Opinião

O papel do STF na efetivação de direitos fundamentais na Amazônia

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6 de julho de 2022, 15h08

A Amazônia dispõe de uma importância ímpar no cenário geopolítico mundial. Analisando por uma perspectiva macro, a floresta amazônica apresenta uma grande variedade de fauna e flora, sendo um terreno propício para a realização de pesquisas científicas e desenvolvimento de novas tecnologias. Considerando seu status de maior floresta tropical e equatorial do mundo — já chamada por especialistas como o "pulmão do mundo" —, a floresta abriga o rio Amazonas, que é a maior bacia hidrográfica do planeta, e dispõe de significativa influência geoclimática global, atuando como órgão regulador do clima.

Analisando o território por uma lente nacional micro, porém, a implementação de uma agenda ambientalista permissiva ganha especial destaque no âmbito jurídico-decisório, na medida que o reservatório natural de madeira e as reservas minerais existentes na região atraem a atenção dos agentes econômicos do agronegócio, gerando conflitos diretos com as populações indígenas locais. Cada vez mais, diante da implementação de um projeto político liberal que coloca em xeque a segurança da população local e a manutenção da floresta amazônica, o Judiciário é chamado a exercer sua influência no sistema de freios e contrapesos. Mas a questão é: quais são os reais limites dessa atuação?

O artigo 225 da CF/88 explicita o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo ao poder público o dever constitucional de preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Esse dever implica, pois, a observância de uma dupla dimensão protetiva: (1) a obrigação do Estado de não promover a degradação ambiental e (2) a obrigação de garantir, por meio de sua atuação efetiva, a recuperação das áreas já degradadas. Algumas medidas possíveis ao exercício dessa prerrogativa estão especificadas no parágrafo único do artigo 225 da CF/88, que reproduzem justamente a necessidade de uma atuação positiva do Estado para com a proteção do meio ambiente.

Foi justamente nesse sentido que foi promulgada a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), de modo a conceber uma resposta (tardia) aos problemas trazidos pela agenda desenvolvimentista brasileira. Neste ponto, a ideia de um desenvolvimento sustentável situa-se na esteira do conflito de interesses existente entre a agenda política de Jair Bolsonaro e as necessárias restrições ambientais estabelecidas pelo Judiciário à sua implementação. No âmbito das relações internacionais, tal questão desloca-se em uma perspectiva de embate entre países em desenvolvimento preocupados com o crescimento econômico e outros países alinhados a uma concepção ambientalista mais restritiva.

Não há, até o presente momento, um arcabouço normativo eficaz em enquadrar a destruição florestal promovida pelo governo Bolsonaro na seara penal internacional [1], haja vista a dificuldade textual e procedimental de enquadramento das práticas ambientais destrutivas ao instrumental jurídico vigente. No entanto, há, ainda assim, um compromisso coletivo dos países no sentido de proteção do meio ambiente que se desdobra em uma seara normativa interdisciplinar [2], a qual corrobora o dever constitucional de sua preservação para as gerações futuras.

Em âmbito nacional, a questão que se coloca é sobre quais são ou devem ser os objetivos prioritários de uma gestão pública eficiente: a busca pelo crescimento econômico ou a manutenção do meio ambiente. Muito embora a discussão coloque-se de forma clara no papel, a questão, na prática, apresenta-se de forma demasiada confusa, haja vista a aplicação reiterada de conceitos jurídicos indeterminados que não dispõem de diretrizes objetivas à sua implementação no mundo concreto. Ao mesmo passo que o dever constitucional de proteção do meio ambiente é de todos, há grande controvérsia sobre como deve se dar a atuação de cada um dos poderes da República ante a essa obrigação, bem como se poderia o Judiciário interferir nas ações tomadas pelo Executivo.

A resposta para essa indagação é afirmativa, desde que observadas determinadas ressalvas que serão pontuadas. Via de regra a definição da política ambiental consiste em uma iniciativa eminentemente executiva, com vistas no estabelecimento de mecanismos de utilização dos recursos ambientais da forma mais eficiente possível [3]. Tal prerrogativa envolve, cabe pontuar, desde a definição dos usos possíveis dos recursos ambientais até o estabelecimento de políticas setoriais na Amazônia, como a definição de qual deve ser o regime de fiscalização das infrações adotado.

Não obstante, diante do cenário atual de intensa polarização política e implementação de políticas de menor rigor fiscalizatório, a discricionaridade executiva de Bolsonaro tem sido cada vez mais impugnada ao Judiciário para revisão de seus atos administrativos à luz do princípio do desenvolvimento sustentável (artigo 225, caput, c/c artigo 170, IV, da CF/88) — o que apenas fortalece as desavenças já existentes entre o Presidente e o STF. Em um contexto em que questões morais e políticas são levadas a todo o momento ao Judiciário [4], o papel desempenhado pelas supremas cortes e tribunais constitucionais deve ser o de assegurar a aplicação da Constituição nos casos concretos, inviabilizando que competências normativas previstas por ela sejam utilizadas pelos demais poderes como um meio de estabelecer ameaças às suas determinações subjacentes.

Recentemente, duas questões trouxeram especial destaque à essa discussão no âmbito da efetivação dos direitos fundamentais na Amazônia: (1) a morte do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira e (2) a iminência do julgamento, pelo STF, das ações ambientais do denominado "Pacote Verde". Consoante ao desaparecimento de Dom e Bruno, o assassinato de ambos deixou evidente os impactos marginais trazidos pelo estabelecimento de uma política ambiental mais permissiva. A implementação de um regime jurídico de fiscalização mais flexível, sem compromisso de combate ou controle das atividades ilegais desenvolvidas na região, tende a favorecer a influência de grupos locais que atuam à margem da lei, dando-lhes a autonomia necessária para maximizarem seu poderio.

