Opinião

A Suprema Corte dos Estados Unidos e as mudanças climáticas

Autor

  • Paulo de Bessa Antunes

    é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

9 de julho de 2022, 6h03

Recentemente, três decisões proferidas por cortes constitucionais indicaram caminhos inteiramente opostos para o tratamento das políticas públicas de enfrentamento das mudanças climáticas globais. A (1) Suprema Corte dos Estados Unidos (Scotus) decidiu, dentre outros, o caso West Virginia et al. v. Environmental Protection Agency et al [1] , o (2) Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu a ADPF 708 [2] relativa ao contingenciamento do Fundo do Clima pelo governo federal. Antes a (3) Corte Constitucional da Alemanha decidira que a Alemanha estava obrigada a melhorar o seu desempenho para alcançar as metas de redução de gases de efeito estufa [GEE] constantes dos compromissos internacionais do país e que a lei aprovado em 2019 era insuficiente para zerar as emissões de GEE, em 2050, conforme a meta [3].

A decisão da Scotus é claramente divergente do decidido na Alemanha e no Brasil e um retrocesso na jurisprudência do País. A Política Nacional do Meio Ambiente do Estados Unidos [4] foi uma resposta ao Earth's Day (22/4/1970) [5], uma grande manifestação popular em defesa do meio ambiente que reuniu cerca de 20 milhões de pessoas, à época cerca de 10% da população dos EUA. Em 1990 teve deu início programa federal de avaliação dos impactos das mudanças climática [6]. A reação à regulamentação das emissões de GEE começaram quando o presidente George W. Bush se recusou a endossar o Protocolo de Kyoto, sob o argumento de que as metas eram não realistas e sem bases científicas [7]. A administração Donald Trump anunciou a retirada dos EUA do Acordo de Paris [8].

A questão suscitada em West Virginia et al. v. Environmental Protection Agency et al não se relaciona diretamente com a S.C.U.S. se posicionar contra a regulação da emissão de GEE, mas diz respeito aos poderes da União em um regime federativo e, fortemente, com uma leitura literal da Constituição dos EUA, ficando claro o legado intelectual de Antonin Scalia. Para ele, a "interpretação" da lei (ou da Constituição) pode levar a decisões que mudam constantemente, sendo certo que, no sistema jurídico norte-americano não há qualquer teoria interpretativa válida e que os precedentes, no fundo, são interpretados conforme as conveniências do momento [9].

Em Massachusetts et al. V Environmental Protection Agency et al. 549 US 497 (2007) [10] [11] , o estado de Massachussetts e outros requereram que a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (Usepa, na sigla em inglês) [12] regulasse as emissões de gás carbônico e outros GEE, de veículos novos, sob o argumento de que CAA [13] determinava a obrigação do Congresso regular antecipadamente a emissão de poluentes atmosféricos que pudessem ser razoavelmente considerados perigosos para a saúde e o bem-estar públicos. O requerimento foi indeferido sob o argumento de que o CAA não a autoriza a regular GEE e, mesmo que o fizesse, a sua decisão quanto ao tema era discricionária. A decisão administrativa foi apelada para a Corte de Circuito para o Distrito de Columbia, sendo a decisão mantida.

O caso foi a Scotus. que, por maioria de 5-4, deu ganho de causa para o estado de Massachussetts, sendo a opinião majoritária relatada pelo juiz John Paul Stevens. O voto reconheceu a legitimidade do estado de Massachussetts para processar a Usepa por danos potenciais causados ao território do estado pelo aquecimento global. Também foi rejeitado o surpreendente argumento da Usepa de que o CAA não autoriza a agência a regular as emissões de CO2, pois o gás não se enquadrava no conceito de agente poluidor do ar. Foi decidido que a demora da Usepa em regular a emissão de CO2 era injustificável e se a Usepa desejasse se manter inerte em relação às emissões de carbono, deverão fazê-lo com base em estudos que identificassem o seu papel no contexto das mudanças climáticas. Em outras palavras: não havia discricionariedade.

Em West Virginia a discussão se dá em torno do Plano de Energia Limpa [CPP] [14] estabelecido pela administração Barack Obama com o objetivo de regular as emissões de CO2 por usinas termelétricas já instaladas, movidas a carvão ou gás natural. A Usepa justificou a regulação com base na Seção 111 do CAA 42 U.S.C 7411 (d) [padrões de performance para novas fontes fixas]. Embora os estados sejam responsáveis pelo cumprimento dos padrões de emissão das fontes fixas já instaladas, a USEPA é que determina os limites a serem observados, ao determinar o "melhor sistema de redução de emissões" [BSER]. No Plano de Energia Limpa há a determinação pra que as termelétricas melhorem os seus padrões de emissão e façam a transição para energias renováveis (eólica e solar). As indústrias podem reduzir a produção de eletricidade, construir ou investir em novas plantas de geração ou comprar direitos de emissão, em um esquema cap and trade.

