Território Aduaneiro

Conferência Ministerial da OMC: avanços em meio à crise

Autores

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

  • Leonardo Branco

    é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax) doutor mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional" e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

5 de julho de 2022, 8h02

Após adiamentos sucessivos em razão da pandemia do Covid-19, ocorreu em Genebra, durante os dias 12 e 15 de junho, a 12ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (MC12) — principal instância decisória da OMC e que reúne os 164 membros para discussão dos temas relevantes da agenda comercial e negociações sobre o futuro da organização.

Spacca
Em um contexto em que a tomada de decisões coletivas fica cada vez mais difícil, buscar resultados positivos e com real avanço prático se tornou um desafio considerável aos negociadores que participaram das derradeiras conferências ministeriais. A última, sediada em 2017 em Buenos Aires, terminou com poucos consensos e abaixo das expectativas, o que agravou o debate sobre a crise institucional e a capacidade da OMC em responder às demandas de gestão do comércio global.

Não bastasse isso, o cenário em meio ao qual se desenrolou a MC12 potencializou tais desafios. Isto porque, além da crise institucional que persiste, principalmente diante da inoperância do Órgão de Apelação, é possível se enumerar outros entraves atuais ao comércio que impactam de forma generalizada os membros da OMC: a redução dos fluxos de comércio internacional causados pela pandemia, o aumento do protecionismo, a guerra entre Rússia e Ucrânia [1] e suas implicações em termos de preços e abastecimento, a inflação mundial crescente e as dificuldades logísticas.

Apesar do contexto pouco animador, o resultado surpreendeu positivamente membros e especialistas. Não se pode negar que as expectativas não eram elevadas e que os resultados alcançados no chamado "Pacote de Genebra" não são suficientes para endereçar todos os grandes temas atuais. Ainda assim, deve-se reconhecer que avanços foram feitos em tópicos sensíveis e, principalmente, que o ânimo dos países em negociar e alcançar medidas em nível multilateral reforça a importância da organização e sua sobrevivência — fato bastante contestado nos últimos anos.

Os resultados da MC12 concentraram-se nas seguintes temáticas: subsídios à pesca, comércio eletrônico, agricultura e segurança alimentar, comércio e saúde e reforma institucional.

O grande marco foi, sem dúvida, o Acordo sobre Subsídios à Pesca, cujo tema vinha sendo negociado há 21 anos. Ainda que a versão aprovada seja menos ambiciosa que as minutas trabalhadas e que tenham sido concedidos longos períodos de transição para fins de implementação, trata-se de resultado relevante para o setor econômico e deve contribuir significativamente para a redução da pesca ilegal e o nivelamento das condições de concorrência internacional. Mais do que isso, trata-se do segundo acordo em nível multilateral assinado desde o surgimento da OMC, de forma que sua aprovação era considerada por muitos como um dos "testes de resistência" à OMC.

Além disso, foi proferida decisão ministerial de renovação da moratória de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas até a próxima Conferência (MC13), prevista para o final de 2023. Apesar de não haver com clareza uma classificação do escopo a que se referem as transmissões eletrônicas, a medida envolve, por exemplo, a "entrega", de um país para outro, de produtos que não atravessam fisicamente as fronteiras nacionais, também chamados de produtos digitais ou digitalizados.

Prevaleceu o entendimento de que a moratória e a ausência de grilhões tarifários estimulou o crescimento exponencial do uso da internet e o florescimento da economia digital. Ainda assim, Índia, Indonésia e África do Sul indicaram o desejo de tributarem unilateralmente os fluxos de dados transnacionais, uma vez que, por conta das transmissões eletrônicas, muitos produtos que antes eram comercializados na forma física — como filmes, jogos e músicas, que já não são mais vendidos em CDs e DVDs — atualmente circulam digitalmente pela internet, o que ocasionou significativas perdas de receitas alfandegárias. Soma-se a este quadro que as transmissões eletrônicas também ocorrem sobre ativos de manufatura e desenhos computacionais ligados a impressão 3D que, em comunicação com o maquinário apropriado, podem fabricar produtos complexos e de alto valor agregado.

O Brasil, por outro lado, foi favorável à renovação da moratória, importante componente do crescimento global do comércio eletrônico nas últimas décadas, na medida em que garante um ambiente livre de impostos de importação para transações transfronteiriças eletrônicas, ainda que se trate de questão delicada e polêmica em especial aos países em desenvolvimento, cujas exportações do setor não são substanciais e o impedimento de taxação implica perdas de arrecadação sobre produtos de alto valor agregado [2].

