Embargos Culturais

O intérprete das borboletas, de Sérgio Abranches

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

3 de julho de 2022, 8h10

Se escrito há dez anos, O intérprete das borboletas, de Sérgio Abranches, estaria na estante dos livros das grandes distopias. Provavelmente, nas estantes de livrarias e bibliotecas, estaria ao lado de O conto da Aia (que é de 1985), de Não verás país nenhum (de 1981), para não citar as obviedades do gênero, 1984 (que é de 1949), Admirável mundo novo (de 1932) e Fahrenheit 451 (de 1953).

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O leitor, se possível a leitura em um tempo atrás, ficaria assustado. Ao fechar a 237ª página do livro (Edição Record), teria certeza tratar-se de uma ficção, pesada; mas a vida seguiria, do mesmo modo que segue quando lemos os clássicos do gênero, de Margaret Atwood, Ignácio de Loyla Brandão, George Orwell, Aldous Huxley e de Ray Bradbury.

No entanto, O intérprete das borboletas é um livro de hoje, para os dias de hoje. Talvez por isso não nos assuste tanto. Nos acostumamos. É um relato verídico e sincero de nosso tempo. Sérgio Abranches, que leio desde um ensaio que se tornou livro (Presidencialismo de coalizão, originalmente publicado em 1988 na revista Dados), conduz o leitor por lugares muito conhecidos do Rio de Janeiro e de São Paulo. A trama é um corte do cotidiano (de alguma classe média, da qual fazemos parte). Convivemos com a perda de referências, com a profusão do o deboche e com a ilusão de se conquistar a liberdade, justamente para sufoca-la. Um tempo de paradoxos.

O intérprete das borboletas é o relato fantasioso (nem tanto) do abismo aparentemente insuperável que divide dois modos de percepção do mundo. Parecem (e são) visões antagônicas e inconciliáveis. O pano de fundo do livro é o contexto da separação entre a filha de um general e um (me pareceu) professor de literatura. Ela, convertida ao messianismo evangélico. Ele, perplexo ante a absoluta ausência de sentido prático dos ideais de sua geração, ainda que firme na crença na redenção humana. Há ainda a filha, constrangida e humilhada pela mãe, que lhe cobra fé, obediência e reverência. Um livro de leitura difícil para quem não toma partido.

O enredo também cuida de uma profunda cisão familiar entre irmãos. Recurso narrativo já utilizado por Machado de Assis, que em Esaú e Jacó (de 1904, seu penúltimo livro) opôs o advogado republicano Paulo a seu irmão, o médico e monarquista Pedro. Em O intérprete das borboletas, o ódio, que tem fundo político, lembra também o ódio, por outras razões, que Milton Hatoum descreveu em Dois irmãos (de 2000), opondo Yaqub e Omar.

O intérprete das borboletas repassa com pormenores conflitos que hoje vivemos. A polarização política que acirra ódios, que nos parecem ódios reprimidos, está nítida em passagens cheias de realidade. Exemplifico com a descrição de um ataque de duas amigas (homoafetivas, certamente), com a explosão de violência em um jogo de futebol, com a sessão de cusparada no miliciano, com o latrocida frio que mata no Rio de Janeiro, com o professor perseguido na escola porque não queria deixar de ensinar sobre as origens do nazismo.

A narrativa se desdobra em vozes de primeira pessoa e de narrador onisciente, mas que se divide em várias vozes, que são as vozes dos personagens. Tem-se a impressão que se lê um registro de história oral. Do ponto de vista da tática narrativa, pareceu-me o ponto alto do livro. Aviso: não se trata de um livro neutro. Afinal, já nos ensinou um outro cientista político, só pode haver neutralidade entre eunucos. É um livro escancaradamente militante, e não há nada de mal ou de inoportuno nisso. É seu grande valor.

O intérprete das borboletas registra profusão de personagens, bem amarrados, mas que exigem atenção dobrada do leitor, que corre o risco de se perder. Há também muito de observação pessoal no enredo (creio). O grafiteiro de São Paulo, obcecado com os buracos realistas que grafitava no chão, suscita muita simpatia. O que não ocorre, por exemplo (pelo menos para mim) com a tentativa de compreensão da ação de um outro assassino, de classe alta, que liquida um outro grafiteiro, porque se sentiu invadido. Ele (o assassino), sua irmã, e seu advogado tentam justificar a barbárie. Injustificável.

Há um traço comum que une todos os personagens, tanto do lado esquerdo quanto do lado direito. Todos comungam da perda de esperança em um tempo melhor. O título invoca (também a meu ver) um personagem menor e deslocado, que penso irrelevante para a trama. O sábio intérprete das borboletas, que vive em um sítio, vem de um outro tempo, quando havia outras lutas e outros problemas, tudo por outros meios. Penso que sua linguagem metafórica e enigmática apenas evoca e comprova seu deslocamento de um mundo que não consegue mais entender.

Se correta minha análise, e apenas assim, é que faria sentido a presença desse personagem na trama e também sua preponderância no título. “A República de Ilha Bela” talvez me pareceria um título mais verossímil, ainda que muito menos glamoroso, como se intui no fecho desse belíssimo livro. A concepção de liberdade é um dos temas centrais da narrativa. Não é por coincidência que um dos personagens centrais, ao deixar a escola onde é uma aluna hostilizada por suas posições políticas, passa a estudar em um colégio cujo nome evoca a liberdade em grego: Eleftería.

Não sabemos como O intérprete das borboletas será lido em dez ou vinte ou trinta anos. Não sabemos se será lido como uma novela de época, ou como um aviso doloroso, ou como um excerto de pessimismo realista, ou se será proibido, ou se simplesmente não será lido, pelo risco que corremos com a perda da habilidade de leitura de livros inteligentes.

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