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Responsabilidade tributária e o interesse comum no fato gerador

Autor

  • Gilberto Alvarenga

    é advogado especialista em direito tributário mestre em ciências contábeis e consultor para assuntos tributários do Sistema Fecomercio-RJ.

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5 de julho de 2022, 14h06

O objetivo delineado nesse texto é trazer observações quanto à responsabilidade tributária em autuações fiscais. A pertinência e atualidade desse debate decorrem principalmente do grande índice de transposições da cobrança tributária aos sócios administradores e a terceiros que mantêm operações econômicas com as empresas autuadas, sendo que tais responsabilizações acabam tendo como único fundamento apenas presunções e não o "interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal". Lembramos que, na análise desse tema, as questões extremas, como a atuação em situações nitidamente delituosas, não apresentam grandes dificuldades de entendimento, mas o ponto de interesse aqui não pode ser esse.

Divulgação
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As questões mais relevantes envolvem situações onde a construção da responsabilidade pela autoridade fiscal parte de uma mera presunção do vínculo. Segundo Liz Coli Cabral Nogueira, presumir significa estabelecer como verdadeiro, entender como provável ou simplesmente possível a ocorrência de um fato. Ocorre que, consoante o princípio da segurança jurídica que norteia o artigo 142 do CTN, o tributo só pode ser validamente exigido quando um fato se ajusta rigorosamente à hipótese de incidência tributária. Assim, conforme nos ensina Ruy Barbosa Nogueira, o lançamento é "atividade que não pode se separar da legalidade, tanto no que respeita ao conteúdo quanto à forma". Em vista disso, não se pode considerar ocorrido o fato imponível, ou pior, a sujeição passiva de terceiro por mera ficção ou presunção. Isto é, a responsabilidade de terceiros, por ser algo mais grave do que a simples constatação da condição de contribuinte, não pode ocorrer independentemente da efetiva verificação, no mundo fenomênico, dos fatos abstratamente descritos na hipótese de responsabilização tributária.

Então, desde já, a conclusão não pode ser outra senão que o princípio da segurança jurídica somente permite a fixação de responsabilidade na autuação fiscal quando presente a real ciência e certeza de determinados fatos que, em tese, tipificam ilícitos tributários descritos em lei, mediante a rigorosa observação dos procedimentos formais, previstos na referida lei, para provar que tais fatos ocorreram. E é isso o que pensa a melhor doutrina sobre o tema.  Roque Antônio Carraza, ressalta que "conjecturas, indícios, intuições, positivamente não são meios de prova". "São, quando muito, pressupostos de meio de prova." E assim, pressupostos de meio de prova, como bem ressaltado pelo autor, não podem ser suficientes a instruir medida grave que despreza a existência de uma pessoa jurídica e responsabiliza terceiros.

Por consequência, o lançamento tributário e principalmente os seus reflexos em terceiros que não o contribuinte precisam ser norteados por constatações. Sobre a necessidade de certeza, um dos maiores juristas brasileiros, José Souto Maior Borges, escreveu que "sendo o lançamento válido aquele que se subsume inteiramente à lei tributária, se isso não ocorrer, estaremos frente àquilo que a doutrina costuma chamar de lançamento defeituoso". Por isso, a apuração de responsabilidade não pode ter mágoa, vício ou imperfeição, sob pena de estar em desacordo com as normas que permitem esse transpasse.

Por outro lado, o ônus da prova, entendido como a necessidade de convencer o julgador acerca de suas afirmações, apenas poderá recair ao responsável se, e somente se, a fiscalização elaborar a prova primária para constituição do lançamento. Por isso, as presunções não podem gerar autuações fiscais, para que terceiro, à sua sorte, defenda-se das acusações que lhe foram imputadas.

