Defesa da Concorrência

Política de acordos do Cade e armadilhas do debate sobre contribuição pecuniária

Autor

  • Ticiana Lima

    é doutora em Direito Econômico e Economia Política e mestre em Direito do Estado pela USP LL.M. pela Harvard University e sócia do escritório VMCA Advogados.

4 de julho de 2022, 8h03

As últimas duas sessões de julgamento do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica foram marcadas por discussões envolvendo a homologação de termos de compromisso de cessação (TCC) em casos envolvendo a investigação da prática de cartel. Em ambas as ocasiões, a mensagem passada por parte relevante dos membros do Conselho foi a de que a forma de cálculo das contribuições pecuniárias que fazem parte destes acordos precisa ser revista pelo Cade.

Spacca
Atualmente, o pagamento de contribuição pecuniária é obrigatório no caso de celebração de TCC envolvendo a conduta de cartel. O valor dessa contribuição é calculado a partir da aplicação de um desconto sobre a multa esperada na hipótese de condenação. Ou seja: para se chegar ao valor da contribuição pecuniária, primeiro calcula-se o valor da multa esperada para, na sequência, diminuir o valor dessa multa por meio da aplicação de um desconto que pode chegar a até 50%, a depender do momento do pedido de acordo e da qualidade da colaboração prestada para as investigações.

O foco das discussões recentes no Conselho recaiu justamente sobre a etapa do cálculo da multa esperada. Na esteira dos debates em torno da apuração da vantagem auferida, uma parte dos conselheiros argumentou que o valor da multa esperada, calculado pela SG com base na regulação sobre ramo de atividade e na jurisprudência do Cade, estaria bem abaixo da vantagem supostamente auferida pelas empresas com a prática de cartel e, por isso, a homologação dos acordos teria pouco caráter dissuasório. O pressuposto dos defensores dessa tese é que a celebração de TCCs nesses moldes faria com que a atuação do Cade no combate aos cartéis fosse pouco efetiva.

Esse raciocínio, contudo, parte, ao que tudo indica, de premissas equivocadas acerca dos efeitos que um aumento do valor das multas teria no combate aos carteis. É preciso debatê-las.

Em primeiro lugar, é importante afastar a ideia de que o valor da multa/contribuição é o principal (se não o único) fator dissuasório da prática de cartel. Isso não é verdade. O valor da sanção pecuniária é apenas um dos fatores que compõe o “custo” do risco de participar de um cartel. Além dele, existe também o custo que pode advir de sanções alternativas (que podem ser inclusive mais representativos que o valor na multa no caso de imposição de medidas estruturais ou de inexigibilidade de contratação com a administração pública, por exemplo), sem falar no custo reputacional, que tem um peso cada vez maior no contexto atual em que as empresas têm sido ativamente cobradas por seu papel na construção do bem-estar coletivo. Desconsiderar essa realidade e pretender que a multa administrativa seja estipulada num patamar capaz de deter, por si só, todos os incentivos para a formação de carteis, certamente implica admitir que multas sejam estipuladas em patamares muito superiores à capacidade de pagamento das empresas, o que iria contra o que diz a própria lei de defesa da concorrência sobre dosimetria da pena (Lei. 12.529/2011, artigo 45, VI).

Multas altas não são um valor absoluto a ser buscado e muito menos a panaceia para todos os males dos cartéis. Não cabe ao Cade perseguir uma multa alta o suficiente para compensar os danos advindos dos carteis. A multa administrativa tem caráter sancionatório e não indenizatório. Estaríamos adentrando em uma clara situação de desvio de finalidade caso isso ocorresse.

A ideia de que quanto maior a multa, mais eficiente a política de combate a carteis, apesar de ter forte apelo popular, está equivocada. Em termos de política pública, existe um ponto ótimo para definição da multa, para além do qual ela passa a gerar mais prejuízos do que benefícios para a coletividade. Multas muito altas podem, por exemplo, impactar negativamente a capacidade das empresas concorrerem no mercado após o cartel, o que vai obviamente contra o objetivo principal da atuação do Cade que é promover a concorrência. Não por outro motivo, há na literatura econômica inúmeros modelos que tentam estimar qual seria esse patamar de multa ideal, embora ainda estejamos longe de um consenso sobre o tema.

Adicionalmente, é essencial ter em mente que, em se tratando de efeitos dissuasórios, tão ou mais importante que a gravidade da sanção é a probabilidade de detecção da prática, associada à efetividade da decisão sancionatória. Multas altíssimas são de pouca valia se cartéis não são detectados, e se as decisões de condenação não forem implementadas em função de questionamentos e revisões no âmbito do poder judiciário.

Não por outro motivo, a política de combate a cartéis se desenvolveu ao longo do tempo, no Brasil e em outros lugares do mundo, no sentido de incorporar cada vez mais instrumentos que aumentassem justamente a capacidade de detecção da prática de cartel e colaborassem para a robustez das evidências em casos de condenação. Como resultado desse processo, a política de combate a carteis se tornou uma política pública complexa, que além de contar com os instrumentos de investigação que fazem parte do arcabouço tradicional do direito sancionador, está fortemente ancorada também em instrumentos de caráter colaborativo, como o acordo de leniência (que confere imunidade ao delator da conduta), e os TCCs que são objeto da discussão em questão.

