Opinião

Consentimento e telemedicina após a Resolução CFM 2.314/22

Autor

  • Fernando Gomes Miguel

    é advogado e consultor em Privacidade e Proteção de Dados DPO pós-graduado em Direito Público em Compliance profissional certificado pela Iapp (Cipp/E CIPM e CDPO-BR).

12 de julho de 2022, 13h08

O Conselho Federal de Medicina deu um importante passo na regulamentação da telemedicina no Brasil, com o advento da Resolução CFM 2.314, de 20 de abril de 2022 [1], publicada em 5 de maio deste ano, no Diário Oficial da União, data que também marca o início de sua vigência. A regulação mais minuciosa do assunto era ansiosamente aguardada, diante do uso cada vez mais frequente [2] da telemedicina, principalmente na modalidade da teleconsulta.

A nova resolução específica sobre telemedicina revoga a anterior — Resolução CFM 1.643, de 7 de agosto de 2002 —, naturalmente defasada pelo tempo e pelo avanço tecnológico significativo ocorrido nesses últimos 20 anos. A resolução do ano de 2002 era anterior a muitas das tecnologias corriqueiras que existem atualmente, como a internet 4G, o smartphone, o uso de inteligência artificial, a internet das coisas e a potencialização do processamento de dados em larga escala.

Uma regulação atualizada costuma trazer segurança jurídica ao assunto, ao passo que reflete os valores de seu tempo, e a nova resolução foi atenta ao mencionar, em suas considerações iniciais, leis como a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) e dentre tantos aspectos que poderíamos destacar, um ponto vem à tona: os reflexos na escolha da base legal pelos agentes de tratamento. Estaria, com o advento da Resolução 2.314/2022, afastada a possibilidade de escolha da base legal da tutela da saúde, prevista na Lei Geral de Proteção de Dados, nos artigos 7°, VIII e 11º, II, alínea "f", para fundamentar a utilização de dados pessoais para a finalidade de prestação da telemedicina? A resposta parece ser afirmativa, conforme explorado adiante.

Antes, é importante voltar um pouco no tempo e tratar da Resolução CFM 1.643/2002, revogada pela nova Resolução CFM 2.314/2022 e que previa, nas suas considerações iniciais, a necessidade de prévia permissão para transmissão (de dados pessoais) a outro profissional [3], o que se caracterizaria como teleinterconsulta [4]. Contudo, a antiga norma não deixava expressa a necessidade de um consentimento prévio e expresso do paciente para a realização de uma consulta médica, por meio telemático, principalmente as teleconsultas mais simples, as primeiras consultas, prévias aos atos de diagnóstico ou à realização do tratamento.

A falta dessa previsão expressa do consentimento foi percebida e no final do ano de 2018, o Conselho Federal de Medicina tentou atualizar as regras sobre a telemedicina no Brasil, com a aprovação da Resolução CFM 2.227/2018, publicada no ano seguinte, em 6/2/2019, sendo que essa norma trazia a previsão expressa no sentido de que o consentimento era necessário ao teleatendimento, como previsto no § 4°, do artigo 4°[5]. Diz-se "tentou" porque após o conselho receber um número significativo de observações e sugestões de alteração, especialmente da comunidade médica, a revogar a Resolução 2.227/2018 em 6/3/2019 [6], tendo sua vigência durado somente 30 dias. Consequentemente, a Resolução CFM 1.634/2002 voltou a ter vigência e a produzir todos os seus efeitos.

A partir do início do ano de 2020, com urgência devido à pandemia, a telemedicina galopou de um recurso opcional para um meio essencial, forçando o Conselho Federal de Medicina a se manifestar, o que foi feito por meio do Ofício CFM n° 1.756/2020 [7], em que se reconheceu a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina para garantir o acesso à saúde, durante o período de isolamento. O Ofício CFM n° 1.756/2020 definiu ainda as modalidades teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta [8], mas nada foi acrescido no sentido de estabelecer a necessidade do consentimento do paciente para a telemedicina.

