Tribunal de Relevância

STJ quer deixar de atuar como terceira instância para gerar mais precedentes

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3 de julho de 2022, 7h58

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2022, lançado na última quinta-feira na TV ConJur. A publicação está disponível gratuitamente na versão online (clique aqui para ler) e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa (clique aqui para comprar).

Com três décadas de funcionamento e depois de vencer seu maior desafio – uma crise sanitária marcada, também, por ataques institucionais –, o Superior Tribunal de Justiça agora vive um momento definidor. É preciso garantir pessoas capacitadas e comprometidas com o trabalho na corte, investir em modernização tecnológica e assegurar os recursos financeiros para agilizar a prestação jurisdicional, consolidar o sistema de precedentes qualificados e prevenir litígios. Só assim vai promover a cidadania e fortalecer a própria imagem perante a sociedade.

Consolidar e uniformizar são os objetivos declarados no Plano Estratégico aprovado para o período entre 2021 e 2026. Não que o STJ não tenha outras preocupações. O mesmo documento, produzido a partir de um diagnóstico feito por ministros e servidores, traz uma necessária autocrítica que passa por imaturidade em governança (é preciso planos menos engessados), inadequação de processos de trabalho e problemas para a melhor ocupação das funções críticas. Há ainda ameaças: interferências políticas na gestão, restrições orçamentárias impostas pelo governo e o constante desrespeito à sua jurisprudência. Se a última palavra na interpretação do direito infraconstitucional não é respeitada, perde sua razão de ser.

Legenda

Na análise dos próprios ministros, o STJ precisa deixar de atuar como terceira instância revisora para se tornar uma corte uniformizadora, ou seja, um tribunal que gera precedentes. E isso precisa acontecer já. Nesse sentido, a criação de filtros mais aprimorados para a tramitação de recursos nunca esteve tão próxima.

Em novembro de 2021, o Senado aprovou a PEC 10/2017, chamada de PEC da Relevância, segundo a qual a tramitação de recursos no STJ dependerá da comprovação de relevância da questão de Direito federal. Como teve alterações, o texto voltará à Câmara dos Deputados. Trata-se de uma vitória do tribunal, que investiu muitos esforços para sensibilizar o Poder Legislativo sobre a necessidade de racionalizar o processo no mesmo modelo que a Emenda Constitucional 45 fez com o Supremo Tribunal Federal, quando criou a repercussão geral, em 2004.

A Corte, agora, começa a lidar com a desconfiança que o assunto traz. Há setores da advocacia críticos da PEC da Relevância: dizem que institucionaliza a jurisprudência defensiva do STJ (a criação de entraves e requisitos para impedir o conhecimento de recursos) e faz dar as costas ao cidadão, especialmente os mais vulneráveis. O filtro prevê que tramitem ações penais, de improbidade administrativa, ações que possam gerar inelegibilidade, contrariedade à jurisprudência e causas com valor superior a 500 salários mínimos.

E o resto? “O STJ saberá identificar os temas federais sensíveis em todos os segmentos da sociedade”, garante o ministro Humberto Martins, presidente no biênio 2020-2022, que se encerra em agosto. Inclusive porque a PEC prevê que outras hipóteses de relevância possam ser acrescidas pelo legislador.

Comissão Gestora de Precedentes, presidida pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino, nunca trabalhou tanto na seleção de novos recursos repetitivos Emerson Leal/STJ

Enquanto isso, a máquina de formar precedentes continua a todo vapor. A Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas, da qual o ministro Paulo de Tarso Sanseverino sempre esteve à frente, nunca trabalhou tanto na sugestão de afetação de novos temas para recursos repetitivos. Em 2021, o tribunal levantou 128 controvérsias – assuntos sobre os quais poderá se debruçar para fixar tese de observância obrigatória pelas instâncias ordinárias –, número 4,5 vezes maior do que o registrado há cinco anos, em 2017.

Como apenas julgar não basta, a corte aumentou os esforços de divulgação e de contato com os tribunais de segundo grau e com o próprio Supremo Tribunal Federal.