Ressalte-se, inclusive, que a própria Receita Federal, no Parecer Normativo Cosit nº 4/18, consolida o entendimento vinculante do órgão nas hipóteses de atribuição de responsabilidade solidária nos termos do art. 124, I do CTN afirma que "não é qualquer interesse comum que pode ensejar a aplicação do disposto no inciso I do art. 124 do CTN… Assim, o mero interesse econômico, sem comprovação do vínculo com o fato jurídico tributário (incluídos os atos ilícitos a ele vinculados) não pode caracterizar a responsabilização solidária…"

E quanto a isso, cabe trazer a ponderada opinião de Luis Eduardo Shoueri de que "mesmo que duas partes em um contrato fruam vantagens por conta do não recolhimento de um tributo, isso não será, por si só, suficiente para que se aponte um 'interesse comum… pode, ainda, ter tido um ganho financeiro por isso, já que a inadimplência do vendedor poderá ter sido refletida no preço'. Ainda assim, comprador e vendedor não têm 'interesse comum' no fato jurídico tributário". Então, como já ressaltado, há uma confusão do fisco que muitas das vezes entende que a existência de interesses econômicos constitui interesse jurídico que legitimaria a solidariedade.

A solidariedade, lembre-se, além de não poder estar embasada em mero interesse econômico ou presunção, não pode ser construída pela autuação, mas apenas formalizada nesta. Nas palavras de Mizabel Derzi, "a solidariedade não é, assim, forma de inclusão de um terceiro no polo passivo da obrigação tributária, apenas forma de graduar a responsabilidade daqueles que já compõem o polo passivo".

É possível verificar, em diversas decisões proferidas pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e pelo Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), que a configuração da responsabilidade tributária solidária prevista no artigo 124, I, do CTN depende da demonstração da existência de interesse comum, isto é, que uma ou mais pessoas realizaram de forma conjunta o fato gerador. Ou seja, não basta a indicação da presença de simples interesse econômico na prática do fato gerador tributado, mas sim restar configurado o interesse jurídico. Dessa forma, a autoridade lançadora deve comprovar tal circunstância com lastro probatório robusto no procedimento fiscal, demonstrando que o terceiro colaborou ativamente com o ilícito tributário.

Em vista disso, para ilustrar, o Carf, no Acórdão nº 9202-010.012, reconheceu que a mera existência de grupo econômico não transformava empresas em solidárias e nem os seus administradores em responsáveis. Da mesma forma, no Acórdão nº 1302-006.047, decidiu que um armazém geral não poderia ser responsável solidário apenas por realizar negócios jurídicos com a autuada, notadamente se essa empresa era regular à época de tais negócios e apenas após o período da autuação teve desconformidade em seus cadastros.

Nesse ponto, e certamente em convergência com a doutrina e jurisprudência, anda muito bem o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 17/22 que estabelece normas gerais relativas a direitos, garantias e deveres do contribuinte, ao propor em seu artigo 18 que "o mero pertencimento a um mesmo grupo econômico não enseja a solidariedade tributária a que se refere o artigo 124 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966". O projeto ratifica, ainda, no § 2° do mesmo artigo que "É vedada a caracterização de grupo econômico ou confusão patrimonial por presunção".

Entretanto, o referido projeto, para resolução adequada dessas questões, deveria ser mais amplo em seu alcance quanto às presunções. Assim, no que se refere ao artigo 124 do CTN, não poderia se limitar às questões afetas aos grupos econômicos, mas englobar também as situações em que empresas que desenvolvem tão somente relações econômicas com as autuadas são responsabilizadas. Como se vê, nesses casos existe uma nítida confusão entre mero interesse econômico e "interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal". Esse interesse comum, requisito do artigo 124, I, do CTN e que, considerando as sérias consequências geradas por esse transpasse da obrigação tributária, precisa ser readequado e explicitado na legislação.

Bibliografia
BALEEIRO, Aliomar, Direito Tributário Brasileiro 11 Ed. Atualizada por Misael Abreu Machado Derzi, Rio de Janeiro, Forense, 2006;

BORGES, José Souto Maior, in  Lançamento Tributário – Tratado de Direito Tributário Brasileiro, vol. IV, Forense, 1981.

NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário, 14ª Edição, Ed. Saraiva

NOGUEIRA, Liz Coli Cabral, As Ficções Jurídicas do Direito Tributário Brasileiro In RDP 10/141.

SCHOUERI, Luis Eduardo, Direito Tributario/ Luis Eduardo Schoueri, 10 ed, Saraiva, 2021.

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