Opinião

STF entre ruídos e sinais: uma análise sobre o aperfeiçoamento institucional

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4 de julho de 2022, 16h09

Nos últimos anos, têm recebido destaque nos meios de comunicação diversas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) examinando a regularidade de atos emitidos pelos Poderes da República. Durante o período da pandemia, talvez a mais célebre delas tenha sido aquela em que o tribunal, na formulação apresentada pelo ministro Roberto Barroso, estabeleceu que "configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação do direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e prevenção" (ADI 6.241, julgada em 21 de maio de 2020).

Mais recentemente, um outro conjunto de decisões invalidou atos do Poder Executivo que (1) ora contrariavam políticas públicas estabelecidas em leis e valores incorporados à Constituição de 1988, ora (2) dificultavam a participação da sociedade civil em órgãos deliberativos ou enfraqueciam as prerrogativas dos agentes que participavam de órgãos internos de fiscalização e controle do Poder Público. Esses atos do Poder Executivo foram qualificados como práticas de "constitucionalismo abusivo" (ADPF 622, rel. min. Roberto Barroso), "abuso de poder regulamentar" (ADPF 607, rel. min. Dias Toffoli) e, mais recentemente, de "cupinização normativa" (ADPF 760, rel. min. Cármen Lúcia).

Se lidos fora do contexto maior em que estão inseridos, esses episódios serão vistos como partes de uma reação do Poder Judiciário a um padrão de conduta do Poder Executivo percebido como abusivo e inconstitucional. Nessa linha, tais decisões seriam parte de um movimento para impedir que o Poder Executivo "enfraquecesse os guardrails da democracia", na linguagem recentemente utilizada por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em "Como as Democracias Morrem". Sem a pretensão de disputar essa conclusão, o objetivo deste artigo é enfatizar que, além de uma reação a um movimento do Poder Executivo, essas manifestações do Poder Judiciário fazem parte de uma evolução mais ampla do ambiente institucional brasileiro — e que não se esgota nessa série de decisões que impõem limites ao Poder Executivo.

A direção dessa evolução institucional é bastante clara: de maneira progressiva, passa-se a exigir de políticas e atos públicos que eles sejam racionalmente justificáveis e baseados em evidências — e, ao mesmo tempo, a repudiar decisões estatais que sejam arbitrárias e/ou fruto de voluntarismos. Esse movimento não tem como destinatário apenas o Poder Executivo: também leis que não sejam minimamente racionais, que não estejam minimamente baseadas em evidências e/ou que busquem esvaziar o espaço institucional reservado ao Poder Executivo para efetuar avaliações técnicas podem ser objeto de controle perante o Poder Judiciário.

Nessa linha, em 2020 o STF decidiu pela inconstitucionalidade da Lei Federal nº 13.269/2016, que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética — conhecida como "pílula do câncer" — por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. Ao fundamentar sua decisão, o tribunal explicou que, não havendo avaliação técnico-científica por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que comprovasse a eficácia do medicamento (ADI 5.501, rel. min. Marco Aurélio), o Legislativo não poderia autorizar sua distribuição: em última análise, isso violaria o dever constitucional do Poder Público de tutelar a saúde da população. Com fundamentos similares, o tribunal julgou inconstitucional, no final de 2021, lei federal que permitia a produção, comercialização e consumo de quatro medicamentos para emagrecimento e enfatizou a necessidade de preservação da competência técnica e legal da Anvisa para efetuar sua avaliação (ADI 5.779, rel. min. Edson Fachin).

Ao mesmo tempo, há sinais nítidos de evolução institucional e de tentativas de consolidação legislativa de um ambiente de governança que exija, como regra, a emissão de atos públicos apenas depois de uma análise apropriada de evidências — e sua revisão periódica, obedecidos os mesmos critérios de racionalidade. Esse movimento ficou bastante evidente desde a edição da Lei Federal nº 13.655/2018, que acrescentou, na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), disposições para aumentar a segurança jurídica e a eficiência na criação e na aplicação do Direito Público. Posteriormente, essa tendência foi reforçada pela promulgação das Leis Federais nº 13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras) e 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), e pela edição do Decreto Federal nº 10.411/2020.

Com efeito, a Lei das Agências Reguladoras determinou que a adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados fossem precedidas da realização da chamada análise de impacto regulatório (AIR) — um processo em que o Poder Público deve examinar a realidade sobre a qual ele pretende intervir, avaliar diferentes alternativas de ação e fundamentadamente apontar aquela que lhe parece ser a mais adequada à promoção do interesse público. Poucos meses depois, a Lei de Liberdade Econômica estendeu esse dever para todo órgão ou entidade da administração pública federal e expressamente proibiu o que chamou de "abuso de poder regulatório".

Em meados de 2020, o Decreto Federal nº 10.411/2020 buscou incorporar à cultura regulatória federal a avaliação de resultado regulatório (ARR) — uma prática cujo objetivo é a "verificação dos efeitos decorrentes da edição de [um] ato normativo". Na mesma direção — embora sem o merecido destaque — a Emenda nº 95/2021 adicionou à Constituição previsão para que "os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, [devam] realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei". Em vista disso e das decisões listadas no início deste texto, pode-se esperar o fortalecimento de um dever — controlável judicialmente — de promoção do contínuo ajustamento de políticas públicas com base em uma avaliação racional da exatidão de suas premissas, de sua lógica interna e dos efeitos por elas produzidos.

Há pouco tempo, o Ministério da Economia também publicou a versão final do "Guia Orientativo para Elaboração de Avaliação de Resultado Regulatório", que, embora não tenha força vinculante, servirá de orientação para a execução das ARRs pelos órgãos e entidades federais. A primeira versão do guia foi submetida à consulta pública e contou com participação de diversas entidades da sociedade civil organizada, dentre elas o Instituto Brasileiro de Estudos da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac), que apresentou contribuições relevantes para o aprimoramento do ambiente regulatório nacional, incorporadas à versão final do guia. Dentre estas, vale destacar a proposta de fazer com que a ARR verifique se as premissas que haviam sido estabelecidas para justificar a edição de uma resolução foram confirmadas na prática, e, além disso, se o modelo de intervenção proposto pela regra sob revisão funcionou da maneira originalmente esperada.

Esse esforço, inclusive, parece já ter sido reconhecido no cenário internacional, pois, em janeiro, o Brasil foi convidado pela OCDE para iniciar o processo formal de ingresso na organização, que tem expectativa de ser concluído entre três e cinco anos. Um passo relevante em direção aos objetivos econômicos do país, mas, sobretudo, um incentivo à perpetuação da solidez técnica e da eficiência no ordenamento jurídico nacional.

Decisões judiciais que declaram a nulidade de atos do Poder Executivo ou do Poder Legislativo podem produzir muito ruído, que amplificado pelas mídias sociais, pode chegar a dominar totalmente a atenção e a contaminar a percepção do espectador. Ocorre que, por baixo desse ruído, embora com menos destaque nas diferentes mídias, há um sinal em constante amplificação — cujos primeiros efeitos já se fazem perceptíveis. Esse sinal, a nosso ver, é positivo: no plano institucional, ele ajuda a consolidar o Estado de Direito; na prática, ele contribui para a construção de políticas públicas mais eficientes e, consequentemente, para um aumento de bem-estar na sociedade brasileira. As decisões listadas no início deste artigo, a nosso ver, não deveriam ser vistas como um ponto fora da curva. Pelo contrário: elas são mais uma etapa de um longo movimento de consolidação e evolução institucional que deve ser mantido, prestigiado e aperfeiçoado independentemente das colorações predominantes em cada ciclo político.

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