Opinião

Atuação sigilosa da Fazenda nas execuções fiscais contra empresas em RJ

Autor

6 de julho de 2022, 21h27

Inicialmente, antes de adentrarmos à questão principal, qual seja a realização de penhoras em sigilo, contra empresas em recuperação judicial, a pedido de Fazenda, na execução fiscal, mister se faz contextualizar o momento pelo qual essas empresas passaram, nos últimos anos, na visão do Poder Judiciário.

Em razão das peculiaridades existentes no processo de recuperação judicial e levando em conta todo o contexto que advém do referido procedimento (crise financeira, necessidade de maior fluxo de caixa, etc.) se passou a questionar, no Judiciário brasileiro, se a Fazenda Pública, que detém créditos de natureza não concursal frente à recuperação judicial, poderia executar os valores em execução fiscal, durante o trâmite recuperacional.

O tema chegou ao Superior Tribunal de Justiça que, visando apreciar a possibilidade de penhorar patrimônio de pessoa jurídica em recuperação judicial, em sede de execução fiscal, afetou o REsp de nº 1.694.261, juntamente com os REsp 1.694.316 e REsp 1.712.484, ao rito dos recursos repetitivos, cadastrando a temática sob o nº 987 e determinando, também, a suspensão do trâmite de todos os processos relacionados, em âmbito nacional.

Durante o julgamento do referido tema, que se estendeu até junho/2021, todos os processos de execução fiscal movidos pela Fazenda Pública permaneceram suspensos, garantindo segurança e "paz" às empresas que se viam, até então, em um cenário incerto na possibilidade de execução de valores não concursais, durante o trâmite recuperacional.

Ocorre que, quando da análise do referido tema, os ministros do Superior Tribunal de Justiça entenderam pela possibilidade de realização de atos de constrição, contra empresas em recuperação judicial, em sede de execução fiscal e, por consequência, o tema nº 987 foi desafetado, tornando possível o regular trâmite das execuções — que antes estavam suspensas.

Vale ressaltar que, mesmo diante da desafetação do tema repetitivo, com a consequente possibilidade de prosseguimento das execuções fiscais, restou firmado entendimento de que "na verdade, cabe ao juízo da recuperação judicial verificar a viabilidade da constrição efetuada em sede da execução fiscal, observando as regras do pedido de cooperação jurisdicional, podendo determinar eventual substituição a fim de que não fique inviabilizado o plano de recuperação judicial" [1].

Desta forma, mesmo diante da efetiva possibilidade de execução dos créditos públicos, a competência do juízo recuperacional foi preservada, a fim de evitar que os bloqueios impeçam o objetivo maior do instituto da Recuperação Judicial, que é a preservação da empresa.

Paralelamente a este julgamento — considerado uma derrota para as empresas em recuperação judicial — houve a alteração das Leis nº 11.101/2005, 10.522/2002, e 8.929/1994 por meio da Lei 14.112/2020.

A referida lei, de dezembro de 2020, trouxe alterações substanciais no processo de recuperação judicial, principalmente no que tange às exigências fiscais.

Isso porque a lei trouxe novas possibilidades para as empresas em recuperação judicial transacionarem os seus os débitos com a Fazenda Pública, em condições especiais, a fim de possibilitar a equalização integral do seu passivo (compreendido pelos créditos concursais e não concursais — como é o caso dos créditos públicos).

Ocorre que, como nem tudo são flores, a possibilidade de transacionar os débitos em condições mais favoráveis, também fortaleceu a previsão da legal de exigir das empresas em recuperação judicial, a apresentação de Certidão Negativa de Débitos (CND) para fins de homologação do seu Plano de Recuperação Judicial — artigos 57 e 58 da Lei 14.112/2020 [2].

Ainda, com a possibilidade de transacionar os créditos, também restou consignada a possibilidade de decretar a falência das empresas em recuperação judicial que descumprirem os termos da transação [3].