Nesse cenário mais complexo, ao contrário do que poderia imaginar o senso comum, orientar a política de combate a carteis no sentido da ampliação do valor das multas/contribuições pecuniárias com base no critério da vantagem auferida pode ter o efeito de diminuir a efetividade da política de combate a cartéis, ao invés de aumentar. Afinal, tanto a detecção de carteis quanto a efetividade dos processos que investigam essa prática anticompetitiva dependem, atualmente, de instrumentos de colaboração que foram incorporados com sucesso à política de defesa da concorrência brasileira ao longo dos últimos 20 anos, e que serão colocados em risco pela adoção da vantagem auferida como parâmetro para o cálculo das multas. Tal risco advém sobretudo da enorme insegurança jurídica em torno da apuração da vantagem auferida.

Apesar de haver unanimidade quanto à gravidade da conduta de cartel, há muita discussão sobre como as vantagens são de fato alocadas entre os participantes do acordo anticompetitivo (os ganhos não se distribuem de maneira uniforme entre os membros do cartel) e mais discussão ainda sobre como calcular essas vantagens. Calcular a vantagem auferida é um exercício difícil e que gera resultados controversos. Daí o a alto risco de questionamento judicial com a adoção desse critério como parâmetro para a definição das multas, que pode ter consequências devastadoras para a política de acordos do Cade.

Veja-se o caso dos TCCs em discussão, por exemplo.

Do ponto de vista do Cade, o objetivo dos TCCs é garantir a efetividade e dar maior eficiência e celeridade aos processos que investigam a prática de cartel. A lógica é que, diante da colaboração, poupam-se recursos administrativos na instrução e também se aumentam as chances de que a acusação seja corroborada por elementos suficientes para sustentar uma condenação na eventualidade de alguma discussão no judiciário. Do ponto de vista dos investigados, para além do desconto sobre a multa esperada, interessam a possibilidade de participar da definição do cálculo da contribuição (apontando preventivamente situações de desproporcionalidade, por exemplo), além da possibilidade de delimitar mais precisamente o escopo da sua participação no âmbito da negociação.

Ora, se a multa aplicada pelo Cade aos não signatários de acordos for calculada com base em parâmetros controversos e com alta possibilidade de depois ser revista pelo judiciário, é evidente que o acordo deixa de fazer sentido para ambas as partes. Do ponto de vista do Cade, perdem-se todas as eficiências geradas pelo acordo. Do ponto de vista dos signatários, arrisca-se ficar em situação pior fazendo o acordo com base em uma multa esperada que seria revista do que não fazendo.

Os impactos disso na atuação do Cade no combate aos carteis seriam grandes. A capacidade do Cade de detectar e punir efetivamente a prática de cartel hoje depende, em algum nível, da existência de incentivos suficientes para que empresas colaborem com as investigações. Sem essa colaboração, menos carteis chegariam ao conhecimento do Cade e menos processos resultariam efetivamente na aplicação de sanções. É dizer: via de regra, sem o incentivo para colaboração, menos evidências dos acordos tenderiam a chegar aos autos, limitando inclusive as chances de condenação na própria esfera administrativa, e maiores também as chances de discussão e anulação de uma condenação administrativa no judiciário.

É imprescindível que a análise dos TCCs individualmente considerados leve em conta essa possível repercussão das decisões dos casos concretos na política de combate a carteis como um todo. A celebração de TCCs pelo Cade é um instrumento de política pública que precisa ser manejado enquanto tal, considerando-se seu papel dentro da política de combate a carteis. Sem esse olhar mais geral e estratégico, é possível que decisões bem-intencionadas na verdade reduzam a efetividade da atuação do Cade ao invés de melhorar.

Corroborando essa afirmação, vale destacar que no seu mais recente Peer Review[1], a OCDE se somou aos críticos da proposta de adoção da vantagem auferida com parâmetro para o cálculo das multas pelo Cade. Segundo a OCDE, o Cade deveria dar preferência a formas de cálculo que partem de dados objetivos e de fácil identificação, no lugar de tentar calcular a vantagem auferida.

Como visto, quando se pensa na atuação do Cade enquanto política pública, é difícil encontrar argumentos para discordar dessa ponderação. Não bastasse isso, também é exatamente o que está previsto na lei de defesa da concorrência. O legislador, ao referir-se à vantagem auferida como parâmetro para o cálculo de multas, deixou claro que esta deveria ser considerada na dosimetria apenas quando fosse possível (e, como visto, na grande maioria das vezes não é com uma margem mínima de segurança). A lei estabelece que a base de cálculo para a fixação de multas contra infrações à ordem econômica é o ramo de atividade em que ocorreu a infração (artigo 37, I). Essa previsão legal foi inclusive regulamentada por meio de resolução que apresenta lista de “ramos de atividades empresariais” e, na sua versão mais atual, prevê expressamente a possibilidade de adequação do referido ramo de atividade sempre que a definição constante da lista se mostrar desproporcional e desvinculado da conduta investigada no caso. Ou seja, há um parâmetro previsto na lei, e disciplinado em regulação, que além de funcional, visa expressamente a assegurar que o valor da contribuição pecuniária seja calculado de forma condizente com a conduta em investigação. A maioria do Conselho fez bem em se posicionar pela sua utilização.

[1] OECD Peer Reviews of Competition Law and Policy: Brasil

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  • é doutora em direito econômico e economia política e mestre em direito do Estado pela USP, LL.M. pela Harvard University e sócia de VMCA Advogados.

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