Embora tenha sido reconhecida a legitimidade do problema apontado pelos três países, a solução tarifária pode ser vista com reserva, uma vez que qualquer cobrança unilateral sobre o fluxo de dados causaria uma ruptura significativa no mundo digital levando a custos proibitivos que inviabilizariam o acesso e o crescimento tecnológico. Uma alternativa aos direitos aduaneiros unilaterais, no âmbito da OCDE, é a proposta de reformas na tributação doméstica e internacional em busca da preservação das bases tributáveis diante da alteração dos fatores produtivos provocada pelas novas tecnologias [3].

Como se pode perceber, o pleito dos três países durante a MC12 na OMC é o reflexo da origem da mesma disputa da negociação sobre quais seriam os elementos de conexão aptos a garantir ao Estado da Fonte sua parcela de participação sobre a economia digital: um debate mais amplo sobre a "(…) adequação da justiça fiscal entre os países desenvolvidos (membros da OCDE e que, portanto, pretendem priorizar a tributação no Estado da Residência) e os países em desenvolvimento (que tentam proteger a tributação da riqueza gerada em seu território, Estado Fonte da renda)" [4]. O recurso à moratória tarifária sobre "transmissões eletrônicas" imposto de 1998 pela OMC e renovado em 2022 pode ser visto, portanto, como o reconhecimento da limitação dos direitos aduaneiros para solucionar problemas de arrecadação de países em desenvolvimento, debate que envolve um olhar sobre a adequação das regras internas e internacionais, além dos conhecidos pilares de coerência, substância e transparência almejados pela OCDE.

Não obstante, foi a agricultura que ganhou destaque na conferência. Em meio às preocupações com o aumento dos preços dos alimentos, o nível de fome no mundo e a adoção de medidas distorcivas ao comércio global de alimentos — temas debatidos durante a visita da diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo Iweala, ao Brasil em abril deste ano —, os dois documentos que versam sobre segurança alimentar "saíram do papel".

Ainda que nem todos os pleitos apoiados pelo Brasil tenham sido atendidos [5], principalmente no que diz respeito ao Grupo de Trabalho sobre Agricultura para reforma das regras multilaterais do comércio agropecuário, foram aprovadas a decisão para remover as proibições e restrições de exportação sobre as aquisições para fins humanitários do Programa Mundial de Alimentos (PMA) [6] e, sob uma escopo mais amplo, a Declaração sobre a Resposta Emergencial à Insegurança Alimentar, que trata de medidas de enfrentamento à crise global de insegurança alimentar, como a facilitação do comércio de produtos agrícolas e de insumos e a transparência na adoção de medidas emergenciais.

As demais decisões tomadas foram enquadradas no guarda-chuva do chamado "Pacote de resposta às emergências da OMC", que trata sobre perspectivas comerciais sobre saúde pública e versam sobre a resposta da OMC à pandemia do Covid-19 e prevenção à futuras pandemias; e a decisão sobre a simplificação do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips) no que diz respeito ao uso de licenças compulsórias de patentes para a produção e a distribuição de vacinas para a Covid-19, questão que, apesar de relevante, chega com algum atraso.

A maior crítica, seja em termos de timing, seja em razão da falta de conteúdo, talvez seja com relação às mulheres no comércio. Na última conferência, mais de 120 membros firmaram declaração sobre a necessidade de incentivar medidas para uma maior inclusão das mulheres no comércio internacional, tendo em vista a ampla evidência de que o gênero se beneficia muito menos do sistema global de comércio do que os homens e que a maior participação das mulheres aumenta a competitividade dos países. A despeito das diversas iniciativas que surgiram desde então, o tema foi deixado de fora em um momento crítico, já que a pandemia aumentou a desigualdade anteriormente existente, com as pequenas empresas gerenciadas por mulheres tendo sido desproporcionalmente atingidas [7].

Por fim, os membros reforçaram seu comprometimento com os princípios fundamentais da OMC e com o compromisso de trabalhar pela reforma da Organização com o intuito de melhorar todas as suas funções por meio de um processo aberto, inclusivo e transparente. Em especial, os membros reforçaram a necessidade de empreender esforços para que o sistema de resolução de controvérsias da OMC volte a funcionar de forma plena até 2024.

A respeito da relevância da retomada das atividades do aparelho jurisdicional da OMC, em especial, do Órgão de Apelação (OA), a CNI publicou documento em que afirma que este é um dos eixos centrais da política comercial brasileira, visto que, desde 1995, o país obteve vitórias em casos que somam US$ 9,5 bilhões, ao questionar barreiras às exportações brasileiras ou subsídios lesivos aplicados por outros membros. Além disso, estima-se que os casos ainda em andamento em que o Brasil figura como demandante e que dependem do OA para concretização/finalização somam cerca de US$ 4,51 bilhões [8].

