Opinião

Virtualização e aprofundamento do abismo no acesso à Justiça

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3 de julho de 2022, 11h19

Não bastasse o aumento vertiginoso da demanda das pessoas e grupos vulnerabilizados pelo acesso à justiça via Defensoria Pública, em função do contexto econômico e sanitário, a virtualização processual também vem esticando ainda mais a corda para defensores (as) e servidores (as) da instituição.

É que, com a virtualização, diversas atividades de lançamento de dados e cadastramento, que na era dos processos físicos eram feitos pelo Poder Judiciário, foram delegadas à Defensoria Pública e à Advocacia. Além disso, está em curso uma migração de servidores(as) dos cartórios para os gabinetes, o que é excelente para a aceleração de processos e procedimentos, mas poderá ocasionar uma incapacidade de atendimento da demanda em relação às instituições mais precarizadas, considerando que possuem baixa capacidade de investimentos, além de enorme déficit estrutural e de pessoal, que por sinal, é a exata condição das Defensorias Públicas pelo país.

Sabe-se que trabalho cartorário vem se esvaziando, substituído pela automação da inteligência artificial, e, com isso, quem fazia esse trabalho está sendo redirecionado para realizar atividades processuais, ou, no mínimo, não reposto, com redirecionamento dos recursos economizados para a realização de novos investimentos nas áreas de TI (tecnologia de informação) e de informatização em geral do Poder Judiciário. A intenção dessas medidas, destaca-se, é positiva, já que busca prestar um melhor serviço aos destinatários do sistema de Justiça.

Contudo, não se pode esquecer que "do outro lado do balcão" (agora virtual), os três fatores elencados (aumento da demanda, delegação de atividades de cadastramento e lançamento e impacto da velocidade dos processos pela migração de servidores para os gabinetes) acabam por esticar tanto a corda de instituições como a Defensoria Pública, que a deixam prestes a estourar.

Evidente que burocracias públicas com estruturas físicas, de pessoal e tecnológicas já consolidadas, além de uma mais elevada capacidade de investimento, como o são o Ministério Público e o Poder Judiciário, não sentem tal pressão. O Poder Judiciário por exemplo, possui, para além do maior orçamento do Sistema de Justiça, o próprio controle do ritmo e da forma com que serão virtualizados os processos e procedimentos, o que o coloca em uma situação muito confortável ante essa nova realidade. Grandes escritórios de advocacia, da mesma forma, com clientes de elevado poder aquisitivo, certamente estão dispostos a investir o que for necessário para a aceleração de suas demandas.

Porém, a situação é extremamente diferente em relação às estruturas que somente agora se consolidam, justamente por terem como destinatários de suas atribuições o atendimento da parcela mais precarizada da população, como é o caso da Defensoria Pública. Ora, nacionalmente, e mesmo no Rio Grande do Sul, considerado um dos estados ricos do país, a Defensoria Pública sequer está presente em todas as comarcas, possuindo escritórios precários e parque informático atrasado, com conexões de internet que sequer possuem estabilidade necessária para manter uma rotina regular de trabalho. Da mesma forma, os recursos humanos estão muito aquém do necessário, tanto em relação ao número de defensores(as), quanto de servidores(as) e estagiários(as).

Se temos uma demanda crescente decorrente da maior crise econômica da Nova República, agravada por uma pandemia, que elevam a demanda das defensorias de um lado, e de outro um aumento de trabalho pela virtualização dos processos, que não são acompanhados de investimentos em aumento de pessoal e de melhora nas estruturas física e tecnológica, o único caminho que se vislumbra é o colapso da instituição.

Importante frisar que a virtualização dos processos é avanço bem-vindo e necessário, e que as medidas para aumentar a celeridade da tramitação dos processos são essenciais. Contudo, é fundamental o fortalecimento da Defensoria Pública com investimentos em mais defensores (as) e servidores (as) e sua justa valorização, além da necessária estruturação de seus espaços físicos e informáticos para dar efetiva assistência jurídica integral e gratuita à população vulnerável.

Do contrário, o abismo no acesso à justiça, historicamente descomunal em país com uma desigualdade obscena como o Brasil, mas que vem sendo mitigado pelo fortalecimento recente das defensorias, voltará a aumentar, trazendo a celeridade processual para os mais ricos e a impossibilidade de acesso a esse novo "Judiciário 4.0" aos mais pobres. Para um acesso à justiça pleno e universal, para além de um "Judiciário 4.0", precisamos igualmente de uma "Defensoria Pública 4.0".

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