Opinião

"Exceção de Romeu e Julieta": o que é e quando se aplica

Autor

  • Israel Domingos Jorio

    é autor do livro "Crimes Sexuais" (3ª ed. Editora Jus Podivm) doutor e mestre em direitos e garantias fundamentais professor de Direito Penal da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) do Complexo de Ensino Renato Saraiva (Cers) da Escola da Magistratura do Espírito Santo e da Escola do Ministério Público do Espírito Santo e advogado criminalista.

4 de julho de 2022, 15h08

1. O que é: Trata-se de uma tese jurídica, ou seja, não há qualquer previsão legal, de modo que sua aplicação não é obrigatória. Ela tem por objetivo evitar a punição de condutas que, objetivamente consideradas, caracterizam o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A, caput, CP), mas em que, pelas circunstâncias fáticas especiais, essa punição parece ser injusta e desnecessária.

2. Quando se aplica: Nos casos de relações sexuais consentidas entre uma pessoa adulta e uma pessoa adolescente, desde que mantenham algum tipo de relação afetiva (alguma forma de relacionamento romântico, amoroso). Ou seja: sem consentimento claro da pessoa adolescente, não se aplica. Se não existir um vínculo afetivo ou relacionamento amoroso, não se aplica. A tese não foi pensada para a pessoa de 20 anos que fica com uma de 13 na primeira vez em que se viram em uma festa ou boate, mas, sim, para quem está em um relacionamento afetivo minimamente duradouro e, nesse contexto, mantém com a pessoa menor de 14 anos contatos sexuais.

3. Entendendo o critério especial da idade: A tese foi pensada para jovens adultos que se relacionam com adolescentes especificamente na faixa etária entre 12 e 14 anos. Por que deve haver tanto rigor nessas faixas etárias? Porque se não for um jovem adulto, provavelmente haverá desproporção de experiência e maturidade, o que tende a configurar abuso. De outro lado, a partir do dia em que completa 14 anos, a pessoa não é mais vulnerável e seu consentimento é válido, de modo que a tese perde sua relevância (o contato sexual consentido, com pessoa de 14 anos ou mais, é penalmente irrelevante). E por que não se aplica a casos em que o parceiro(a) seja pessoa menor de 12 anos? Porque se trata de criança (artigo 2º, Lei 8.069/90) e, portanto, simplesmente não há absolutamente nenhuma forma de relativizar a vulnerabilidade. Uma criança não pode ser envolvida em contexto sexual, e ponto final. O adolescente, segundo o Ecriad (Estatuto da Criança e do Adolescente) conta com alguma maturidade (tanto é que pode até receber medida socioeducativa em caso de atos infracionais mais graves). O nível de imaturidade e de vulnerabilidade da criança é total, e sua incapacidade para consentir sobre atos da vida sexual, assim como de ser responsabilizada por suas atitudes, é completa. É o tratamento dado pela lei às crianças: pela incipiência de seu desenvolvimento, não podem ser submetidas a nenhum tipo de castigo (medidas socioeducativas), mas apenas a medidas protetivas (que visam ao seu próprio bem-estar). Significa que, se uma criança cometer um ato gravíssimo, como um homicídio qualificado ou um latrocínio, não sofrerá nenhum tipo de reprimenda ou correção. O adolescente (maior de 12 e menor de 18 anos) pode chegar a ser internado por até três anos (em um ambiente que, na maioria dos casos, muito se assemelha ao de um presídio comum). A ilicitude do contato sexual mantido com uma pessoa menor de 12 anos de idade, por se tratar de uma criança, não poderá ser afastada pelo consentimento, pela existência de experiência sexual prévia, pela existência de relacionamento afetivo estável ou de autorização dos pais. Se o agente com quem foram praticados os atos sexuais for um adulto e conhecer a idade da parceira (menor de 12), deverá ser punido por estupro de vulnerável e não há argumentos jurídicos para que se afaste a incidência dessa norma (nada de "Romeu e Julieta" envolvendo criança).