Dentre as demais prioridades da agenda da indústria brasileira para a MC12, havia pontos que não chegaram a ser endereçados e que provavelmente terão sua discussão postergada para a próxima conferência, como o estabelecimento do Acordo sobre Facilitação de Investimentos e medidas de combate a subsídios industriais e agrícolas.

Em verdade, diversos dos documentos do "Pacote de Genebra" da MC12 fazem referência à MC13 como prazo para que resultados concretos sejam obtidos ou data máxima de aplicação de medidas provisórias, como o caso da moratória sobre transmissões eletrônicas. Além disso, houve a promessa de que temas como comércio e meio ambiente [9] e reforma institucional — que apesar de tratados não tiveram um aprofundamento — possam ser devidamente abordados em dois anos.

Em resumo, apesar de as manchetes de jornais e veículos especializados se dividirem entre afirmações de exaltação e crítica ao resultado da MC de 2022, deve-se admitir que a conferência representou um passo adiante, sinalizando que a OMC ainda está viva e que há interesse político dos membros em modernizá-la e ajustá-la para que continue sendo o centro de governança do comércio internacional. Para o Brasil, que tem sua política fortemente pautada em uma agenda multilateral, independente do grau de sucesso de suas demandas, essa é uma boa notícia. Resta aguardar as cenas dos próximos capítulos.

 


[1] Sobre os impactos comerciais da Guerra entre Rússia e Ucrânia, recomenda-se a leitura de artigo anteriormente publicado nesta coluna em 22/3/2022, disponível aqui.

[2] Segundo artigo publicado no jornal Valor Econômico em 10/5/2021, estima-se que a moratória concedida no âmbito da OMC tem implicado em perda anual de US$ 109 milhões ao Brasil.

[3] Neste sentido, já em 2015 o relatório do Plan Action 1 do Plano Beps elaborado pelo organismo multilateral para os países do G20 indicava a preocupação com as bases da tributação do consumo, em especial daqueles países que, como o Brasil, historicamente privilegiam substratos materiais corpóreos por excelência (circulação de "mercadorias", "produtos industrializados") repartidos em esferas de competência por meio de critérios arcaicos que, por suas deficiências e falta de responsividade frente às mudanças na economia, conduzem a complexidades, estímulo ao contencioso e insegurança jurídica.

[4] ROLIM, João Dácio e LARA, Daniela. "A tributação de IRRF na importação de cloud computing no Brasil e as soluções analisadas na Ação 1 do BEPS". In: FARIA, Renato Vilela, SILVEIRA, Ricardo Maitto da, e MONTEIRO, Alexandre Luiz Moraes do Rêgo (coords). Tributação da economia digital. São Paulo: Editora Saraiva, 2018, p. 41.

[5] Sobre o assunto, recomenda-se a leitura do artigo "OMC: Desafios agrícolas e de modernização" publicado pela Diretora de Relações Internacionais da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Sueme Mori. Disponível em https://cnabrasil.org.br/noticias/artigo-omc-desafios-agricolas-e-de-modernizacao.

[6] O Programa Mundial de Alimentos (PMA) é a maior organização humanitária em funcionamento no mundo, cujo objetivo é fornecer alimentos a pessoas em situação de vulnerabilidade para combate à fome. Trata-se de uma agência vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU) e que visa auxiliar, sobretudo, pessoas incapazes de produzir ou obter alimentos em suficiência para si e para as suas famílias. Informações sobre a atuação da instituição podem ser encontradas no site institucional disponível em www.wfp.org.

[7] Sobre o tema, recomenda-se o artigo MALMSTRÖM, Cecilia. WTO makes progress but could do more for women. Washigton: PIIE, 2022. Disponível em https://www.piie.com/blogs/realtime-economic-issues-watch/wto-makes-progress-could-do-more-women.

[8] CNI. A Indústria em favor da OMC: Prioridades para a 12ª Conferência Ministerial (MC12). Disponível em https://www.portaldaindustria.com.br/publicacoes/2022/1/industria-em-favor-da-omc-prioridades-para-12-conferencia-ministerial-mc-12/.

[9] As expectativas sobre o tema foram debatidas em artigo anterior publicado nesta coluna, disponível aqui.

Autores

  • é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

  • é conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Carf, doutorando, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU-Münster) como bolsista DAAD, coordenador do curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio internacional" no IBDT e do curso "Tributação do Mercado Financeiro e de Capitais" no IBDT e na Apet, professor de Direito Tributário e Aduaneiro no IBDT, Ibet, FGV, FIA, Fipecafi, Inova e IDP (pós-graduação) e FK-Partners (exame CFP). Pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV-Direito/SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!