Opinião

A fronteira final e penal das criptomoedas

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4 de julho de 2022, 7h06

Muito frequente é a afirmativa de que o Direito Penal deve ser visto como a ultima ratio do sistema repressivo. Aqui, confundem-se, frequentemente, leituras com vieses mais ou menos duros. Existem, por certo, aqueles para quem o Direito Penal pode ser resposta para tudo, enquanto, outros tantos, assumem por verdade que a quadra criminal não dispõe dos poderes que tanto lhe é atribuída.

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A inflação de leis penais, no Brasil ou no exterior, parece, todavia, unicamente gerar uma perda de autoridade da própria norma, pois o Direito Penal pode, ao fim e ao cabo, fazer muito pouco para um real controle social. Tais palavras, ditas com a autoridade de Musco,[1] devem obrigatoriamente ser levadas em conta quando se imaginam as múltiplas repercussões também penais que estão sendo pensadas em sede de criptomoedas. Não dificilmente imagina-se que o mundo cripto está diretamente vinculado a malfeitos, e não que representa, sim, um dos maiores passos de progresso das relações humanas e econômicas dos últimos tempos. Embora fortunas tenham sido criadas e o panorama global tenha se modificado por completo com a inovação das criptomoedas, é fato que algo precisa ser feito em termos de controle.[2]

Algumas verdades necessitam, desde logo, ser pontuadas. A primeira delas versa sobre o fato de que muitas das criminalizações que estão a ser discutidas, no Brasil e no mundo, versam não sobre crimes necessariamente vinculados à estrutura das criptomoedas, mas a crimes que podem utilizar as mesmas de maneira incidental, como ao dizer respeito ao seu uso como instrumento em situações patrimoniais várias. Seriam necessárias, para tanto, tipificações próprias a minudar questões já tratadas por tradicionais crimes como de furto, estelionato ou apropriação indébita? Nesses casos, revelar-se-iam inócuas. Contudo, ao se ter em mente a integralidade do novo campo que se está a cuidar, talvez a cautela em se desenhar tipificações próprias ao universo cripto fosse de interesse.

Os crimes necessariamente vinculados à incidência penal econômica, vale dizer, questões atinentes à evasão de divisas, à sonegação fiscal e à lavagem de dinheiro, parecem ser algo bem mais marcante e momentâneo.[3] E, nesses casos, semelhante inovação talvez mereça, sim, uma preocupação para além de efeitos e controles meramente regulatórios. Nessa esteira, faz certo sentido uma determinada intervenção penal. Apesar dos efeitos regulatórios se mostrarem fundamentais, é de se constatar que, para além destes, a edificação de crimes talvez seja, em certa medida, pertinente.

Mas, derradeiramente, é importante se recordar as colocações de autores como Militello, segundo o qual, na virada do século passado, diversos ordenamentos então passavam a se dedicar ao problema informático, deitando importância em seu tratamento internacional.[4] E é justamente nesse passo, a ausência de internacionalização, que parece ser a falha sentida na busca de regulamentação cripto. Tenha-se em conta, em especial em um tema sem fronteiras e verdadeiramente internacional, como as criptomoedas, que somente com a internacionalização se poderá imaginar uma potencial efetividade dos instrumentos regulatórios.[5] Isso já se fez presente em diversos momentos, com diferentes temas. Como recorda Blanco Cordero, foi somente como consequência transnacional do fenômeno da lavagem de dinheiro que se produziu uma efetiva resposta internacional sobre o tema,[6] para não se falar do tratamento da corrupção, que somente ganhou a importância hoje sentida graças à sua abordagem internacional.[7] Esse, talvez o maior dos desafios,[8] a fronteira final a ser esperada no espectro jurídico, em relação às criptomoedas. Até lá, por mais que se pretenda estipular regulações locais, os negócios tendem a não se limitar em tais espaços. E, se assim for, ter-se-ão locais e jurisprudência a socorrer eventuais irregularidades, como em faroestes virtuais. E, em um mundo cripto sem fronteiras, oásis permissivos, ainda que eventuais, e mesmo espacialmente apartados, se mostram, em verdade, à distância de um apertar de botão, e se mostram como a marca de permissividade global.


[1] MUSCO, Enzo. L’Ineffettività della fattispecie penale. In: MUSCO, Enzo. L’illusione penalistica. Milano: Giuffrè, 2004, p. 117.

[2] DENNIN, Torsten. De tulipanes a bitcoins. Una historia de fortunas hechas y perdidas en los mercados de materias primas. Barcelona: Profit, 2021, p. 276 e ss.

[3] Nas palavras de Papa, os tipos penais se caracterizam pela descrição de fatos típicos de natureza especial, iconográficos, figurativamente imagináveis. Cf. PAPA, Michele. Fantastic Voyage a través de la especialidad del derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2021, p. 191.

[4] Cf. MILITELLO, Vicenzo. Iniciativas supranacionales en la lucha contra la criminalidad organizada y el blanqueo en el ámbito de las nuevas tecnologias. In: ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, Lura; MÉNDEZ RODRÍGUEZ, Cristina; DIEGO DÍAZ-SANTOS, María Rosario (coord.). Derecho penal, sociedade y nuevas tecnologias. Madrid: Colex 2001, p. 177 e ss.

[5] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Autorregulação, responsabilidade empresarial e criminal compliance. In: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 31 e ss.

[6] BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. Granada: Aranzadi, 2015, p. 110 e ss.

[7] Cf. MONGILLO, Vincenzo. La corruzione tra sfera interna e dimensione internazionale. Effetti, potenzialità e limiti di un diritto penale multilivello dallo Stato-nazionale ala globalizzazione. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2012, p. 19 e ss. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A ideia penal sobre a corrupção no Brasil: da seletividade pretérita à expansão de horizontes atual. In: BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio; BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva (coord.). Estudios sobre la corrupción. Una reflexión hispano brasileña. Salamanca: Universidade de Salamanca, 2013, p. 73 e ss.

[8] Cf. as importantes considerações sobre os aspectos internacionais em, DE GENEARO, Alan; ASTORINO, Paula. Regulação de criptoativos: é melhor falhar na originalidade, ou ter sucesso na imitação? In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 332 e ss.

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