Dados disponibilizados pelo INPE no final de 2021 [5] comprovam justamente isso, ao demonstrarem que a cifra de aumento do desmatamento ilegal durante o governo Bolsonaro foi a maior dos últimos 15 anos. As pesquisas apontam que em 2019 a taxa de desmatamento foi de 10.129 km², seguido por 10.851 km² em 2020 e 13.235 km² em 2021, havendo uma tendência de crescimento para 2022.

Nesse mesmo sentido registra a Nota Técnica nº 9 de fevereiro de 2022 do Ipam [6], em que fica constatado que o desmatamento na Amazônia subiu 56,6% nos três anos iniciais do governo Bolsonaro em comparação aos três anos anteriores. Nas terras indígenas, especificamente, observou-se um aumento de 153%, em média, de desmatamento com relação aos anos anteriores. Além disso, os dados demonstram que mais da metade da área desmatada (51%) localiza-se em terras de domínio federal, o que apenas corrobora a permissividade do Estado ao desmatamento e à grilagem.

Assim, dada a influência dos atores sociais na Amazônia e seus impactos substanciais no cenário sociopolítico vigente, observa-se um anseio popular e uma pressão internacional — tanto por parte dos órgãos ambientais, quanto pelos demais países indiretamente afetados — para que algo seja feito. Esse anseio, naturalmente, acaba por recair sobre o Judiciário, que nesse caso ganha protagonismo na agenda ambiental diante do julgamento das ações do "Pacote Verde".

Não se nega que a atuação expansiva do tribunal possa ser um problema, principalmente com relação ao risco que se deixa ao ativismo indeliberado e à aplicação desse procedente como justificativa para atuações posteriores [7]. No entanto, historicamente, a ascensão política e institucional do poder Judiciário fez jus à necessidade de um controle efetivo do sistema de separação vertical e horizontal dos poderes da República — e agora não deve ser diferente. Assim, considerando que a problemática ambiental apresenta-se de forma cada vez mais complexa na atualidade, com problemas intersetoriais de ordem econômica, cultural e política, a atuação do STF enquanto órgão de controle da constitucionalidade deve se voltar a uma atuação subsidiária específica, voltada à correção de atos normativos que inviabilizem procedimentos democráticos ou direitos fundamentais.

Isso implica reconhecer, portanto, que o STF, via de regra, deve acatar as escolhas feitas nos limites do exercício razoável da discricionariedade do Administrador. Em um cenário normal, tal deferência envolveria, inclusive, a deferência a políticas ambientais mais liberais — desde que estas não impossibilitem a prestação e efetivação de direitos fundamentais. Entretanto, na medida que se tem um risco significativo à inobservância de um dever objetivo do Estado de proteção do meio ambiente e das populações locais, o Judiciário deve, sim, dispor de capital institucional suficiente para frear eventuais ilegalidades consumadas pelos demais poderes. Tal atuação, embora expansiva, não se mostra ativista, pois, ao inviabilizar que ambições políticas particulares sejam priorizadas no jogo democrático, a corte observa justamente ao papel para o qual foi originalmente designada.

A defesa por uma permissividade cega do Judiciário aos atos unilaterais do Executivo, sob o fundamento do princípio da separação dos poderes ou da observância de competências constitucionais do Executivo, perde rapidamente sentido ao passo que essas atribuições são utilizadas para implementar medidas contra legem. Deve-se inviabilizar, de fato, que o Judiciário atue como legislador positivo no lugar do Executivo ou do Legislativo, pois nessa hipótese estaríamos diante de um quadro de violação de prerrogativas. Mas, por outro lado, deve-se reconhecer que o dever de deferência das cortes constitucionais esvai-se na tentativa de subversão dos ditames constitucionais, o que corrobora a necessidade de uma atuação mais expansiva do STF em casos específicos.

 


[1] SANTOS, João Vitor Antunes. Ecocídio: por que a destruição do planeta ainda não é um crime? Dificuldades textuais e procedimentais para um novo tipo penal. JOTA, 20 de junho de 2022.

[2] ALMEIDA, Thiago Ferreira. O pacto global para o meio ambiente: tema da proteção ambiental deve ser tratado a nível internacional e de maneira interdisciplinar. JOTA, 28 de novembro de 2021.

[3] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. – 22ª ed. – São Paulo: Atlas, 2021. p. 93

[4] BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Revista Direito e Práxis, v. 9, nº 4, p. 2171-2228, 2018. pp. 2177-2180.

[5] SOBRINHO, Wanderley Preite. Dados desmentem Bolsonaro e apontam recorde de desmatamento na Amazônia. Universo Online (UOL). São Paulo, 20 de maio de 2022. Uol Política. Disponível em:  https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/05/20/elon-musk-jair-bolsonaro-desmatamento-amazonia-satelites-inpe.htm. Acesso em 29 jun. 2022.

[6] Nota Técnica nº 9 do Instituto de Pesquisa Ambiental na Amazônia (IPAM) de fevereiro de 2022: Amazônia em chamas: o novo e alarmante patamar do desmatamento na Amazônia. ALENCAR, Ane; SILVESTRINI, Rafaella; GOMES, Jarlene; SAVIAN, Gabriela.

[7] SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Judicial review: uma breve história no tempo. Belo Horizonte: Fórum, ano 18, nº 97, maio/jun. 2016.

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