Opinião

A aplicação do erro grosseiro na jurisprudência do TCU

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9 de julho de 2022, 15h22

Incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro, a Lei n° 13.655/2018 acrescentou novos dispositivos (artigos 20 a 30) ao Decreto-Lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), com o propósito declarado no seu preâmbulo de conferir maior segurança jurídica nas relações entre Estado e sociedade e eficiência na criação e na aplicação do direito público.

Entre as novidades trazidas pela Lei, destaca-se o enunciado normativo estampado no artigo 28 da Lindb, segundo o qual o "agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro". Há quem entenda que esse dispositivo faz parte do "pacote" legal que veio como resposta ao conhecido "apagão das canetas" [1], um quadro de paralisia e inação administrativa produzido pelos alegados excessos dos órgãos de controle externo. Inaugura-se, assim, um novo regime de responsabilização de agentes públicos, nas esferas administrativa, controladora e judicial.

Nesta oportunidade, a análise apresentada a seguir estará circunscrita ao exercício da função constitucional de controle externo a cargo do Tribunal de Contas da União, como também à jurisprudência até o momento desenvolvida pelo TCU na aplicação do referido dispositivo legal.

Desde a entrada em vigor da Lei 13.655/2018, percebe-se que a avaliação do "erro grosseiro" vem sendo aprofundada cada vez mais nos acórdãos do TCU, com vistas a robustecer as razões de decidir de suas deliberações, reforçando, com isso, a preocupação do tribunal com a necessidade de individualização das condutas dos gestores e demais jurisdicionados no âmbito do processo de apuração de responsabilidades.

Pesquisa ao sistema de jurisprudência do TCU na sua página da internet, no campo "acórdãos", utilizando a palavra-chave "erro adj grosseiro e 13.655/2018" (o uso dos operadores de pesquisa "adj" e "e" permitiu selecionar deliberações que contivessem necessariamente as duas expressões "erro grosseiro" e "13.655/2018" em qualquer parte da deliberação — relatório, voto ou acórdão), retornou com 775 resultados, distribuídos por ano da seguinte forma: 144 julgados proferidos em 2022 (até 20/6/2022); 345 em 2021; 207 em 2020; 65 em 2019 e 14 em 2018. Destarte, não há como negar a crescente importância que o tribunal vem atribuindo à apuração do erro grosseiro no contexto da responsabilização de agentes públicos.

No que se refere ao alcance do conceito jurídico indeterminado contido no termo "erro grosseiro", as decisões parecem se inclinar majoritariamente para a equiparação conceitual com a "culpa grave", isto é, para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, tem-se considerado como erro grosseiro o que resulta de "grave inobservância do dever de cuidado" e zelo com a coisa pública (Acórdão 2391/2018-Plenário, relator: Benjamin Zymler, Acórdão 2.924/2018-Plenário, relator: José Mucio Monteiro, Acórdão 11.762/2018-2ª Câmara, relator: Marcos Bemquerer, e Acórdãos 957/2019, 1.264/2019 e 1.689/2019, todos do Plenário, tendo como relator o ministro Augusto Nardes).

Acerca da incipiente jurisprudência que vem se firmado, merece realce as considerações consignadas no voto que fundamentou o recente Acórdão 2.012/2022 — 2ª Câmara, proferido na sessão de 3/5/2022, mais especificamente na passagem em que o relator, ministro Antônio Anastasia [2], discorre sobre as oscilações de entendimento do Tribunal de Contas quanto ao padrão de comportamento que deveria servir como parâmetro para a caracterização do "erro grosseiro" (ou "culpa grave"), pois, ora o TCU o considera como aquele praticado por gestor público que segue um "padrão médio de diligência" (Acórdão 1.264/2019-Plenário, relator: Augusto Nardes, Acórdão 2.599/2021-Plenário, relator: Bruno Dantas, Acórdãos 10.679/2021-1ª Câmara e 2.592/2021-Plenário, tendo como relator Benjamin Zymler, entres outros), ora se utiliza como referência o erro que pode ser percebido ou evitado por pessoa com nível de diligência "abaixo do normal" ou "aquém do ordinário" (Acórdão 2391/2018-Plenário, relator: Benjamin Zymler, Acórdão 3.327/2019-1ª Câmara, relator: Vital do Rêgo e Acórdão 4.447/2020-2ª Câmara, relator: Aroldo Cedraz).