O Ministério da Saúde também publicou a Portaria n° 467, de 20 de março de 2020, dispondo, em caráter excepcional, sobre ações de telemedicina, sem, contudo, trazer qualquer previsão expressa sobre a necessidade do consentimento específico do paciente. Poderíamos citar ainda a Lei Federal 13.989/2020, que dispõe sobre o assunto em caráter excepcional, enquanto durar a pandemia e não mencionou o consentimento.

A falta de uma disposição específica sobre a necessidade do consentimento obriga uma leitura sistemática de outras normas ou resoluções, como bem destacado em um artigo [9] de autoria de José Luiz de Moura Faleiros Junior, Rafaella Nogaroli e Caroline Amadori Cavet e do qual vale citar um trecho:

"Outra crítica que recai sobre a resolução refere-se ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que, pela leitura literal do texto, restringe-se a transmissão de dados. Isso porque não há previsão expressa quanto à necessidade de obtenção do consentimento do paciente quanto a submissão ao atendimento na forma remota."

Não que seja grave a falta dessa previsão expressa na regulação mais específica sobre o tema, pois uma leitura mais ampla sobre a liberdade de escolha do paciente, envolvendo desde normas do Conselho Federal de Medicina, como o Código de Ética Médica [10] e a Recomendação [11] sobre o tema, adverte, aos médicos mais cautelosos, no sentido de coletar o consentimento do paciente, de preferência a escolha que deixe alguma prova de sua existência. Além disso, se o paciente não estiver de acordo com a consulta, nos parece que, no caso da telemedicina, em algumas modalidades, bastaria o paciente se manifestar de forma contrária e, a depender, apenas desligar o dispositivo. A simplificação do consentimento para condutas mais simples, ou até mesmo sua dispensação foi bem constatada pela doutora Flaviana Rampazzo Soares, ao assinalar que "se a pessoa se apresenta para uma consulta médica, admite-se que está de acordo com a consulta" [12].

Entretanto, no ano de 2020, em 14 de agosto, entrou em vigência a Lei Geral de Proteção de Dados — Lei Federal 13.709/2018 — após longo período de vacância e em meio a idas e vindas no Congresso, que causou incertezas quanto à data que entraria em vigência a nova Lei de Proteção de Dados brasileira. Mas foi em 14 de agosto que a LGPD passou a viger quase em sua totalidade, exceto a parte que dispõe sobre as sanções. A partir de então passou a valer, com força de lei, as bases legais [13], que vão bem além do consentimento do titular.

A LGPD, lei considerada específica sob a proteção de dados pessoais no Brasil, abriu um leque de bases legais, criando alternativas e dispensando o necessário consentimento do titular dos dados pessoais, no caso, o paciente, incluindo aí a hipótese da tutela da saúde [artigo 11°, II, "f"], podendo essa justificativa ser usada por profissionais e serviços de saúde, o que dispensaria o consentimento.

"Art. 11. O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses: […] II – sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para: […] f) tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária."

Sobre a tutela da saúde, importante trazer alguns esclarecimentos.

Primeiro, o termo tutela é no sentido de proteção, de um bem da vida, no caso, a saúde, o que nos dá um amplo escopo podendo englobar, a princípio, muitos procedimentos realizados por profissionais da área da saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária que redunde, de maneira direta e indireta, na proteção à saúde.

Segundo, os considerados serviços de saúde consistem nos estabelecimentos que são destinados à promoção da saúde do indivíduo, visando protegê-lo de toda a sorte de doenças e agravos, além de prevenirem e limitarem eventuais danos que possam ser causados à pessoa, objetivando a reabilitação de sua capacidade física, psíquica e social quando afetada [14].

O Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (RGPD), que inspirou a elaboração da LGPD, prevê hipótese semelhante, nos artigos 9(2)(h) e Artigo 9(3), à tutela da saúde e lá a lei permite a utilização da base quando for realizada por profissionais sujeitos ao sigilo profissional (profissionais de saúde) ou outro profissional obrigado por um termo de confidencialidade. Vejamos:

"9(2)(h) Se o tratamento for necessário para efeitos de medicina preventiva ou do trabalho, para a avaliação da capacidade de trabalho do empregado, o diagnóstico médico, a prestação de cuidados ou tratamentos de saúde ou de ação social ou a gestão de sistemas e serviços de saúde ou de ação social com base no direito da União ou dos Estados- Membros ou por força de um contrato com um profissional de saúde, sob reserva das condições e garantias previstas no nº 3;

(…)

9(3). Os dados pessoais referidos no nº 1 podem ser tratados para os fins referidos no nº 2, alínea h), se os dados forem tratados por ou sob a responsabilidade de um profissional sujeito à obrigação de sigilo profissional, nos termos do direito da União ou dos Estados-Membros ou de regulamentação estabelecida pelas autoridades nacionais competentes, ou por outra pessoa igualmente sujeita a uma obrigação de confidencialidade ao abrigo do direito da União ou dos Estados-Membros ou de regulamentação estabelecida pelas autoridades nacionais competentes."

Estabelecidas algumas linhas sobre a tutela da saúde, é detalhar que a base legal referida dispensa o consentimento. Portanto, para condutas mais simples realizadas por telemedicina, que poderiam relaxar o rigor de um TCLE formal, à luz da privacidade e da proteção de dados, poderia ser utilizada a base legal da tutela da saúde, pelo menos durante o período entre 14/8/2020 (vigência das bases legais) até o dia 4/5/2022 (publicação da resolução).

Embora, no setor da saúde, seja prática comum o uso do termo de consentimento livre e esclarecido para diversos tipos de assistência, em primazia à autonomia da vontade do paciente, ainda assim, o trâmite de coletar e armazenar corretamente o termo de consentimento traz consigo um ônus, que a LGPD, nesse ponto, foi permissiva, não condicionando o uso dos dados ao consentimento.

Porém, com o advento da Resolução CFM 2.314/2022, a possibilidade de utilização da tutela da saúde como base legal parece não mais ser possível. Com efeito, a nova normativa contempla a privacidade e a proteção de dados como valores importantes que devem ser resguardados pela regulação da telemedicina.

Importante observar que dois "considerandos" mencionam não só a LGPD, mas também o Marco Civil da Internet, Lei Federal 12.965/2014, instrumento normativo que traz as balizas para o uso da internet em território nacional. No artigo 3° da Resolução 2.314/2022 consta também valores que devem ser preservados, estando lá prevista a privacidade, a confidencialidade, o sigilo e a veracidade da informação.

O artigo 15º, da Resolução CFM 2.314/2022, deixa expresso que o paciente ou seu representante legal deverá autorizar o atendimento por telemedicina e a transmissão das suas imagens e dados por meio de (termo de concordância e autorização) consentimento, livre e esclarecido, enviado por meios eletrônicos ou de gravação de leitura do texto com a concordância, devendo fazer parte do SRES do paciente.

O parágrafo único vem ainda ressaltar que em todo atendimento por telemedicina deve ser assegurado consentimento explícito, no qual o paciente ou seu representante legal deve estar consciente de que suas informações pessoais podem ser compartilhadas e sobre o seu direito de negar permissão para isso, salvo em situação de emergência médica.

Pela leitura do artigo 15°, especialmente de seu parágrafo único, que exige o consentimento explícito do paciente para a telemedicina, pode-se afirmar que o agente de tratamento é direcionado para a base legal do consentimento, prevista nos artigos 7° e 11° da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

O agente ainda poderia se respaldar, em casos excepcionais, na base que prevê a proteção à vida e à incolumidade física, em emergência médica, mas não poderia mais confiar na tutela da saúde como base legal aplicável para legitimar realização de telemedicina, e isso reflete na atividade diária do médico que utiliza a telemedicina, em vista que o consentimento deverá ser registrado nos registros do paciente, o que é assunto para outro artigo.