Em 2021, foram cinco eventos virtuais nos quais ministros palestraram para sensibilizar a importância desse sistema de precedentes. “Do mesmo modo que a gente investe aqui no repetitivo, eles têm que investir no IRDR”, diz a ministra Assusete Magalhães, que também integra a comissão, em referência ao incidente de resolução de demandas repetitivas. Até 20 de maio de 2022, o STJ somava 1.140 temas de repetitivos afetados, com 1.057 julgados e 83 pendentes.

Quando respeitada, a jurisprudência do STJ tem impacto sistêmico. A tese fixada pela Corte Especial que refutou a fixação pelos juízes de honorários de sucumbência pelo método da equidade quando os valores da causa forem muito altos acrescenta fator de risco ao processo e incentiva o litígio eficiente, principalmente por parte da Fazenda Pública, responsável pelo maior gargalo do Judiciário brasileiro: as execuções fiscais.

Na 2ª Seção, acórdãos de Direito Empresarial têm moldado a condução das recuperações judiciais, uma realidade bem brasileira após anos de crises político-econômico-sanitárias. O mesmo vale para os embates travados na saúde privada, em que o mais preocupante hoje é a taxatividade do rol de procedimentos, definido e atualizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em junho, o colegiado decidiu que ele é taxativo, mas pode ser superado em situações excepcionais. A  a decisão dos ministros irá impactar o mercado de planos de saúde, responsável por quase 50 milhões de beneficiários.

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Nenhuma posição jurisprudencial foi tão incisivamente firmada no STJ recentemente quanto as da 3ª Seção. Hoje, a 5ª e a 6ª Turmas trabalham num alinhamento responsável por impor mudanças estruturais na forma como as forças de segurança agem: ficou mais difícil invadir a casa de alguém, por exemplo, uma exigência condizente com o Estado Democrático de Direito e a Constituição Federal. Foram inúmeros precedentes. Recentemente, o STJ corrigiu os rumos do reconhecimento pessoal de suspeitos e da invasão de domicílio sem autorização judicial. Mexeu com a apuração e o combate aos dois crimes que mais geram recursos: roubo e tráfico de drogas. E, com isso, vem pagando um preço: a 3ª Seção é a que mais recebe e julga recursos, sendo que cada um de seus integrantes recebeu, em 2021, em média 78 mil Habeas Corpus, ou 21 por dia. A consequência, segundo o ministro Sebastião Reis Júnior, é um incremento das decisões monocráticas, “senão você não dá conta”. O ministro Rogerio Schietti reconhece que foram abertas portas muito grandes, porém necessárias para a revisão de casos. “Não há outra maneira de se mudar essa cultura que vinha causando de violações a direitos humanos”, reflete.

Atenta a esses precedentes, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro reviu sua forma de atuar e passou a figurar entre os dez maiores litigantes no STJ em 2021. O defensor público Pedro Carrielo explica que, de uns anos para cá, o órgão tem defensores diariamente no STJ para melhorar a litigância estratégica, apresentando memoriais, visitando ministros e fazendo sustentações orais, coisas que antes somente escritórios particulares faziam.

“Há uma cultura de serem divulgadas decisões para que ingressem com HCs e REsps e REs em caso de descumprimento reiterado pelo tribunal local”, conta. Ele cita como exemplo a “banalidade” que o TJ-RJ faz ao combinar o artigo 33 da Lei de Drogas com o artigo 35 (associação) sem exigir provas. A Defensoria também tem inserindo nas peças dados sociais de vulneráveis, por vezes produzidos pela própria Defensoria, mostrando o impacto das decisões.

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Até que a relevância seja pré-requisito para o caso chegar ao STJ, simplesmente julgar mais não é interessante para o tribunal. Fomentar a resolução negociada de conflitos e adotar ações de desjudicialização estão entre os objetivos definidos no Plano Estratégico. Ambas as medidas ganharam destaque recentemente. Um único acordo de cooperação com a Advocacia-Geral da União evitou 468 mil recursos entre junho de 2020 e dezembro de 2021, segundo os cálculos da corte. O número de agravos em recursos especiais da AGU caiu 11%. Em 2022, o STJ estendeu o acordo à Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, que está entre os 10 maiores litigantes, e à Procuradoria-Geral do DF.

