Opinião

A lei balzaquiana (8.069/90) precisa avançar

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5 de julho de 2022, 6h06

No romance "A Mulher de 30  Anos" [1], o escritor francês Honoré de Balzac conseguiu sintetizar todas as angústias, sonhos e desejos da alma feminina, ganhando destaque por descrever o drama da mulher, consciente da razão de seus sofrimentos e revoltada contra a instituição do casamento, na primeira metade do século 19, época em que a França era governada por Napoleão Bonaparte. Por ser o primeiro a retratar um romance em que a personagem feminina era uma mulher de trinta anos, idade considerada já madura para a época, a obra ganhou notoriedade.

O tema central do romance é a vida de Julia d'Aiglemont, que casa com Vitor, oficial do exército de Napoleão, que após anos de infelicidade, ao completar trinta anos, encontra o amor verdadeiro nos braços de Charles de Vandenesse.

A Lei 8.069/90 completará, no próximo mês de julho, trinta e dois anos de vigência. Por certo, a lei balzaquiana implementou conquistas importantíssimas no plano infraconstitucional brasileiro, cabendo destacar a substituição da doutrina da situação irregular, presente no antigo Código de Menores, pela doutrina da proteção integral, disposta no artigo 1º da Lei.

Alinhada com o texto constitucional que dispõe ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (artigo 227, CRFB), a Lei 8.069/90 reconhece formalmente a doutrina da proteção integral, tornando crianças e adolescentes sujeitos de direitos, em contraposição à doutrina da situação irregular, de viés assistencialista, que os considerava como objetos de proteção [2].

O avanço humanitário no plano formal é indiscutível, mas a realidade dos fatos é sempre diversa e muitas vezes cruel.

Na semana passada, a sociedade recebeu atônita a notícia [3] de que uma criança de 11 anos, grávida após ser vítima de um estupro, estava sendo mantida em um abrigo, há mais de um mês, para evitar a realização de um aborto legal.

Dois dias após a descoberta da gravidez, a menina foi levada ao hospital pela mãe para realizar o procedimento de aborto — permitido pelo Código Penal em caso de violência sexual, sem impor qualquer limite temporal, tampouco autorização judicial —, contudo, a equipe médica não o fez sob o argumento de que as normas hospitalares só permitem o ato até as 20 semanas. A menina estava com 22 semanas.

Diante disto, o Ministério Público ajuizou ação cautelar requerendo o acolhimento institucional da criança. Após, em audiência judicial, a conduta da autoridade judicial e do Ministério Público foi no sentido da defesa da manutenção da gravidez e do parto antecipado.

O caso chama a atenção quanto à multiplicidade de violações de direitos fundamentais da criança vítima de estupro que, ao buscar acesso à justiça, foi submetida a uma série de violências institucionais agravadoras da sua peculiar condição de vulnerabilidade.

Já vitimizada pelo serviço público de saúde negligente, mais uma vez a criança foi violentada, desta vez pelo sistema de justiça, ao se ver submetida a um ato judicial vexatório e violador do devido processo legal.

A Convenção de Belém do Pará, entende que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica, inclusive aquela perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (artigo 2º, c).

Em relação ao exercício do direito de interromper a gravidez em decorrência de um estupro e de ter acesso real à sua escolha, enquanto direito reprodutivo e enquanto direito à própria vida, o artigo 4º da Convenção de Belém do Pará elenca um rol de direitos assegurados à mulher, destacando-se o direito a que se respeite sua vida, sua integridade física, mental, moral, liberdade e à segurança pessoal, e o direito a um recurso simples e rápido perante tribunal competente que a proteja contra atos que violem seus direitos.

Além disso, o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como direitos humanos teve como marcos decisivos a Conferência do Cairo (1994) e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim (1995).

Dentro deste cenário de direitos reconhecidos no plano formal e de massivas violências no plano fático é que devemos ser chamados à reflexão acerca da figura do Defensor Público da Criança, reconhecendo a esta sua condição de sujeito de direitos, em especial do direito de opinião e participação.

Ancorado na doutrina da proteção integral e todos os seus corolários, o Defensor da Criança está sedimentado no artigo 206 da Lei 8.069/90, não se confundido com o curador especial, destinado ao incapaz carente de representação legal ou com interesses em conflito com os seus representantes.

