Opinião

A fragilidade das democracias formais

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

7 de julho de 2022, 6h09

Cada vez um maior número de estudiosos vem, com frequência, escrevendo sobre uma pretensa (e desafiadora) "ameaça à democracia" pela chegada ao poder, através de um processo eleitoral legítimo (e, presumivelmente, democrático), pelas urnas, de candidatos (supostamente) qualificados pela alcunha de "populistas".

Essa afirmativa, longe de ser completamente falsa, encontra-se, entretanto, contaminada por uma perigosa simplificação e, igualmente, por um inaceitável reducionismo analítico.

"Foi-se o tempo em que as democracias só tombavam sob a mira de tanques e baionetas. No século passado, golpes clássicos derrubaram governos eleitos em quase toda a América Latina. Agora a ameaça não depende mais do uso da força. 'O retrocesso democrático hoje começa nas urnas', afirmam os cientistas políticos STEVEN LEVITSKY e DANIEL ZIBLATT em sua obra 'Como as Democracias Morrem'.
Os professores de Harvard mostram como líderes eleitos podem conduzir seus países ao autoritarismo (…)

'Demagogos extremistas surgem de tempos em tempos em todas as sociedades, mesmo em democracias (supostamente) saudáveis', escrevem os autores. O desafio, dizem, é evitar que eles explorem os sentimentos de ódio e ressentimento para chegar ao poder (…)
Num recuo na história, os autores lembram que HITLER e MUSSOLINI também chegaram ao poder sem apelar à força. Na Alemanha dos anos 30, líderes experientes pensaram que poderiam domar o chefe do Partido Nazista, um populista de discurso radical. Num ambiente de revolta contra a política tradicional, ele encantava multidões com um penteado exótico e a promessa de restaurar a ordem e combater o comunismo." (BERNARDO MELLO FRANCO; Ameaça à Democracia, O Globo, 30/9/2018, p. 3)

Destarte, o evidente equívoco da assertiva encontra-se, sobretudo, na superficialidade de suas conclusões e na baixa densidade cognitiva de sua concepção analítica: a uma, porque ostenta uma desarrazoada pretensão de buscar convencer os menos avisados que, ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-18) e, particularmente, nas décadas de 20 e 30 da centúria passada, a Alemanha e a Itália se constituíam em autênticos regimes democráticos (e que, a partir desta falsa premissa, se tornaram regimes totalitários), e, a duas, — e de forma muito mais gravosa —, que nações subdesenvolvidas ou, no mínimo, em vias de desenvolvimento, que se apresentam, na atualidade, apenas travestidas com uma roupagem de "democracia aparente", estão, por meio de um processo de "implosão", se transformando gradativamente em regimes autoritários, ou até mesmo (por evidente exagero) totalitários.

Muito distante de uma verdade absoluta, contudo, é fato que as democracias que se encontram verdadeiramente ameaçadas (ou as que supostamente sucumbiram no passado remoto ou, mesmo, próximo) não eram, em sua essência, autênticas democracias "materiais" ou "substanciais"; constituíam-se (ou constituem-se, em relação às presentes que se encontram sob risco de implosão), ao arrepio dos valores fundamentais que caracterizam uma genuína democracia (respeito à dignidade humana, em seu mais amplo sentido; ausência ou, no mínimo, baixos índices de corrupção, sobretudo os institucionalizados nos organismos estatais; presença de legitimidade representativa dos verdadeiros anseios do titular do poder político, ou seja, o povo; etc) apenas e tão somente no que, convencionalmente, a doutrina mais abalizada sobre o tema tem denominado de "democracias formais", "democracias de fachada" ou "democracias líquidas" [1], que são regimes políticos típicos dos chamados "Estados Subdesenvolvidos", "Estados em Vias de Desenvolvimento" e, excepcionalmente, até mesmo dos denominados "Estados Falidos".

Dessarte, não há propriamente, via de regra (e, portanto, apenas com raríssimas exceções e, ainda assim, pontuais), uma verdadeira (e imediata) ameaça às "democracias maduras", que, — instaladas em países reputados, necessariamente, "desenvolvidos" —, nesta qualidade, se tornam absolutamente incompatíveis com regimes autoritários de todas as naturezas, não obstante algumas situações muito específicas, como o final do governo Donald Trump — 2017/21, ocasião em que a estabilidade das instituições (característica das democracias consolidadas) rapidamente extinguiu os arroubos supostamente antidemocráticos.

Vale, por efeito conclusivo, uma análise mais criteriosa e, sobretudo, aprofundada sobre o assunto vertente, sem deixarmos de lado as inerentes complexidades que podem, invariavelmente, conduzir alguns analistas providos de menor densidade intelectual a conclusões, no mínimo, passíveis de enfáticas críticas.

