Público x Privado

Compliance do medo: programa de integridade usado contra a integridade

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4 de julho de 2022, 15h48

"Na verdade, nós vivíamos em uma prisão velada. Uma prisão pelo fato de ser monitorada, de a gente ter dito 'não'"
funcionária da Caixa

Gerou enorme impacto e ganhou considerável repercussão a recente demissão do presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, por múltiplas acusações de assédio sexual e moral contra funcionários do banco público. Digo demissão porque, apesar de ter sido permitido que ele pedisse demissão, a sua continuidade na presidência dessa respeitada instituição financeira tornou-se insustentável com as denúncias ocorridas. A forma não se conforma à realidade.

Spacca
No contexto das diversas acusações, chamou-me a atenção a reportagem publicada, em seu blog, pela jornalista Andréia Sadi, na qual registra o seguinte:

O "dossiê KGB", que oficialmente era chamado de "Relatório de Integridade", consistia em usar como desculpa um "filtro, uma pesquisa reputacional" sobre o histórico do funcionário — como, por exemplo, se ele tinha ficha criminal ou pendências na Justiça.

O chamado "Relatório de Integridade" deve ser a resultante de uma análise de risco de pessoas e empresas cujas condutas afetem a integridade de uma empresa e, portanto, o resultado dos negócios. Ele baseia-se em políticas internas de integridade (código de ética e código de conduta de funcionários e fornecedores) e em uma análise de risco identificado por eventos que sinalizem a falta de conformidade para com os parâmetros legais, éticos e de condutas adotados por uma empresa (red flags). Esse sistema de monitoramento tem por finalidade supervisionar o comportamento das pessoas jurídicas e físicas que trabalham em e com uma empresa. Os instrumentos de verificação desses sinalizadores de desconformidade são os canais de denúncia e as análises periódicas de risco que permitem examinar as situações que vierem a ser identificadas e servem para acionar o sistema sancionador que vier a ser estabelecido.

O elemento chave de um programa de integridade é a aderência entre o que se propõe observar como conduta ética e o comportamento efetivo daqueles que integram uma instituição. É por isto que a comprometimento da alta administração de uma empresa é chave para o processo, da mesma forma que uma política permanente de treinamento dos empregados e colaboradores. É dessa forma que uma cultura de integridade acaba por se materializar, tornando a administração menos dependente de controles internos externos (mesmo que estes continuem a ser indispensáveis).

A falta de efetividade de um programa de integridade acaba por tornar todo o aparato constituído em mera estrutura formal e de prateleira, usado apenas como exibição vistosa para terceiros pouco atentos. Mas pior do que isso, e nisso que os fatos ocorridos na Caixa são reveladores, possibilita o seu uso como instrumento de coerção contra a própria integridade. Por que demorou-se três anos para revelarem-se os abusos cometidos na Caixa? Porque os instrumentos internos de integridade da Caixa não funcionaram para coibir o comportamento abusivo denunciado? Mais ainda, como foi possível que o sistema fosse permissível com o uso do sistema sancionador contra aqueles que eram perseguidos e vítimas do abuso praticado pelo presidente da instituição.

Basicamente, a Caixa possui códigos de conduta e ética que devem ser observados. Mas, é importante frisar que, no Estado, esses códigos estão mais focados com o evento da corrupção do que com outras falhas comportamentais, tais quais as reveladas pelas denúncias ocorridas. Mas, ainda mais grave, o programa demonstrou que não era efetivo, pois a alta administração da Caixa não estava comprometida em combater os desvios éticos existentes. Na verdade, o sistema acabou voltando-se contra a própria integridade dos empregados da Caixa para coibi-los de apurar os casos que vinham sendo identificados.

De fato, um programa de compliance, muito mais amplo que apenas combater a corrupção, só torna-se efetivo quando incorporado no dia a dia da empresa, no proceder de seus empregados e colaboradores, tudo por meio da liderança, pelo exemplo da alta administração da empresa. No caso da Caixa, a persistência da perseguição às empregadas e empregados mostra que o programa de integridade foi usado pela administração da empresa para combater a própria integridade.

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