4. Por que não interfere no direito ao aborto da criança de 11 anos: O parceiro da criança catarinense que engravidou era um garoto de 13 anos de idade. Isso torna as coisas mais complexas, é claro, mas não interfere no direito ao aborto sentimental (que é o que se realiza nos casos de gravidez resultante de estupro). Vamos separar as questões. Temos três assuntos diversos em pauta: a) a caracterização do ato infracional análogo ao estupro de vulnerável para o adolescente); b) a imposição de um castigo (medida socioeducativa) ao adolescente; c) a licitude da submissão da gestante de 11 anos ao aborto.

a) Sobre a caracterização, ou não, do ato infracional análogo ao estupro de vulnerável. Se duas crianças (10 ou 11 anos de idade) encontram armas de fogo e, realizando um duelo igual àquele que veem nos desenhos animados, disparam os revólveres, ferindo-se simultaneamente, produzem danos recíprocos a seus bens jurídicos. Não importa se as crianças serão punidas (não serão): a lesão (tipicidade material) está ali. No caso em tela, embora as lesões recíprocas sejam de outra natureza, estão igualmente presentes. Não falamos de lesões à vida ou à integridade física, mas de lesões às respectivas dignidades sexuais de pessoas que, aos olhos da lei, não podem ser envolvidas em contexto sexual, pois, em razão de sua vulnerabilidade, estarão sendo objeto de abuso. A expressão mais exata é "coisificação" ou "reificação" e corresponde à utilização de uma pessoa como objeto para atingir um fim — no caso, de satisfação sexual. A coisificação é, segundo a filosofia de Kant, o maior exemplo de violação da dignidade da pessoa humana. E o fato de a coisificação de um menor ter-se dado por outro, bem como de ambos não saberem exatamente o sentido e a lesividade do que faziam, não elimina a destrutividade dos atos praticados. Se houve conjunção carnal, e se havia conhecimento da idade (dolo), estavam presentes os elementos objetivos e subjetivos do tipo e a tipicidade formal também está completa. Quanto às causas de exclusão da ilicitude (artigo 23, CP), não há qualquer razão para que se cogite a incidência de qualquer delas (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito). Ou seja: estamos diante de um injusto penal (um fato formal e materialmente típico que é antijurídico). Não se chega a configurar a infração penal porque não há imputabilidade, um dos requisitos para a caracterização do terceiro e último dos elementos do conceito analítico de crime (culpabilidade). Como também não há, no caso analisado, razões para que se discutam os outros elementos da culpabilidade (potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa), a caracterização de um injusto penal é suficiente para que se reconheça a existência de um ato infracional análogo ao estupro de vulnerável. Ainda que, em tese, se reconheçam dois, reciprocamente praticados (um menor ofendendo a dignidade sexual do outro).

b) Sobre a imposição, ou não, de um castigo. Do reconhecimento da existência de uma lesão à imposição de uma sanção (seja pena, para imputáveis, ou medidas socioeducativas, para inimputáveis por menoridade), há uma enorme distância a ser percorrida. Como dito, para as pessoas menores de 12 anos, não há qualquer castigo possível. Mas, para aquelas com mais de 12 e menos de 18 anos, há as medidas socioeducativas. Em tese, portanto, caberia a medida socioeducativa para o menino de 13 anos que manteve conjunção carnal com a criança de 11 anos. Significa, no entanto, que essa solução deve ser adotada? O que será que se conquista ou se atinge, quando se pune um garoto de 13 anos que mantém relações sexuais com uma menina de 11, que talvez tenha maturidade física e emocional igual ou superior à sua? Não se deve esquecer, por um minuto que seja, que a imposição das penas não pode ser transformada em um ato mecânico, irracional, ou de vingança. É preciso recorrer, sempre, à análise sobre os fins da pena. O mesmo, obviamente, se aplica às medidas socioeducativas. Embora, por puro eufemismo dogmático, não possamos chamá-las de "penas" ou "sanções penais", algumas delas têm caráter aflitivo e representam um castigo. A internação, por exemplo, na prática, pelas condições deploráveis das “casas de acolhimento dos jovens infratores”, não se distingue muito de uma pena de reclusão em presídio qualquer. Então, a pergunta é: por que punir? Serão atingidas finalidades preventivas, sejam elas gerais (evitar a reprodução do comportamento no ambiente social) ou especiais (evitar a reprodução do comportamento pelo próprio infrator)? A menos que a relação sexual tenha sido realizada com verdadeiro abuso da especial vulnerabilidade da criança de 11 anos (por exemplo, mediante violência física, grave ameaça ou fraude — o que não parece ser o caso sob discussão), a punição do adolescente será injusta, desnecessária e inútil, porque não será restabelecida a normalidade do bem jurídico afetado, tampouco ajustado o comportamento "desviante" do menor ou, muito menos, a confiança na normatividade dos demais destinatários da norma (cidadãos em geral). Punir mecanicamente é desatender toda a principiologia humanista e liberal de nosso Estado democrático de Direito.