Ou seja, verificamos que nos últimos dois anos, o cenário que antes "privilegiava" as empresas em recuperação judicial frente à cobrança dos créditos da Fazenda Pública, regulamentou-se a ponto de vincular/atrelar a concessão da recuperação judicial à regularidade fiscal, podendo levar às empresas, inevitavelmente, à falência.

Não se trata de um instituto predominantemente cruel, uma vez que, em tese, busca proporcionar a ambas as partes (recuperanda e Fazenda Pública) uma condição de equalizar os seus interesses, levando à regularização do passivo fiscal das empresas em recuperação judicial e, assim, não deixando o Fisco à mingua.

Vale ressaltar, inclusive, que muito recentemente (junho/2022) foi publicada a Lei 14.375/2022, complementando a lei de transação tributária e ampliando as possibilidades de transação, incluindo a utilização de prejuízos fiscais e base de cálculo negativa para pagamento de parte do débito, além de estender o prazo das parcelas.

Isso significa que, muito embora os institutos tenham criado uma exigência mais rigorosa às empresas de recuperação judicial para apresentação de Certidão Negativa de Débitos, também foram ampliadas as possibilidades de transação, facilitando a adesão pelas recuperandas.

Ainda, vale mencionar que o Poder Judiciário não se olvida dos princípios norteadores da Lei de Recuperação Judicial [4], garantindo em casos excepcionais, em que as Empresas demonstram animus na regularização do passivo fiscal, a momentânea dispensa da Certidão Negativa de Débitos.

É o caso, por exemplo, da Recuperação Judicial nº 1046198-11.2019.8.26.0100, que em fevereiro de 2022, teve decisão proferida pelo juiz de Direito dr. Ralpho Waldo De Barros Monteiro Filho, "no sentido de que mesmo após a edição de lei regulamentando o parcelamento dos créditos tributários de empresas em crise, não pode ser exigida a apresentação de certidões negativas de débito tributário como requisito para a concessão de recuperação judicial, porquanto essa exigência se mostra medida desnecessária e inadequada, incompatível com o princípio da preservação da empresa" [5].

No referido caso o plano de recuperação judicial foi devidamente homologado, com a dispensa da Certidão Negativa de Débitos, restando consignada a necessidade de que a recuperanda buscasse junto ao Fisco a negociação de parcelamento para fins de equalização de seu passivo fiscal.

Desta feita, diante das diversas alterações ligadas à exigência de regularidade fiscal das empresas em recuperação judicial, a Fazenda passou a agir de maneira bem mais agressiva nos processos de execução fiscal.

Esse movimento se deu, principalmente, pela união das duas recentes alterações mencionadas a pouco (julgamento do tema 987 do STJ e alterações legislativas), que por serem extremamente jovens no âmbito do Poder Judiciário, provocam interpretações divergentes e abrem possibilidades para medidas muitas vezes não esperadas pelas recuperandas.

É o caso, por exemplo, dos pedidos de bloqueio em sigilo, que muito embora seja medida considerada extrema e cautelar, tem sido deferida pelos juízes, surpreendendo as empresas — inclusive em recuperação judicial — que mesmo monitorando os seus processos, acabam por sofrer constrições inesperadas e, assim, prejudicam o andamento e controle do seu fluxo de caixa.

Apenas a título de exemplo, vejam parte da decisão proferida em uma execução fiscal estadual, movida pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo (dados do processo preservados em razão do sigilo entre as partes):

Neste caso, a empresa, em recuperação judicial, apresentou manifestação contra o prosseguimento da execução em junho/2021 e, tendo em vista a ausência de pedidos por parte da Fazenda, os autos permaneceram sem qualquer movimentação até junho/2022, quando foi efetivado o bloqueio "surpresa", retirando o sigilo da manifestação da Fazenda e da decisão que deferiu o bloqueio.

Ou seja, a empresa passou um ano monitorando o processo e, mesmo tomando todas as medidas cabíveis para se proteger de eventual ato expropriatório, foi surpreendida em razão do sigilo do pedido de bloqueio e da decisão proferida.