Muito importante, também, foi o acordo de cooperação assinado com o STF para racionalizar a atuação nas questões jurídicas repetitivas comuns, com ganhos em celeridade processual e segurança jurídica. Na prática, toda vez que um tema chega em recurso ao STJ e entra na mira do STF, o STJ decide esperar, para acabar com a chance de decisões conflitantes. As cortes prometem estar afinadas quanto a isso.

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O manejo processual no STJ passa inevitavelmente pela construção de saídas tecnológicas. Por isso, as últimas administrações da corte tornaram a tecnologia um dos eixos estratégicos de atuação. Hoje, o tribunal pega carona no florescimento das soluções em inteligência artificial. A principal delas é o sistema Athos, cuja finalidade é identificar documentos que, apesar de escritos de forma diferente, tratam do mesmo assunto. É usado, principalmente, para a triagem de matérias repetitivas e para monitoramento e agrupamento de feitos, visando à identificação de temas com potencial aplicação da sistemática dos recursos repetitivos. Há previsão de a inteligência artificial ajudar, inclusive, na gestão de precatórios, que foi profundamente impactada em 2021 pela aprovação da Emenda Constitucional 113, que estabeleceu um novo regime de pagamentos.

Se a urgência da crise sanitária fez o Poder Judiciário reagir para se manter ativo, o arrefecimento das restrições agora permite que se dedique, efetivamente, a aprimorar seu funcionamento. A partir de abril de 2022, o tribunal voltou a operar em modo presencial, mas sem abrir mão totalmente do modelo híbrido, que é aprovado pela maioria dos ministros e por advogados. Mesmo os ministros que preferem contato pessoal com os servidores no gabinete entendem que é interessante permitir que advogados risquem os custos com passagens aéreas e pernoites para vindas a Brasília para audiências que são perfeitamente possíveis por videoconferência ou telefone.

“O tribunal hoje está plenamente adequado para o teletrabalho de servidores e para a realização de sessões de julgamento por videoconferência ou híbridas, com parte dos ministros, advogados e membros do Ministério Público podendo participar presencialmente ou por videoconferência”, comemora o ministro Humberto Martins. Em agosto, encerra-se seu biênio à frente do STJ, uma presidência participativa e agregadora, que deu voz também àqueles que se relacionam diariamente com o tribunal – outros poderes da República, a OAB, o MP, os órgãos de representação de classes e o cidadão brasileiro.

Pelos próximos dois anos, o STJ será comandado por uma ex-advogada de carreira destacada nos dois lados do balcão. Maria Thereza de Assis Moura deixará a Corregedoria Nacional de Justiça para se tornar a presidente da corte, com a missão de manter a evolução que ela própria testemunhou.

Em 2006, ano em que foi nomeada pelo então presidente Lula, o tribunal encerrou o ano com 251 mil processos recebidos e 222 mil julgados. Quinze anos depois, esses números mais ou menos dobraram: 412,5 mil recebidos e 560 mil julgados. Para ela, as diferenças impressionam, mas, ao mesmo tempo, dão a exata medida da dedicação dos ministros e servidores da casa, que souberam se reinventar a cada ano.

Em breve, o STJ terá dois novos integrantes, desembargadores de Tribunais Regionais Federais que serão escolhidos pelo presidente da República para suprir as aposentadorias dos ministros Napoleão Nunes Marques e Nefi Cordeiro. São quatro candidatos, escolhidos pelos ministros da corte: Messod Azulay Neto (TRF-2), Ney Bello (TRF-1), Paulo Sérgio Domingues (TRF-3) e Fernando Quadros da Silva (TRF-4).

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Anuário da Justiça Brasil 2022
ISSN: 2179981-4
Edição: 2022
Número de páginas: 288
Editora ConJur
Versão impressa: R$ 40, exclusivamente na Livraria ConJur (clique aqui)
Versão digital: acesse gratuitamente pelo site http://anuario.conjur.com.br e pelo app Anuário da Justiça

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