A SCOTUS suspendeu a eficácia do Plano de Energia Limpa que, posteriormente, foi revogado. Em seguida foi instituído o Energia Limpa Barata [ACE], exigindo atualizações de equipamentos e práticas operacionais das usinas. A Corte de circuito do Distrito de Columbia decidiu que a Usepa havia interpretado erroneamente o CAA ao revogá-lo e desconsiderou as normas do ACE.

A Suprema Corte entendeu que a regulação demissões de GEE estava incluída na doutrina das principais questões [major questions doctrine] [15] que confronta diretamente com a doutrina Chevron [16], segundo a qual os tribunais devem ser diferentes com as decisões das agências, salvo quando elas são "arbitrary and capricious", com abuso do poder discricionário.

Segundo a decisão de West Virginia, o Congresso não outorgou à Usepa autoridade para, com base no Plano de Energia Limpa, modificar o mix energético dos EUA, sem uma clara determinação congressual. E, ainda segundo a decisão da Suprema Corte, o Congresso, por diversas vezes já se manifestara contra o sistema de cap and trade para a redução de emissões. A decisão foi tomada por maioria de 6-3, sendo o voto condutor de autoria do juiz Roberts.

A Scotus, claramente, reverteu a sua jurisprudência anterior, formada por escassa maioria e restringiu a interpretação administrativa dos poderes delegados pelo Congresso para as agências; a repercussão sobre o combate às mudanças climáticas globais é imenso, inclusive com reflexos na jurisprudência de outros países. Dificilmente o Congresso dos Estados Unidos — que jamais aprovou qualquer acordo internacional sobre mudanças climáticas — legislará, em futuro próximo, sobre mitigação das mudanças climáticas e transição energética. As metas dos EUA no Acordo de Paris, aparentemente, serão fortemente comprometidas pela decisão de West Virginia,

 


[1] Disponível em https://www.supremecourt.gov/opinions/slipopinion/21. acesso em 5/7/2022

[2] Por maioria, o STF proibiu o contingenciamento das receitas que integram o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) e determinou ao governo federal que adote as providências necessárias ao seu funcionamento, com a consequente destinação de recursos. O STF reconheceu, ainda, a omissão da União devido à não alocação integral das verbas do fundo referentes ao ano de 2019.

[4] Disponível em https://www.epa.gov/history/origins-epa acesso em 5/7/2022

[5] Disponível em https://www.earthday.org/history/ acesso em 5/7/2022

[9] SCALIA, Antonin. Common-Law Courts in a Civil-Law System: The Role of United States Federal Courts in Interpreting the Constitution and Laws. Disponível em https://masonlec.org/site/files/2012/05/Rao_Scalia-essay.pdf acesso em 5/7/2022

[10] Disponível em https://www.oyez.org/cases/2006/05-1120 acesso em 5/7/2022

[11] Para uma descrição completa do caso ver: LAZARUS, J. Richard. The rule of five. Cambridge. The Belknap Press of Harvard University Press. 2022

[12] Agência de Proteção Ambiental do Estados Unidos – Environmental Protection Agency

[13] Lei do Ar Limpo – Clean Air Act Disponível em https://www.epa.gov/clean-air-act-overview/clean-air-act-text acesso em 5/7/2022

[15] A "major questions doctrine" sustenta que os tribunais não devem ceder às interpretações jurídicas das agências quando se tratar de questões de "vasta importância econômica ou política". A Suprema Corte justifica essa limitação com a doutrina da não delegação. De acordo com a Suprema Corte, os tribunais devem interpretar questões jurídicas "grandes", não as autoridades administrativas.

Há juristas que sustentam que tal leitura da doutrina da não-delegação, erroneamente, tira as decisões políticas das mãos dos funcionários das agências nomeados por líderes eleitos e coloca as decisões nas mãos de tribunais que não têm responsabilidade política. A doutrina das grandes questões contraria a ideia de que decisões políticas importantes devem ser resolvidas pelo Congresso. Disponível em  https://opencasebook.org/casebooks/1045-public-institutions-administrative-law-cases-materials/resources/4.2.4.1-major-questions-doctrine/. Acesso em 5/7/2022

[16] Disponível em https://www.law.cornell.edu/wex/chevron_deference acesso em 5/7/2022

Autores

  • é professor associado da Universidade Federa do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), membro da Comissão Mundial de Direito Ambiental da IUCN e presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental (Ubaa).

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