Opinião

Políticas públicas culturais e a participação das comunidades beneficiadas

Autor

  • Marcus Pinto Aguiar

    é mediador de conflitos (Nupemec/TJ-CE) advogado doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UnB/Flacso Brasil professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do mestrado em Direito da Ufersa e membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCUlt)

5 de julho de 2022, 20h29

A valorização que costumamos atribuir aos documentos normativos internacionais no campo dos direitos humanos se deve principalmente ao fato de que são construções dialógicas e colaborativas multilaterais que oportunizam a expressão de interesses e valores plurais em busca de algum consenso com pretensões universalistas.

Claro que sabemos que a falta de isonomia política também está presente nestes organismos globais (caso da ONU) e regionais (caso da OEA), fator que dificulta os processos deliberativos internos.

Todavia, entendemos que tais documentos podem ser tomados como instrumentos complementares de fortalecimento do processo interno estatal de elaboração de normas, assim como do planejamento e execução de políticas públicas.

Nessa perspectiva, a Constituição da Unesco [1] declara que os Estados acreditam em "oportunidades plenas e iguais de educação para todos, na busca irrestrita da verdade objetiva, e no livre intercâmbio de ideias e conhecimentos". No entanto, a desconexão entre o professado e a ação tem revelado um espaço de aprofundamento das desigualdades de todas as formas: sociais, econômicas e políticas, entre outras.

Essa crença declarada em "oportunidades plenas e iguais de educação para todos" não tem se materializado por meio dos necessários bens materiais e imateriais, que precisam ser oportunizados para todos de forma igualitária para a concretização do direito à educação.

A Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB), Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, estabelece orientações, objetivos e princípios básicos para a educação escolar no Brasil, amparada pelas disposições constitucionais pertinentes [2].

Assim, seu texto afirma que a educação fundamental "deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social", enquanto instrumento para a difusão e promoção de valores intersubjetivos que permitam um processo de construção contínua da humanidade, vinculada à dos demais pares humanos, tais como solidariedade, respeito, cooperação, responsabilidade, entre outros que promovam seu próprio desenvolvimento e o da coletividade com a qual coexiste.

Nesse contexto, a LDB estabelece entre seus objetivos (artigo 32) a compreensão do ambiente natural e social e dos valores nos quais se fundamentam a sociedade (inciso II); além do fortalecimento dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social (inciso IV). Ambos em consonância com diversos tratados internacionais de direitos humanos, o que permitiria, desde a infância, a difusão de valores de aproximação e reconhecimento da diversidade de expressões culturais no Brasil e a construção de uma nação cívica, étnica e culturalmente integrada, respeitando as particularidades de cada grupo.

Assim, no que concerne ao reconhecimento da diversidade social e em matéria de direitos indígenas, a LDB preconiza que o ensino deve assegurar "às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem", como sinal de expressão da solidariedade para com os que têm sido colocados à margem do processo de inclusão nacional, reflexo do disposto no artigo 232 da Constituição.

Além disso, promove o reconhecimento de suas identidades culturais, uma vez que a educação é forte instrumento não apenas de desenvolvimentos de capacidades e de autonomias, mas de fortalecimentos de vínculos, pressupostos da efetividade de direitos e de uma existência centrada na busca pela harmonia social e na solução pacífica de conflitos.

Como é próprio dos processos que promovem relações interculturais, não se pode estabelecer um único ponto de partida do qual o vetor de difusão das expressões culturais se desloca, isto é, os processos educativos devem proporcionar aos grupos não indígenas a aproximação dialógica com as diversas culturas que formam o patrimônio comum nacional. Da mesma forma, os mesmos processos, quando voltados para as comunidades indígenas, quilombolas ou ribeirinhas, entre outras, também devem proporcionar a compreensão e reconhecimento dos valores dos grupos não indígenas.

A LDB, no que se refere à promoção da interculturalidade, como reconhecimento da diversidade entre as comunidades indígenas, e destas para com as demais (não indígenas), além de caminho para uma coexistência pacífica e colaborativa, em seu artigo 78, propõe que a educação indígena seja orientada para garantir seus direitos culturais, aqui em sua dimensão de cidadania nacional.

Normativamente, essa interação entre as realidades indígenas e não indígenas estão aparentemente bem estabelecidas e com potencialidades para gerar a interação política, social, jurídica e cultural necessárias para uma convivência pacífica. Mas os textos precisam se transmudar em ações, entrando nesse movimento o importante papel que as políticas públicas desempenham nos estados democráticos.

Neste ponto que toca a educação, como referido pela Constituição da Unesco, o que existe de convergente é que as oportunidades devem ser as mais amplas possíveis; para que todos, em igualdade de condições, possam se inserir no processo de formação educacional, condição fundamental para a interação dos povos — para além da estratégia assimilacionista —, especialmente na realidade pluricultural do Brasil na qual coexistem diferentes grupos étnicos de imigrantes e diversas comunidades nacionais minoritárias, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, afro-brasileiros, entre outros.

Em um Estado democrático, a educação, da mesma forma que diversos direitos sociais e culturais, tem que ser empreendida sob o ponto de vista da necessidade das comunidades [3], assim como definidas e expressas por meio de políticas públicas, com apoio na participação ativa das mesmas comunidades, cujo exercício abrange quatro etapas: formulação, implementação, satisfação e avaliação [4].

Assim como o pressuposto da verdade absoluta é um paradigma que pode ser considerado superado pela ciência contemporânea, o mito da racionalidade perfeita também o pode, quando se trata do processo de elaboração de políticas públicas. Atribuir qualificações puramente técnicas que capacitam e legitimam agentes públicos a formular quais necessidades sociais serão atendidas em proveito da população é um erro fatal que tende à ineficácia do modelo, isto é, ao não atendimento satisfatório do público-alvo.

 


1. UNESCO. Constituição das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000147273. Acesso em 14/6/2022.

2. BRASIL. LDB – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 14/6/2022.

3. Segundo, Grupioni: "Uma característica que chama a atenção na Educação Indígena tradicional é o fato de, nesse tipo de educação, o ensino e a aprendizagem ocorrerem de forma continuada, sem que haja cortes abruptos nas atividades do cotidiano". Conferir em Grupioni, Luís Donisete Benzi. Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. UNESCO Brasil. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000146327. Acesso em 14/6/2022.

4. De acordo com Heidemann (2010, p.34), "O ciclo conceitual das políticas públicas compreende pelo menos quatro etapas: a primeira refere-se às decisões políticas tomadas para resolver problemas sociais previamente estudados. Depois de formuladas, as políticas decididas precisam ser implementadas, pois sem ações elas não passam de boas intenções. Numa terceira etapa, procura-se verificar se as partes interessadas numa política foram satisfeitas em suas demandas. E, enfim, as políticas devem ser avaliadas, com vistas a sua continuidade, aperfeiçoamento, reformulação ou, simplesmente, descontinuidade". Conferir em HEIDEMANN, Francisco G.; SALM, José Francisco (orgs.). Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010.

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  • é mediador de conflitos (Nupemec/TJ-CE), advogado, doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/Flacso Brasil, professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do mestrado em Direito da Ufersa, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

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