c) Sobre o direito ao aborto sentimental (artigo 128, II, CP): Não se pode vincular a liberação do aborto à punição do agente responsável pelo abuso. Isso é primário. Primeiro, porque ele pode nunca chegar a ser identificado, ou porque a vítima pode ter pavor de apontá-lo. Ou, simplesmente, porque ele pode ficar foragido, ou mesmo ter a punibilidade extinta pela morte no curso da persecução, e o destino da vítima não pode estar atrelado ao seu. Importante, também, antes de avançarmos, lembrar que a existência de uma permissão para o aborto em casos resultantes de estupro não representa ato de desprezo em relação ao valor da vida humana em formação ("vida intrauterina"), mas, apenas, uma decisão político-criminal no sentido de dizer que não é injusta, e definitivamente não merece punição, a interrupção da gestação que é decorrente de uma violência sexual. Quando se reconhece a legítima defesa do policial contra um transgressor armado, ou o estrito cumprimento do dever legal em relação à sua captura, não se está menosprezando a vida ou a liberdade da pessoa atingida, apenas declarando que a atitude do policial não fere os ditames do Direito e, pelo contrário, pode ser por ele justificada. Pode-se seguir deplorando a morte do delinquente armado, assim como a do feto ou bebê, afinal, são vidas humanas. Mas isso não deve comprometer o status da juridicidade da ação da legítima defesa ou do aborto. A permissão do aborto sentimental decorre do reconhecimento da insuportabilidade dos efeitos da gravidez para uma mulher que foi abusada sexualmente. Falamos de danos de todos os tipos (físicos, emocionais, psicológicos, financeiros, jurídicos), com os quais teria que lidar uma pessoa que foi vitimada por um ato altamente destrutivo e indigno. Forçar, sob ameaça de pena, a manutenção da gestação representa revitimização, ou seja, uma nova vitimização da gestante, inicialmente, abusada pelo agressor e, posteriormente, desprezada e obrigada pelo Estado a suportar suas dores, traumas e dificuldades sem jamais ter concorrido para a existência da gravidez. Constranger uma mulher estuprada a levar a gravidez adiante foi algo entendido como cruel e degradante pelo arcaico e (contextualmente machista) legislador de 1940. Como é possível que, na terceira década do século 21, se esteja a nutrir tamanho descaso pelo sofrimento alheio? Será que não aprendemos nada e até mesmo involuímos nos últimos 80 anos? A chave de solução da questão, destarte, não está nas perquirições sobre "Romeu e Julieta"; na efetiva caracterização, ou não, de um estupro de vulnerável enquanto fato típico, antijurídico e culpável; na eventual punição do adolescente transgressor; na existência ou inexistência de duplicidade e reciprocidade de lesões entre os menores de 13 e de 11 anos de idade. Está, sim, na ratio legis, no fundamento legal para a permissão do aborto sentimental. Pela mais plana e retilínea das lógicas, todos os efeitos nefastos de uma gravidez resultante de estupro na vida de uma mulher adulta serão potencializados e aprofundados se a vítima for uma criança. Não faz sentido algum permitir o aborto sentimental, para a mulher adulta, porque foi vítima de um crime, mas impedi-lo, em relação à criança, porque foi vítima, "apenas", de um injusto penal.

Considerações finais: Forçar uma criança de 11 anos a levar adiante a gestação porque o seu parceiro também é menor e incapaz de fornecer consentimento válido é desprezar os impactos concretos dessa gravidez na sua vida e buscar desesperadamente tecnicismos (inexistentes) para justificar uma posição nada jurídica sobre o tema do aborto. Em nenhum ordenamento jurídico racional do século 21 o direito à vida do feto poderá se sobrepor à vida e à dignidade da mulher — muito mais que um ser humano viável ou em formação, uma pessoa, com personalidade, (auto)consciência e muita aptidão para a dor física e emocional. A partir desse ponto, completamente vazias são as discussões sobre a quantidade de semanas de vida do ser humano em formação, pois, além de a lei não estabelecer limites temporais, há de permanecer inalterada a prevalência dos direitos da pessoa sobre aqueles do feto. E mais: a tão aludida limitação das 22 semanas, recomendada por autoridades da medicina, está conectada à segurança e ao bem-estar da própria gestante, e não pode ser usada contra ela mesma, especialmente se, como parece ser o caso, o avançar da gestação trouxer riscos para a vida e a saúde da grávida. Nessa hipótese, é bem provável que a criança, pela precocidade da gestação, acabasse sendo exposta a consideráveis e crescentes perigos, o que legitima e autoriza a interrupção da gestação, também, pela via do aborto necessário (quando não há outro meio de salvar a vida da gestante — artigo 128, I, CP).

Autores

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    Doutor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (FDV-ES). Professor de Direito Penal da FDV (graduação e especialização), da Escola da Magistratura do ES, da Escola do Ministério Público do ES e do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Advogado criminalista.

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