Controvérsias jurídicas

Contemporaneidade e prisão preventiva

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

7 de julho de 2022, 12h19

"Nenhum homem pode ser preso ou privado de sua propriedade a não ser pelo julgamento de seus pares ou pela lei da terra." Essa era a expressão clássica trazida pela Magna Carta de 1215 (King John Lackland), que transformou o então conhecido "by the law of the land" (segundo a lei da terra) em "due process of law" (devido processo legal).

A Constituição Federal de 1988, fundada sob a égide do Estado democrático de Direito e do respeito à dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, III), elencou no rol de seus direitos e garantias fundamentais expressão similar ao dizer que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (CF, artigo 5º, LIV). Nesse mesmo sentido, consagrou o princípio da presunção (ou estado) de inocência, dispondo no art. 5º. LVII que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Têm-se, portanto, a liberdade como regra e a prisão cautelar como a exceção.

A Carta Constitucional vigente, diferentemente da Constituição anterior, de cunho autoritário e outorgada, estabeleceu, logo em seu início, extenso rol de garantias individuais como forma de contenção do arbítrio do poder estatal, ciente de que as instituições públicas são dirigidas por pessoas sujeitas a todo tipo de falibilidades, próprias da natureza humana. Buscou, assim, proteger o cidadão, assegurando a todo acusado ampla defesa e contraditório (CF, artigo 5º, LV), proibição de juízos ou tribunais de exceção (CF, artigo 5º, XXXVII), direito de ser julgado pelo juiz natural da causa (CF, artigo 5º, LI), bem como uma série de garantias ao preso, como a comunicação imediata de sua prisão ao juiz competente e à sua família ou pessoa por ele indicada (artigo 5º, LXII); a informação de seus direitos, dentre os quais o de permanecer em silêncio[1], sendo assegurada a assistência da família e de um advogado (artigo 5º, LXIII); a identificação dos responsáveis pela sua prisão ou interrogatório policial (artigo 5º, LXIV) e o relaxamento da prisão ilegal pela autoridade judiciária (artigo 5º, LXV).

Para que seja possível o rompimento do estado de liberdade do indivíduo, o Estado transferiu aos órgãos legais de investigação, acusação e julgamento o ônus de comprovar a culpabilidade do réu. Tendo em vista seu estado de inocência, até o advento de sentença condenatória irrecorrível não poderá sofrer qualquer limitação no direito de ir e vir, salvo situação de extrema urgência e necessidade.

Não são raras, porém, as vezes em que, no período entre a investigação e a sentença condenatória, existam circunstâncias que comprometam a tutela jurisdicional, colocando em risco a utilidade e eficácia da decisão final. Nesses casos, admitem-se medidas cautelares em caráter excepcional, dada a necessidade imediata de assegurar que o processo atinja seus fins, sem riscos à produção da prova, execução da pena futura ou à paz social. A urgência, a imprescindibilidade e o caráter instrumental das providências antecipatórias são imprescindíveis para sua regularidade, não se admitindo que a prisão do acusado durante o processo configure antecipação de pena ou humilhação por motivo de vingança social.[2] Das medidas que cerceiam as liberdades ambulatoriais do indivíduo, prevê o ordenamento jurídico pátrio a prisão temporária (Lei nº 7.960/89); prisão em flagrante (CPP, artigos 302 e 303); prisão preventiva (CPP, artigos 312 e 313) e a prisão domiciliar (CPP, artigo 317).

No que tange especificamente à prisão preventiva, para que fique caracterizada a cautelaridade deverá estar ancorada sob os elementos do fumus comissi delicti, consistente na demonstração de elementos mínimos de existência do crime e indícios de autoria; e do periculum libertatis, sustentado no risco do acusado, em liberdade, corromper a ordem pública ou econômica, causar inconveniente durante a instrução criminal ou impedir a aplicação da lei penal (CPP, artigo 312).

Por mitigar um dos bens mais valiosos do cidadão, a liberdade, assim como sua honra e decoro, quaisquer das prisões cautelares deverá, por imposição legal e constitucional, ser a última opção para o julgador (ultima ratio). Foi por esse motivo, que a legislação é expressa ao dizer que somente será decretada a prisão preventiva, quando não for cabível qualquer das várias medidas cautelares alternativas à prisão contidas nos artigos 319 e 320 do Código de Processo Penal, revelando, assim, de modo incontroverso, seu caráter subsidiário.[3] Esse, inclusive, já era o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal:

"1. A prisão cautelar é medida de ultima ratio (Inq. 3.842 AgR-segundo-AgR, Min. Dias Toffoli; HC 183.653 AgR, Min. Roberto Barroso; Rcl 41.387 ED-AgR, Min. Ricardo Lewandowski), sobretudo quando medida cautelar diversa é suficiente para afastar eventual perigo gerado pelo estado de liberdade. 2. A imposição de medida alternativa à prisão revela-se suficiente e adequada à contenção do perigo associado ao estado de liberdade, sobretudo quando presentes elementos autorizadores da substituição da prisão preventiva (…)."[4]