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Nota Complementar:

1. Democracias Líquidas
A pseudodemocracia brasileira, alternativamente muito bem rotulada como democracia líquida, democracia de fachada ou mesmo democracia meramente formalizante — a exemplo de tantas outras latino-americanas —, também se caracteriza (em maior ou menor grau) pelo absoluto descompasso entre o direito formal, descrito, por vezes até de modo extenuante, nas inúmeras leis, consolidações, códigos e na própria Constituição, e o direito substancial (real e verdadeiro), efetivamente aplicado pelo Estado e, igualmente, entre os particulares, em suas relações privadas.

Uma das maiores provas desse inconteste fato é facilmente constatada no reconhecido distanciamento entre os Princípios Gerais do Direito (expostos, através de formidáveis teorias, na legislação vertente) e a aplicação cotidiana dos mesmos.

Por exemplo, afirma-se (descritivamente), com extrema veemência, em todos os textos legais (sem qualquer exceção), a máxima segundo a qual "todos são inocentes até que se prove a sua correspondente culpa". Todavia, na vida real brasileira — com especial destaque —, opera-se justamente o oposto: "todos são presumivelmente culpados até que cada um possa comprovar, de modo inequívoco, a sua inocência".

Essa assertiva é tão genuína que o próprio Ministério Público, muitas vezes de forma até mesmo induzida ou inconsciente, acredita que, se o réu não consegue provar sua inocência, resta evidente que ele é culpado.

O próprio cidadão, bastante comumente (e por inequívoco vício cultural), atribui a prolação de uma sentença de absolvição, por falta de provas, como uma inconteste comprovação de incompetência dos órgãos investigativos e acusatórios que, no escopo deste contexto analítico, não souberam comprovar a evidente culpa do réu, posto que, para o senso comum, praticamente não existem inocentes. Neste sentido, resta sempre conclusivo para o conjunto da sociedade (em sua maioria) que todos são corruptos e os poucos inocentes (que, excepcionalmente, existem) o são apenas e tão somente pela correspondente falta de oportunidade de não terem se corrompido.

E não se trata aqui de uma simples aplicação, invertida, do princípio epigrafado (reputado universal no mundo democrático) por parte tão somente do Estado, considerando que, mesmo em relações estritamente privadas (ou naquelas em que envolvem o cidadão e agentes públicos), a simples "palavra" do indivíduo brasileiro é absolutamente irrelevante, em função da imperiosa necessidade de apresentação de provas documentais, com o correspondente reconhecimento de firma (e todos os demais tipos de burocracias cartorárias redundantes) para que se possa, muitas vezes, apenas e tão somente, comprovar que o nome que você afirma ter é, de fato, o seu nome verdadeiro. Não é, portanto, sem razão que a falsificação, a corrupção e tantos outros métodos reativos à esta realidade se apresentam com grande constância (e mesmo veemência), considerando que, em muitos casos, é muito mais fácil apresentar um documento falsificado (que cumpre com mais rigor e precisão os regulamentos formais, aparentando, por consequência, ser dotada de maior credibilidade) do que um documento verdadeiro e oficial que muitas vezes, aos olhos da autoridade ou mesmo dos particulares, simula não ostentar a verdade retratada. Destarte, a aparência (e particularmente o excessivo formalismo cartorário) representa, para a cultura brasileira, algo (supreendentemente) muito mais importante do que a substância material e a verdade real.

Em várias situações cotidianas, o burocrata verde e amarelo prefere — mesmo reconhecendo não se tratar de algo verdadeiro e crível — o documento que se apresenta dotado de todos os requisitos a que ele está obrigado a exigir, do que seu correspondente original, mesmo que este venha a simplesmente comprovar uma pseudoverdade, posto que a forma é, no Brasil (de forma singular), muito mais importante que a substância.

Nessa toada, forçoso concluir que o servidor público, de modo geral (até por imposição cultural), não está (sinceramente) preocupado (e os brasileiros de modo geral também não estão) com a verdade real e sim (e, muito particularmente) com o cumprimento rigoroso dos inúmeros (e muitas vezes desconexos e ilógicos) regulamentos normativos, como se não entendesse que as leis (em regra) são constituídas para serem interpretadas dentro de seu contexto finalístico e não na literalidade estrita de seus comandos, edificando (e constantemente reafirmando), desta feita, a concepção organicista segundo a qual todos os cidadãos nacionais são pessoas completamente desprovidas de um mínimo de inteligência racional e, portanto, necessitam (em qualquer circunstância e de modo permanente) da tutela estatal.

Autores

  • é desembargador federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

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