional não pode ser atacado, seja pelo aspecto formal, seja pelo aspecto material. Esperamos que o STF não caia na tentação de se imiscuir no regular exercício de competência constitucional pelo Congresso.
[1] STF, RE 566.621, relator ministro Ellen Gracie, P, j. 4-8-2011, DJE 195 de 11-10-2011, Tema 4.
[2] Exemplos de decisões do STF nesse sentido: 1) MS 25430, relator ministro Eros Grau, relator p/ Acórdão ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, 26/11/2015; 2) MS 32435 AgR, relator ministro Celso de Mello, rel. p/ acórdão ministro Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 04/08/2015.