Em sintonia com a já consagrada doutrina e consolidada jurisprudência, e em perfeita obediência à CF, recente reforma processual trazida pela Lei nº 13.964/19 adicionou ao artigo 312 do CPP os §§ 1º e 2º. O primeiro reforça o caráter subsidiário da prisão preventiva, a qual será decretada em caso de descumprimento de medida cautelar alternativa, sempre a primeira opção acautelatória; o segundo torna ainda mais evidente a necessidade de fundamentação da decisão em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que a justifique. Estatuiu o novo § 2º, o "Princípio da Atualidade do Perigo", no qual o fundamento para a decretação da prisão repousa na atualidade do periculum libertatis.

Sendo elemento fundante da cautelaridade da medida, o risco gerado pela liberdade do acusado não poderá ser passado, tampouco futuro. Tutelará, portanto, uma situação fática atual, que reverbera no momento presente, mesmo que o delito em si tenha sido cometido tempos atrás. [5] Eis o entendimento da Suprema Corte:

"(…) 6. A contemporaneidade diz respeito aos motivos ensejadores da prisão preventiva e não ao momento da prática supostamente criminosa em si, ou seja, é desimportante que o fato ilícito tenha sido praticado há lapso temporal longínquo, sendo necessária, no entanto, a efetiva demonstração de que, mesmo com o transcurso de tal período, continuam presentes os requisitos (i) do risco à ordem pública ou (ii) à ordem econômica, (iii) da conveniência da instrução ou, ainda, (iv) da necessidade de assegurar a aplicação da lei penal (…)”[6].

O objetivo da inovação legislativa foi evitar que as decretações de prisões preventivas fossem justificadas por fatos pretéritos muito antigos, mesmo que de natureza grave. Em caso de agressão a relevante bem jurídico e preenchidos os requisitos legais, o juiz poderá decretar a medida de pronto, mas desde que haja real necessidade, não sendo razoável que o indivíduo seja cautelarmente cerceado de sua liberdade em virtude de investigação de crime ocorrido há meses, ou até anos, passados. Nesse sentido:

"2. A falta de contemporaneidade, relativamente aos delitos dos arts. 343 e 344, ambos do CP imputados ao agravado, que remontam ao ano de 2016, não justifica a prisão preventiva decretada em 31/1/2019, por não atender ao requisito essencial da cautelaridade. 3. Mostra-se suficiente a imposição de medida cautelar diversa de não se aproximar o réu de testemunhas que irão depor em ação penal, o que resguarda o curso do processo criminal."[7]

Não se justifica o deferimento da medida se os motivos determinantes do delito não mais subsistirem. Essa, inclusive, foi uma das fundamentações trazidas pelo desembargador federal Ney Bello na concessão de Habeas Corpus contra prisão decretada pela 15ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Distrito Federal: "(…) Por derradeiro, verifico que além de ora paciente não integrar mais os quadros da Administração Pública Federal, há ausência de contemporaneidade entre os fatos investigados — liberação de verbas oficiais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e do Ministério da Educação direcionadas ao atendimento de interesses privados — supostamente cometidos no começo deste ano, razão pela qual entendo ser despicienda a prisão cautelar combatida".[8]"Assim, deve prevalecer a regra geral relativa à privação da liberdade pessoal com finalidade processual, segundo a qual o alcance do resultado se dá com o menor dano possível aos direitos individuais, sobretudo quando há expressa referência a inúmeras outras medidas de natureza cautelar, que podem ser decretadas pelo juízo da causa em proveito das investigações. Demais, a liberdade provisória constitui um benefício cujo orientador está insculpido no inciso LXVI do artigo 5º, da Constituição da República: ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança."

Mesmo antes da sentença condenatória transitada em julgado, pode ser decretada a prisão cautelar, mas somente quando não houver outro meio de proteger o processo, de garantir sua eficácia final ou defender a sociedade de agressões iminentes e desde que haja contemporaneidade. Sem tais pressupostos, a antecipação da privação da liberdade será ilegal e desnecessária.


[1] CAPEZ, Fernando. Aqui.

[2] FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional, 6ª edição, São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 279.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão, medidas cautelares e liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2022, p. 21.

[4] STF, HC 188.727 AgR-segundo, 2ª Turma, Relator: Min. Nunes Marques, j. 31/11/2021.

[5] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal, 18ª edição. São Paulo. Ed. SaraivaJur. 2021, p. 706.

[6] STF, HC 192519 AgR-segundo, Relator (a): Min. Rosa Weber, 1ª Turma, j. 15/12/2020, p. 10/02/2021.

[7] STJ, REsp 1.852.115-GO, 6ª Turma. Relator: Min. Nefi Cordeiro, j. 18/02/2020.

[8] TRF – 1ª Região, HC 1021548-30.2022.4.01.0000. Desembargador Federal Ney Bello, j. 23/06/2022.

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