A atuação do curador especial [4] independe de contato prévio com o curatelado, não tendo por função representar a sua vontade, expressando uma formalidade, com o fito de assegurar aspectos legais. No âmbito da infância e juventude, a figura do curador especial tem sua atuação pautada no princípio do melhor interesse da criança, mas sob uma perspectiva adultocêntrica, sendo irrelevante a vontade do infante, tratado como mero objeto do direito.

No plano doutrinário [5], aponta-se que a Constituição de 1988, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como valor central do ordenamento jurídico, criou uma verdadeira revolução no conceito de capacidade civil, que funciona, atualmente, como limitador (inconstitucional) do direito fundamental de participação, opinião e expressão de crianças e adolescentes.

Nesse sentido, a criança, como sujeito de direitos e maior interessada no resultado do processo não pode ser considerada como terceiro. Considerá-la apenas destinatária da decisão é negar o direito à participação no processo.

No caso da menina de 11 anos, restou evidente que, no âmbito do processo judicial, tendo uma das partes o Ministério Público e a outra o feto, a criança não pode(ria) ser tratada como bem de vida em disputa, sendo falacioso entender que a atuação ministerial substitui(ria) a criança e a sociedade (beneficiada pela proteção dada à criança).

Tem-se, portanto, a necessidade de tornar a criança parte na relação processual, bem como a impossibilidade jurídica do Parquet atender a todos os comandos protetivos da norma, eis que a função de substituição processual não contempla a efetiva participação do sujeito no processo [6].

A Defensoria Pública tem atribuição para desempenhar o papel de representante postulatório de crianças, tendo como missão constitucional (artigo 5º, LXXIV e artigo 134, CRFB) prestar assistência jurídica integral e gratuita a toda pessoa em situação de vulnerabilidade, independentemente de qualquer condição — aí incluída a capacidade civil ou postulatória. Igualmente, a Defensoria Pública tem como função institucional exercer a defesa dos direitos individuais e coletivos de crianças e adolescentes (artigo 4º, inciso XI, da LC 80/94).

Atuando como verdadeiro representante processual da criança, o Defensor Público é o responsável pelo exercício de sua defesa técnica, devendo perseguir em juízo todos os seus interesses e não de um abstrato "melhor interesse" concretizado no plano dos fatos por um adulto. A análise sobre o cabimento ou não do pleito manifestado pela criança caberá ao Poder Judiciário.

Sem a figura do Defensor da Criança no caso ocorrido na Comarca de Tijucas (SC), retirou-se da criança a possibilidade de ter uma condução processual pautada na proteção absoluta da vida, conforme a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 54 e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Artavia Murillo e outros vs. Costa Rica [7].

O direito formal está posto. Herrera Flores [8] nos ensina ser urgente a necessidade de superarmos a reflexão teórica dominante segundo a qual os direitos "são" os direitos, isto é, os direitos humanos se satisfazem tendo direitos, reduzindo-os à mera retórica conservadora — ou evangelizadora — que serve mais para justificar o injustificável que para resolver os problemas concretos da humanidade. Para o inquietante autor, falar de direitos humanos é falar da abertura de processos de luta pela dignidade humana, onde os conflitos e as práticas sociais sempre se farão presentes.

Assim como Julia d'Aiglemont, com a maturidade adquirida, encontrou Charles de Vandenesse, espera-se, enfim, que a nossa lei balzaquiana descubra o verdadeiro sentido da proteção integral conferida à criança e ao adolescente.


[1] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Mulher_de_Trinta_Anos (consulta em 26/06/2022).

[2] SEABRA, Gustavo Cives. Manual de Direito da Criança e do Adolescente. Belo Horizonte: CEI, 2020, p. 44.

[4] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento – 18ª ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016, p. 330.

[5] TEPEDINO, Gustavo. A Tutela Constitucional da Criança e do Adolescente: Projeções Civis e Estatutárias. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos, ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010, p. 865-867

[6] NESRALA, Daniele Bellettato; SCHWAN, Ana Carolina Oliveira Golvim; DINIZ, Marcelo Lucena. Acesso à justiça de crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direito: o defensor da criança como figura essencial para efetivação da doutrina da proteção integral, Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, v.5 nº 26 2020, p. 160.

[7] PAIVA, Caio. HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3ª ed. Belo Horizonte: CEI, 2020, p. 236.

[8] HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos; tradução de: Carlos Roberto Diogo Garcia; Antônio Henrique Garciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

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