Posta a divergência, segundo o ministro Antônio Anastasia, o correto seria considerar "o erro grosseiro como culpa grave, mas mantendo o referencial do homem médio", ou seja, aquele que age com nível de diligência normal ou ordinário. Decerto que tal interpretação é que melhor se coaduna com o princípio fundamental da boa administração pública, eis que não seria razoável nem coerente exigir do agente público, por um lado, uma atuação de forma "diligente e eficiente” (isso só para ficar no § 8º do Decreto n. 9.830/2019 — que regulamentou a Lei n° 13.655/2018 [3]) e, por outro, admitir que ele somente venha a ser responsabilizado por um dano que causou ao erário quandoo erro que lhe é atribuído puder ser percebido por pessoa com nível de atenção "aquém do ordinário". Se tal lógica fosse acatada, não haveria correspondência na relação entre deveres e responsabilidades. Explica-se.

Se for possível imaginar abstratamente que qualquer outro gestor, exposto às mesmas circunstâncias, mas que empregasseum nível normalde diligência no seu trabalho, não cometeria a falha que o gestor do mundo real incorreu, significa dizer, portanto, que este agente deixou de adotar um dever de cuidado objetivo que se esperaria da média de seus pares, o que não pode ser encarado como um erro desculpável, nos termos do artigo 138 do Código Civil [4].

Dessa forma, a falta de responsabilização por um erro inescusável redundaria em aceitar uma métrica de reprovabilidade de condutas que apenas alcançaria aqueles que estivessem abaixo dos "minimamente diligentes". É dizer, a adoção do parâmetro "aquém do gestor médio" acabaria por criar uma faixa de isenção de responsabilidade para os que erram abaixo da média do aceitável, para os gestores medianamente diligentes, quando sujeitos a idênticos fatores externos, mas que não chegam a cometer falhas que poderiam ser percebidas ou evitadas por quem age com grau mínimo de atenção, ou seja, com um nível de diligência "aquém do ordinário", mas o suficiente para não configurar, nesta hipótese, o erro grosseiro.

Dito de outro modo, a valer tal compreensão, o "sarrafo" seria reduzido ao ponto em que apenas os gestores altamente desidiosos no trato coisa pública responderiam pelas consequências de seus atos e obviamente aqueles que agissem com dolo ou má-fé.

Conquanto seja uma exegese defensável para o artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, fato é que o princípio constitucional de eficiência na gestão pública não poderia albergar um regime de responsabilização de agentes públicos que fosse condescendente com a aceitação de níveis de diligência "abaixo da média" no exercício de funções administrativas. Balizar o nível de atenção que deve ser exigido daqueles que tutelam o interesse de coletividade pelo que é minimamente aceitável seria, por via oblíqua, também se conformar com um padrão de serviços públicos minimamente eficiente, ou com uma administração pública minimamente transparente ou minimamente honesta, enfim, referências de desempenho que não condizem com a exigência de geração de valores públicos que hoje a sociedade reclama dos serviços e servidores estatais.

Muito embora o critério do administrador médio, para fins de responsabilização perante o TCU, já tenha sido taxado como algo "esdrúxulo" e "pitoresco" pela doutrina menos avisada, não é demais frisar que a aferição da ocorrência de culpa por meio da comparação entre a conduta do agente e a de um modelo abstrato de comportamento remonta à noção do homem médio do direito romano (bonus pater familias), a qual corresponde, nas famílias anglo-saxãs, ao reasonable man [5].