Referida medida (pedido de bloqueio em sigilo, com deferimento em sigilo até a efetivação da penhora), tem se tornado comum nos processos de execução fiscal movidos contra empresas em recuperação judicial, o que pode se tornar um verdadeiro pesadelo para aqueles que enfrentam o dia a dia da contenção de gastos.

Trata-se de uma medida oportuna da Fazenda Pública, que em meio às alterações jurisprudenciais e legais, busca reaver os valores que antes estava, de certo modo, privada de executar.

Nessa esteira, por óbvio, as empresas em recuperação judicial vêm apresentando defesa nos processos em que isso ocorre, tendo em vista a verdadeira inobservância dos princípios da recuperação judicial — princípios estes ratificados com as recentes alterações legais, tais como o da preservação da empresa, da cooperação jurisdicional e da própria competência do juízo recuperacional para dispor sobre o patrimônio da empresa.

A solução, por ora, além do monitoramento constantes das operações financeiras e dos processos judiciais, é justamente o socorro do juízo recuperacional, que a depender do caso, pode opinar pela essencialidade do ativo bloqueado.

Ocorre que, justamente em razão das recentes alterações que ampliaram ainda mais as possibilidades de transação tributária, até mesmo os juízes da recuperação judicial têm enrijecido as suas análises quando de situações de desbloqueio de valores — o que se espera, agora, é que as empresas verdadeiramente demonstrem a sua movimentação para regularizar o passivo fiscal, sob pena de efetivamente perderem os valores bloqueados e, como mencionado ao longo deste artigo, podendo até ser decretada sua falência.

Por óbvio, o bloqueio em sigilo é medida extremamente gravosa à empresa em recuperação judicial e, por mais que se entenda pela possibilidade de prosseguimento das execuções fiscais, não há justificativa para colocar em risco a operação de empresas viáveis e em processo de soerguimento, que contam com as benesses legais para superar o seu momento de crise.

Desta forma, até que todas as alterações legais e até que a discussão do bloqueio em sigilo amadureça no campo do Judiciário, as empresas em recuperação judicial (principalmente), terão que buscar novos métodos operacionais para proteger seu patrimônio nas execuções fiscais, com o fito de manter suas atividades, sem interferências inesperadas no caixa.

Vale por fim ressaltar que, se a empresa em recuperação judicial tiver possibilidade de honrar com novos compromissos financeiros, as alterações na legislação concernente à transação tributária evoluíram de maneira muito positiva, possibilitando um momento vantajoso para firmar acordos com a Fazenda Pública e evitar quaisquer medidas expropriatórias, ao longo do processo de recuperação judicial.

Por todo exposto, concluímos que as empresas em recuperação judicial estão passando por uma dura fase de readaptação frente à importância no adimplemento tributos e que, muito embora a Fazenda tenha adotado uma posição mais agressiva nas execuções, também flexibilizou e facilitou a adesão de parcelamentos/transações, a fim de equilibrar o soerguimento das empresas com o recolhimento aos cofres públicos.

Derradeiramente, fica o aviso aos empresários em recuperação judicial: no momento atual, o tratamento do passivo fiscal é de suma importância para o bom prosseguimento das atividades empresariais, certo de que, com a atuação silenciosa da Fazenda, todas as empresas com dívidas públicas estão inevitavelmente sujeitas aos bloqueios, a menos que se obtenha causa suspensiva à exigibilidade dos valores.


[1] REsp 1.694.261

[2] Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.

Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia-geral de credores na forma dos arts. 45 ou 56-A desta Lei.

[3] Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial: V – por descumprimento dos parcelamentos referidos no art. 68 desta Lei ou da transação prevista no art. 10-C da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002 ;

[4] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

[5] (Processo Digital nº: 1046198-11.2019.8.26.0100 Classe – Assunto Recuperação Judicial – decisão remetida ao DJE em 14/2/2022 – juiz(a) de Direito: dr(a). Ralpho Waldo De Barros Monteiro Filho)

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!