Opinião

A exposição da intimidade como vingança

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6 de julho de 2022, 9h09

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares

Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

(trecho de "Poemas aos homens do nosso tempo – VIII", de Hilda Hilst)

A Constituição de 1988, no título "Dos direitos e garantias fundamentais", em seu artigo 5º, X, proclama que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

A internet passa a ser partilhada por cada vez mais pessoas a partir dos anos 1990 e uma das infrações oportunizadas pelo mundo digital, a revenge porn ou pornografia de vingança, atinge diretamente tais bens constitucionalmente protegidos.

Esse novo fato é uma modalidade de cyberbulling e, no Brasil, foi incluído no Código Penal (CP) pela Lei nº 13.718/2018:

"Art. 218-C.  Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave."

As previsões do artigo 218-C, caput, têm aplicação, por exemplo, àquele que repassa tais imagens ou registros. Porém, para que fique caracterizada a pornografia de revanche, esse dispositivo legal deve ser conjugado com a causa de aumento prevista em seguida, que é:

"§ 1º. A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação."

Logo, com a majorante, a pena da pornografia de vingança pode chegar a oito anos e quatro meses de prisão.

Note-se que para a configuração desse crime não é necessário que o autor do fato e a vítima tenham coabitado, pois o requisito legal é "relação íntima de afeto", presente ou pretérita, entre eles. No entanto, se a vítima for menor de 18 anos, aplicam-se as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente, que estão em seus artigos 240 a 241-E. Quanto ao sujeito passivo desse delito, pode ser qualquer pessoa, mas os levantamentos mostram que quase sempre são mulheres.

Como há poucos estudos disponíveis, até mesmo porque a lei que criou a figura penal é recente, comecemos com dados sobre o crime de divulgação de cena de estupro (artigo 281-C, caput, do CP), retirados do Dossiê Mulher (ISP, 2021) e que têm por objeto o estado do Rio de Janeiro tomando por base o ano de 2020: 88,5% das vítimas eram mulheres.

Quanto à pornografia de vingança propriamente dita (artigo 281-C, caput e §1º do CP), a ONG SaferNet Brasil, que atua no combate à violação de direitos humanos na internet, apurou que 81% das vítimas desse delito eram mulheres, 16% eram homens e 3% não quiseram se identificar. Matéria publicada no jornal capixaba A Gazeta, em 18/10/20, da repórter Glacieri Carraretto, indica que, segundo a Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes Cibernéticos, 80% das vítimas da mencionada infração penal no Espírito Santo eram mulheres.

Vejamos números de outros países. A ONG Cyber Civil Rights Initiative, em publicação de 2014, assinala que, nos EUA, 90% das vítimas de pornografia não consensual eram mulheres. Estudo da University of Exeter, na Inglaterra, realizado em 2019, aponta que a maioria das pessoas que pediram ajuda ao The Revenge Porn Helpline e ao The Professionals Online Safety Helpline (73%) também eram mulheres.

A estatística apresentada ratifica que as mulheres são um grupo vulnerável. Logo, mais um crime no rol daqueles relacionados à violência de gênero. E ainda: atrai a aplicação da Lei Maria da Penha porque seu artigo 5º dispõe que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão que lhe cause sofrimento psicológico, que é exatamente a hipótese.

Além disso, a Lei nº 13.772/2018, conhecida como Lei Rose Leonel (ou, ainda, Lei Maria da Penha Virtual), alterou o art. 7º, II, da Lei Maria da Penha para incluir no conceito de violência doméstica condutas que importem violação da intimidade.

Registre-se que a Lei Maria da Penha, em seu art. 22, autoriza o juiz a aplicar diversas medidas protetivas de urgência em favor da vítima de violência doméstica e familiar. No entanto, no caso da pornografia de revanche, aquelas providências previstas nos incisos não costumam ter utilidade. Mas a lei, logo em seguida, oferece alternativa:

"§ 1º. As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público."

Portanto, a lei possibilita, por exemplo, a aplicação de multa ao infrator, ferramenta de coerção que pode se apresentar adequada para coibir a continuidade ou repetição da porn revenge.

Temos, assim, diversos instrumentos legais disponíveis para lidar com esse fato agora tipificado na lei penal, merecendo referência, ainda, a Lei nº 12.965/2014 (Lei do Marco Civil da Internet), que consagra a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, bem como reafirma o direito da vítima à indenização:

"Art. 7º — O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;"

A Lei do Marco Civil traz também importante previsão a respeito da guarda de registros de acesso e aplicações de internet, dispondo sobre o alcance da ordem judicial e também sobre as ações que autoridades podem tomar perante os provedores:

"Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.
§ 1º. Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores de aplicações de internet que não estão sujeitos ao disposto no caput a guardarem registros de acesso a aplicações de internet, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado.
§ 2º. A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 13.
§ 3º. Em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser precedida de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo.
§ 4º. Na aplicação de sanções pelo descumprimento ao disposto neste artigo, serão considerados a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do infrator e a reincidência."

O arcabouço jurídico hoje existente para se lidar com a pornografia de vingança, fruto de um aperfeiçoamento legislativo constante, afigura-se bastante razoável. Mas não basta existir a lei. É fundamental que a polícia judiciária esteja devidamente aparelhada para acompanhar a evolução desses novos e desafiantes fatos, ao que se destaca que as delegacias especializadas em repressão aos crimes cibernéticos têm desempenhado importante papel, possuindo capacidade técnica de desvendar a origem de imagens ou registros lançados no mundo virtual, chegando, assim, aos autores desses delitos, o que inclui tanto o originador da postagem com o objetivo de vingança ou humilhação (artigo 281-C, caput e §1º do CP), quanto aqueles que se prestam a difundi-la (artigo 281-C, caput, do CP).

A polícia, em muitos casos, é acionada por dois canais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Um deles é o Ligue 180, que recebe, analisa e encaminha denúncias de violações contra a mulher, podendo ser acessado por telefone ou e-mail. O outro é o Disque 100, que recebe, analisa e encaminha denúncias de violações de direitos humanos. Como consta do respectivo site, é um “pronto socorro” dos direitos humanos, atendendo inclusive a situações que acabaram de acontecer ou que estejam ainda em curso. Ambas hotlines funcionam ininterruptamente e podem ser contatadas pelas vítimas ou qualquer outra pessoa.

A pornografia de vingança existe, atinge principalmente as mulheres e, apesar dos instrumentos hoje disponíveis, eventual condenação do criminoso, por maior que seja a pena, não apaga os danos causados, além da forte possibilidade de o material vazado, em razão das replicações na rede, jamais vir a ser excluído, a agravar as consequências do delito, com consequências psicológicas duradouras para a vítima, sujeita, ainda, à estigmatização.

Portanto, usemos as novas ferramentas tecnológicas, mas cientes de que sempre haverá riscos e que, no caso da pornografia de vingança, a precaução será sempre a melhor providência.

Às mulheres, por integrarem o grupo mais exposto, fica a dica do que já existe em seu favor, sabedoras de que têm abertas as portas da delegacia especializada na repressão desse crime, da delegacia de atendimento à mulher (Deam) e, onde não as houver, a delegacia de polícia mais próxima, além do Ligue 180 e do Disque 100.

Aos potenciais infratores, a reflexão da poeta, lucidez, para que se deem conta de que se trata de conduta execrável e não a pratiquem. Do contrário e diante da perspectiva de serem identificados, sujeitam-se ao rigor da legislação penal, que agora é mais gravosa, sem prejuízo da responsabilidade civil expressamente prevista na lei e na Constituição.

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