Trata-se, a rigor, da chamada culpa normativa, na qual se devem abstrair os aspectos psicológicos, avaliando-se a conduta do agente conforme o comportamento que dele se espera frente à norma prescrita pela regra legal ou princípio aplicáveis, a fim de verificar se ele atravessou a fronteira da tolerabilidade ao erro, com caracterização culpa grave, se a resposta for positiva, e consequente responsabilização pessoal do agente. No entanto, é importante que se diga com todas as letras que o administrador médio não representa a idealização de um "administrador Hércules", ou seja, aquele agente público infalível e que sempre faz as melhores escolhas independentemente das circunstâncias do caso concreto.

Em muitos casos, o gestor público é instado a tomar decisões, premido pela urgência do problema que enfrenta ou sob condições adversas, envolvendo matérias complexas ou ambientes de riscos e incertezas em que a possibilidade de errar pode ser inevitável, ainda que procure agir com nível de diligência normal e compatível com as circunstâncias que se apresentam na realidade. Daí porque que a utilização do referencial do administrador médio pressupõe a observância de um espaço de tolerabilidade ao erro em que o desencontro formal da conduta com a regra legal não conduzirá necessariamente à responsabilização pessoal do agente público, conforme demonstrem as dificuldades práticas de cada situação e que obviamente devem ser sopesadas pela instância controladora (artigo 22 da Lindb).

Ao que tudo indica, a jurisprudência do tribunal tende a convergir para o referencial do homem médio como parâmetro de aferição do erro grosseiro a que alude o artigo 28 da Lindb, nos termos do que consta do voto que conduziu ao Acórdão 2.012/2022 – 2ª Câmara (relator: ministro Antônio Anastasia).

Desse modo, existe o reconhecimento de que há certos erros, de menor gravidade, que precisam ser tolerados porque não parece razoável exigir do gestor sempre um nível de atenção extraordinário no desempenho de suas funções. Por outro lado, não se poderia aceitar que apenas as falhas gritantes e absurdas, marcadas pelo total desprezo no trato da coisa pública, sejam objeto de apuração de responsabilidade, pois isso não se coadunaria com o dever de eficiência que orienta toda a administração pública.

Assim, entre os níveis extraordinário e mínimo de diligência, para efeito de configuração do erro grosseiro, parece que o TCU tem se inclinado pelo meio-termo (ou nível médio), no qual a responsabilização terá lugar quando a conduta do administrador público afronta o dever de cuidado objetivo que dele se esperava, de acordo com a regra legal ou princípio aplicáveis, considerando as circunstâncias externas do caso concreto, tendo em mira sempre que a "régua" do nível normal (médio ou mediano) de diligência esperado pode oscilar de acordo com os obstáculos e dificuldades reais que se apresentavam à época da prática do ato impugnado.

 


[1] Nas palavras de Floriano de Azevedo Marques Neto e Rafael Véras de Fritas, o dispositivo legal funcionaria como um antídoto ao "apagão das canetas" (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. A Lindb e o regime jurídico para o administrador honesto. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, maio 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-25/opiniao-lindb-regime-juridicoadministrador-honesto).

[2] O anteprojeto que culminou com a aprovação da Lei n° 13.655/2018 foi apresentado pelo então Senador Antônio Anastasia (hoje ministro do TCU), em 9/6/2015, cujo texto original incorporou proposta dos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto decorrente de estudos e pesquisas desenvolvidos no âmbito da Sociedade Brasileira de Direito Público — SBDP em parceria com a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (PLS 349/2015).

[3] Art. 12. O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções. (…)

§ 8º. O disposto neste artigo não exime o agente público de atuar de forma diligente e eficiente no cumprimento dos seus deveres constitucionais e legais.

[4] De acordo com o artigo 138 do Código Civil é desculpável ou escusável o erro "que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio". Por conseguinte, apenas poderá ser tolerado o erro grave o bastante para fazer com que qualquer pessoa com um nível médio de atenção também seja capaz de cometê-lo.

[5] BANDEIRA, Paula Greco. A Evolução do Conceito de Culpa e o Artigo 944 do Código Civil. Revista da Emerj, v. 11, nº 42, 2008.

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