Contas à Vista

Vamos trocar o teto de gastos pelo piso de investimentos públicos

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

5 de julho de 2022, 8h01

É conhecido por todos que durante o governo Temer foi criado o teto de gastos, por meio da Emenda Constitucional 95/16, a qual atrelou por 20 anos todas as despesas primárias ao montante desembolsado em 2017, corrigido pelo IPCA, com um intervalo para análise nesse meio tempo.

Spacca
Durante os anos Bolsonaro (2019-2022) o teto de gastos ruiu em grande parte, por um lado, em razão da pandemia (EC 106, emergencial, que vigorou até 31/12/20), e, por outro lado, para permitir a realização do famigerado orçamento secreto, criando uma espécie de subteto para o pagamento dos precatórios federais (EC 113 e 114). Aliás, 25% dos precatórios federais que deveriam ser pagos em 2022 serão adiados para 2023, comprovando o que o efeito bola de neve afirmado anteriormente.

Com certeza outras goteiras nesse teto surgirão antes do final do ano, como se vê na PEC Kamikaze que acabou de ser aprovada no Senado, instituindo um estado de emergência para pagamento de vale-gás e vale-caminhoneiro. Apenas o senador José Serra votou contra, não sendo candidato à reeleição. A aprovação na Câmara é iminente, sob o regime de rolo compressor.

Minha proposta é simples. Reconheçamos que o teto não deu certo e passemos para outro mecanismo. Sugiro adotarmos um Piso de Investimentos Públicos.

Não vou gastar latim para demonstrar que os gastos públicos são um importante motor para o desenvolvimento econômico, pois toda a teoria keynesiana já o fez. O que Keynes não disse é: que tipo de gasto público deve ser realizado para que a economia se desenvolva de forma sustentável, inclusive em uma perspectiva intergeracional? Eis o foco do texto.

Um dos erros do teto de gastos foi colocar todas as despesas públicas no mesmo balaio, excetuadas as financeiras, que ficaram de fora. Pois bem, a proposta é colocar um Piso de Investimentos Públicos obrigatórios, a serem anualmente executados. Com isso, ao invés de serem realizadas despesas correntes, como as que ocorrem com os vale-alguma-coisa que o governo atual vem aprovando a toque de caixa, as despesas seriam de capital, isto é, centradamente investimentos, conforme estabelece o §4º, artigo 12, da Lei 4.320/64: "Classificam-se como investimentos as dotações para o planejamento e a execução de obras, inclusive as destinadas à aquisição de imóveis considerados necessários à realização destas últimas, bem como para os programas especiais de trabalho, aquisição de instalações, equipamentos e material permanente e constituição ou aumento do capital de empresas que não sejam de caráter comercial ou financeiro".

Com isso, o dinheiro público que estiver vinculado ao Piso de Investimentos Públicos, não irá pelo ralo, como ocorre com as despesas correntes. Afinal, um vale-gás talvez seja insuficiente para durar um mês, tendo que ser adquirido outro logo após. A proposta é direcionar esse dinheiro público para um montante mínimo (piso) de investimentos.

Tal sugestão escapou às inúmeras alterações constitucionais realizadas recentemente. Foi acrescido o §14 ao artigo 165, CF, pela EC 102/19, determinando que "a lei orçamentária anual poderá conter previsões de despesas para exercícios seguintes, com a especificação dos investimentos plurianuais e daqueles em andamento"; porém não menciona um valor mínimo a ser investido.

A mesma EC acresceu o §12 ao artigo 165, determinando que integrará a LDO, para o exercício em curso e os dois subsequentes, "a proporção dos recursos para investimentos que serão alocados na LOA para a continuidade daqueles em andamento". Só trata dos investimentos "em andamento" e silencia quanto a um percentual mínimo a ser obrigatoriamente investido.

Alguém dirá que essa proposta engessará ainda mais o orçamento, pois o custeio desses investimentos poderia constar anualmente da lei orçamentária (ver artigo 20, parágrafo único, Lei 4.320/64). Não nego tal crítica, mas considero que tal rigidez permitirá que ocorra um círculo virtuoso ao país, obrigando os Legislativos da União, estados, DF e municípios a inserirem um piso para investimentos, com prioridade para concluir os que estejam sendo executados, a fim de evitar um monte de esqueletos de obras que jazem em nosso país.

Na regulamentação desse piso incluiria, além de investimento em obras, investimento em capital humano, por exemplo, o montante destinado à educação e ao treinamento de servidores. Um exemplo pode esclarecer: com a ampliação da informatização da justiça, milhares de servidores públicos que cuidavam dos processos em papel devem passar a trabalhar no mundo digital; logo, necessitam de investimento público em treinamento, para que possam desempenhar adequadamente suas funções.

Parece óbvio que, ao acrescer o capital humano como investimento, incluindo também a educação formal, em todos os níveis federados, a alíquota desse piso terá necessariamente que ser mais alta. Outra cautela diz respeito à dívida, pois é usual que os investimentos sejam realizados através de operações de crédito (CF, artigo 167, III; LRF, art. 11, §2º), o que obriga a adoção de contabilização específica, a fim de que este Piso seja adequadamente cumprido, sem estar ancorado em dívida.

E o que fazer com o teto, já tão furado? Extingui-lo?

Penso que poderia ser mantido para algumas específicas despesas correntes, a serem melhor delimitadas, e não da forma atabalhoada atualmente existente. Conviveríamos com o teto que seria exequível para limitar certas despesas e buscando afastá-las de aventuras populistas, como as atualmente em voga, e um piso que alavancaria nosso desenvolvimento.

Fica a sugestão aos governantes que tomarão posse em janeiro de 2023.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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