Em conclusão, temos que a Resolução CFM 2.314, de 20 de abril de 2022, nova regulação do Conselho Federal de Medicina sobre a telemedicina, dentre os seus efeitos, refletiu na escolha da base legal dentre as previstas na LGPD, em decorrência do previsto no artigo 15°, caput e parágrafo único, da resolução da telemedicina, que prevê o consentimento do paciente para a telemedicina, afastando a possibilidade de escolha da base da tutela da saúde prevista no artigo 11°, II, "f" da LGPD.

 


[1] Resolução 2314/2022 disponível em https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-cfm-n-2.314-de-20-de-abril-de-2022-397602852 (Acessado em 07/05/2022)

[2] Para se ter uma ideia, estudo divulgado pela DASA aponta que, no primeiro bimestre de 2022, o aumento do uso da telemedicina foi de 226%, em comparação com o mesmo período do ano passado. Especificamente nos casos de saúde mental, comparando o segundo semestre de 2021 e o mesmo período de 2020, a alta foi gritante, na casa de 229% e continua numa crescente, pois, se levado em conta o primeiro bimestre de 2022, em relação ao primeiro bimestre de 2021, o uso de telemedicina na saúde mental cresceu 97% https://setorsaude.com.br/dasa-telemedicina-aumenta-em-226-nos-primeiros-dois-meses-de-2022/. (Acessado em 07/05/2022)

[3] Trecho da Resolução: “Considerando que as informações sobre o paciente identificado só podem ser transmitidas a outro profissional com prévia permissão do paciente, mediante seu consentimento livre e esclarecido e sob rígidas normas de segurança capazes de garantir a confidencialidade e integridade das informações;

[4] Segundo o artigo 7° da nova Resolução CFM 2.314/2022, a TELEINTERCONSULTA é a troca de informações e opiniões entre médicos, com auxílio de TDICs, com ou sem a presença do paciente, para auxílio diagnóstico ou terapêutico, clínico ou cirúrgico.

[5] § 4º do artigo 4° – O teleatendimento deve ser devidamente consentido pelo paciente ou seu representante legal e realizado por livre decisão e sob responsabilidade profissional do médico.

[6] Data da publicação da Res. CFM 2.228/2019, que revogou a Res. CFM 2.227/2019.

[8] Teleorientação: para que profissionais da medicina realizem à distância a orientação e o encaminhamento de pacientes em isolamento; Telemonitoramento: ato realizado sob orientação e supervisão médica para monitoramento ou vigência à distância de parâmetros de saúde e/ou doença. Teleinterconsulta: exclusivamente para troca de informações e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico.

[9] Telemedicina E Proteção De Dados: Reflexões Sobre A Pandemia Da Covid-19 E Os Impactos Jurídicos Da Tecnologia Aplicada À Saúde. Revista dos Tribunais | vol. 1016/2020 | p. 327 – 362 | Jun / 2020 DTR20207334.

[10] Resolução CFM 2.217/2018.

[11] Recomendação CFM 01/2016 – Sobre o consentimento.

[12] SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, página 146.

[13] Sobre, as bases legais, insta esclarecer que a LGPD limita a possibilidade de tratamento de dados pessoais às hipóteses taxativas que nela estão previstas, o que comumente se denomina de bases legais, ou, de forma correlata, hipóteses de tratamento, ou ainda hipóteses legitimadoras. A escolha acertada é importante para o agente de tratamento ter clareza sobre a legitimidade ou não de determinada atividade que envolva dados pessoais e assim estar em conformidade com a LGPD e evitar sanções.

[14] AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA. Tecnologia da Organização dos Serviços de Saúde. Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/servicosaude/organiza/index.htm. Acesso em 04 de abril de 2022.

Autores

  • é advogado e consultor em Privacidade e Proteção de Dados, DPO, pós-graduado em Direito Público e pós-graduado em Compliance, profissional certificado pela IAPP - CIPP/E e CIPM.

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