Causou confusão a avaliação de tendência de votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal feita pelo Anuário da Justiça Brasil 2022 (clique aqui para ler), que acaba de ser lançado pela ConJur Editorial. No Twitter, o defensor público federal Gustavo de Almeida Ribeiro postou: "Os números que anoto e meus mais de 15 anos de atuação perante o STF, com mais de 100 sustentações orais proferidas, a maioria em matéria penal, mais de 2 mil HCs acompanhados, me fazem discordar completamente dessas tabelas apresentadas pelo Conjur."
Maior celeuma gerou a classificação dos ministros entre "garantista" e "legalista" em matéria penal e processual penal. Os leitores não se conformam, por exemplo, que o ministro Gilmar Mendes seja menos garantista que o ministro Roberto Barroso. Os números do Anuário indicam que em 43% das decisões analisadas Gilmar teve uma posição garantista, contra 50% de Barroso.
Por isso devemos uma explicação ao ilustre advogado e a todos leitores do Anuário, para esclarecer o trabalho apresentado.
O primeiro esclarecimento a fazer é que os quadros apresentam a tendência de voto dos ministros nas principais decisões proferidas em 2021, e não um perfil jurisprudencial do ministro ao longo de sua carreira na corte.
Como base de pesquisa para o levantamento foram considerados processos constantes do Informativo STF, o boletim que a corte publica com as decisões mais relevantes julgadas a cada semana, referente ao ano de 2021.
Neste caso, foram analisadas 303 decisões, sendo 205 ações de controle de constitucionalidade (ADIs, ADPFs e ADCs), 52 Recursos Extraordinários, 18 Habeas Corpus, 15 Ações Civis Originárias e 13 ações de outras classes processuais. As ações foram agrupadas em temas de acordo com a Tabela de Classes Processuais e Assuntos do Conselho Nacional de Justiça.
Alguns leitores indicaram que uma avaliação de tendência de voto dos ministros em matéria penal seria mais fidedigna se tivesse como base os Habeas Corpus julgados e concedidos em 2021. E estaria mais de acordo com a imagem que se tem e se espera de cada ministro. O Anuário, no entanto, baseou seu levantamento em outra amostra de dados, que embora tenha sua justificativa, talvez não seja a mais adequada em matéria penal.
O levantamento, que faltou no Anuário, mostra que Gilmar Mendes concedeu 17,6% dos pedidos de Habeas Corpus que julgou em 2021, contra 4,5% concedidos por Roberto Barroso. Na escala de ministros mais generosos na concessão de HC Edson Fachin aparece em segundo lugar, com 15,2% de pedidos atendidos, e Cármen Lúcia em terceiro, com 10%. Em último Lugar aparece Nunes Marques com 2,9%. Na qualidade de presidente da corte, o ministro Luiz Fux julgou 477 HCs em períodos de férias forenses e não concedeu nenhum.
Mas, ainda assim, seria temerário dizer que quem mais concede Habeas Corpus é mais garantista ou menos legalista. Da mesma forma que o Anuário extrapolou em sua missão de interpretar os dados colhidos ao atribuir os rótulos de garantista e legalista para definir as tendências dos ministros. Trata-se de conceitos complexos para ser empregado de forma tão genérica.
O professor Lenio Streck, com mais propriedade, explica: "Uma decisão é garantista quando: a) preserva ao máximo qualquer garantia processual que esteja no CPP e na Constituição Federal; b) assegura direitos individuais do cidadão mesmo quando a voz das ruas clama pelo contrário; c) declara a inconstitucionalidade de alguma lei que obstaculiza os direitos processuais e de liberdade."
Ele dá exemplos: "Não é garantista qualquer decisão que invoque o in dubio pro societate; não é garantista a decisão que equiparou injúria a racismo; não é garantista a decisão que julgou inconstitucional o parágrafo único do artigo 316 do CPP que exigia revisão de prisão a cada 90 dias."
Para Lenio Streck, "legalidade e garantismo não são inimigos nem antitéticos. Por vezes, a legalidade está bem de acordo com a Constituição Federal. Por exemplo, o artigo do CPP que foi introduzido em 2011 que trata da presunção da inocência. Em 2016, quando o STF deu uma virada jurisprudencial nesse tema, essa decisão foi antigarantista". E conclui: "Garantismo é fazer direito por meio do direito, impedindo juízos morais, voz das ruas etc."
O advogado Luiz Guilherme Marinoni deixa claro que há de se ter muito cuidado no uso desses conceitos: "Se o ponto está no respeito à Constituição, torna-se perigoso contrapor legalismo e garantismo. Aliás, mesmo ao se considerar a indissociabilidade entre norma e realidade, não se pode negar o programa normativo, em relação ao qual o texto constitucional tem significado constitutivo. Em outras palavras, a preocupação deve estar nos limites da interpretação constitucional. Uma decisão apegada ao texto e às suas origens obviamente pode ser imprescindível para a tutela de um direito."
Ao Anuário resta a lição de que, ao pesquisar a tendência de voto dos ministros em matéria penal, será de maior utilidade apresentar o resultado objetivo da decisão — por exemplo, se foi favorável ou contrária ao réu — e deixar que o leitor tire suas conclusões. Como já faz em matéria tributária (quando a pesquisa aponta se o julgador tende a favorecer o fisco ou o contribuinte) ou trabalhista (empregador e empregado).